“Tudo mudou e tudo parece demasiadamente igual” para as intimidades menos convencionais


“Tudo mudou e tudo parece demasiadamente igual” para as intimidades menos convencionais

À conversa com…
Ana Cristina Santos

Data
15 de novembro de 2016

Entrevista
Isabel Freire

Foto
Carlos Nolasco/CES

A intimidade é por definição “diversa”, “fluída” e “inacabada”, mas a “riqueza” experienciada nas biografias não é ainda legitimamente representada no Código Civil, nos media nem nos manuais escolares. Quem o afirma é Ana Cristina Santos, a socióloga doutorada em Estudos de Género, que coordena o INTIMATE, um projeto que analisa a pluralidade das nossas vivências íntimas, p’la lente da cidadania. No site do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra é possível saber mais sobre esta pesquisa transnacional (iniciada em 2014), que compara três países do sul da Europa (Portugal, Espanha e Itália), em matérias como as vivências LGBTQ, o poliamor e as formas de reprodução que dispensam a sexualidade. Para Ana Cristina Santos, “falta à política portuguesa reconhecer que o combate à discriminação não é opcional”.

Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica – Como explicaria o conceito de cidadania íntima a uma criança?

Ana Cristina Santos – Trata-se de gostar de quem se gosta sem sofrer por isso, incluindo gostar de si mesma do modo como a pessoa é (e não como as outras pessoas a veem). Implica que cada pessoa tenha direito à sua intimidade. A cidadania íntima permite fazer escolhas – por exemplo fazer amigas/os, namorar, ter ou não bebés, ou ficar solteira/o e feliz –, tudo sem violência nem imposição. Permite sermos quem sentimos que somos: meninos, meninas, ambos, ou nenhuma destas ‘coisