“O sexo não é um privilégio dos jovens”


“O sexo não é um privilégio dos jovens”

À conversa com…
Francisco Allen Gomes

Data
Setembro 2016

Entrevista
Isabel Freire

Francisco Allen Gomes, psiquiatra, terapeuta sexual pioneiro no nosso país e um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica, reflete acerca da sexualidade e envelhecimento. Nos últimos anos, na sua atividade clínica, constata um aumento notável da procura de ajuda pelos mais velhos. Na vida de todos os dias assiste ao que chama de “abismo demográfico”, ou seja, muito mais mulheres de idade sem parceiro do que homens. E na cultura vê com bons olhos novas propostas de associação do erotismo ao corpo maduro, masculino e feminino. Para Allen Gomes, nome incontornável da sexologia clínica nas últimas décadas, em Portugal, “o prazer e o sofrimento causados pelo amor e o sexo” não cessam com o envelhecimento.

Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica: O desejo, à semelhança de outros órgãos do corpo, também envelhece?
Francisco Allen Gomes: Envelhecer, envelhece, mas menos do que o corpo. Nas pessoas mais velhas, sobretudo do sexo masculino, há uma clara separação entre o desejo e a performance, ou seja, a performance física não está “à altura” do desejo e apetência. Repare-se como estou a ser preconceituoso e a reproduzir estereótipos. Não se deve avaliar a sexualidade dos mais idosos por critérios utilizados para a “norma” (20-50 anos). Corpos e desejos têm que se adaptar uns aos outros, e a sexualidade é suficientemente plástica para o permitir.

SPSC: A ideia de jovialidade, vigor, vitalidade, é muito presente nos nossos dias e as construções sociais da sexualidade alimentam-se muito destes conceitos. Lembra-se de algum exemplo notável da cultura popular (cinema, música, literatura) em que o erotismo esteja agarrado à ideia de maturidade?
FAG: Eu citaria um notável filme alemão (de Andrea Dresen) que pouco eco teve quando foi exibido (2009): Nunca é tarde demais para amar. Aborda uma relação triangular entre idosos não recorrendo a subterfúgios ou falsos pudores no tratamento dos corpos e da sua interação. Aconselho vivamente a sua visão na rede. E um livro que nunca me canso de reler: Amor em Tempos de Cólera, de Gabriel García Márquez, em que dois dos protagonistas (Florentino Ariza e Fermina Daza) concretizam após os 70 anos um amor que na adolescência parecia uma ilusão. E já agora, uma excelente e significativa notícia que li no “Público” de 30 de Agosto: na edição de 2017 do calendário Pirelli (criado em 1964) – que sempre se caraterizou por modelos jovens e de grande sensualidade – pontificam, como mais “velhas”, Helen Mirren e Charlotte Rampling (70 e 71 anos). Mas tão ou mais importante, a média de idades das 14 escolhidas (para que conste, Kate Winslet, Nicole Kidman, Penélope Cruz, Alicia Vikander, Julliane Moore, Lupita Nyang’o, Rooney Mata, Jessica Chastain, Uma Thurman, Lea Seydoux, Zang Ziyl, Robin Wright e as já referidas Helen Mirren e Charlotte Rampling) é de 44 anos! Onde já vai a mulher de Balzac!

SPSC: O que diz da produção de materiais eróticos ou pornográficos a pensar no envelhecimento, com personagens de corpos maduros?
FAG: Esta é uma pergunta excelente. Era interessante um acesso fácil a este tipo de materiais, quando (se) os houver. Seria uma forma da idealização erótica, acompanhar a maturação e o envelhecimento do corpo, sem se continuar fixado em imagens eróticas estereotipadas de corpos jovens e bonitos.

SPSC: Na clínica… há uma idade a partir da qual se deixa de procurar ajuda terapêutica?
FAG: Não há. O sexo não é um privilégio dos “jovens”. A procura de ajuda pelos mais velhos tem aumentado notavelmente nos últimos anos. Será, no meu caso, só porque se sentem mais à vontade com um terapeuta das “suas idades?”.

SPSC: Era assim há vinte anos?
FAG: Quando escrevi o meu primeiro artigo sobre envelhecimento e sexualidade (1978) era uma raridade. Mas as coisas mudaram. E hoje, é mais comum. Tenho tido o privilégio de constatar que, com o envelhecimento, não cessam o prazer e o sofrimento causados pelo amor e o sexo.

 

Allen Gomes 3

Tenho tido o privilégio de constatar que, com o envelhecimento, não cessam o prazer e o sofrimento causados pelo amor e o sexo

 

 

 

SPSC: Quais são os maiores inimigos de homens e mulheres, ao nível sexual, à medida que se envelhece?
FAG: Eu diria que é a associação mediática entre dois binómios terríveis: sexo/juventude e sexo/beleza física. E provavelmente, os jovens, que sempre viram a sexualidade dos mais velhos de uma forma desconfortável.

SPSC: E os melhores amigos?
FAG: Naturalmente, os idosos, sobretudo se forem capazes de se organizar e dar visibilidade aos seus problemas e dificuldades, de ordem económica, social e íntima.

SPSC: Ainda há não muitas décadas associava-se o desejo sexual em homens mais velhos à ideia de perversidade. Pensava-se que este desejo era em si transgressivo ou tinha a ver com outros fatores (por exemplo, dirigir-se a pessoas muito jovens ou ser exteriorizado de forma invasiva)?
FAG: Penso que na base deste conceito está o “velho” modelo sexual reprodutivo. Ou seja, a “normalidade” estar ligada à janela da vida reprodutiva. As sexualidades que se exprimissem de outra forma eram estigmatizadas, embora com tipos de estigmas diferentes. A perversidade e “indecência” estiveram sempre ligadas à sexualidade na velhice.

SPSC: E as mulheres mais velhas, como eram encaradas socialmente, quando o seu desejo sexual se manifestava?
FAG: Ainda pior. Admite-se que um homem precise de uma mulher para “tratar” dele. O mesmo não se aplica às mulheres: “para que precisas tu de um homem?”. Nos meios pequenos, sobretudo, são apontadas a dedo as mulheres que frequentam bailes sozinhas.

SPSC: Quando foi a última vez que viu um casal heterossexual ‚maduro’ beijar-se apaixonadamente num local público?
FAG: A última vez? Nem sei se houve uma primeira! Claro que sabemos de uniões, que só recebem atenção pública pela assimetria [de idades]: caso recente de Mario Vargas Lhosa, ou em sentido oposto e menos recente, o último casamento da (já falecida) Cayetana, duquesa de Alba.

SPSC: Genericamente, há uma oferta suficiente e adequada de sítios para pessoas de idade avançada encontrarem parceiro, flirtar e namorar?
FAG: Há que considerar dois cenários: os idosos a viverem em instituições e os que estão ainda autónomos. Para os que vivem em instituições (vulgo, lares) temo que, para a maioria deles, este é um tema desconfortável. Não que se reprima diretamente, mas procura-se não incentivar. Para os que têm vida autónoma, o grande local de encontro são os bailes. Há danceterias espalhadas por todo o país (embora de forma irregular e talvez assimétrica) cuja frequência será de pessoas, digamos, maiores de 50 anos. É um fenómeno interessante que vem de acordo com as necessidades de interação dos grupos etários mais idosos. Mas há um dado incontornável em toda a temática de sexualidade e envelhecimento, que é aquilo que denomino de abismo demográfico. À medida que se envelhece, vai aumentando o fosso entre o número de mulheres e de homens sem parceiro. Este abismo é observável em todos os setores da nossa sociedade, nomeadamente nos lares. Há uma enorme assimetria no envelhecimento que cria dificuldades suplementares e de difícil superação. A título de exemplo. Há poucos meses eu e uma colega falamos sobre sexualidade e envelhecimento, num grupo de idosos, relativamente organizados, numa vila alentejana. Presentes estavam 50 mulheres e 4 homens!

SPSC: Se pensarmos nos universos gay e lésbico, a sexualidade é vivida com as mesmas complexidades à medida que se envelhece?
FAG: Penso que ainda será mais difícil e temo que os binómios sexo/beleza e sexo/juventude, também estejam presentes.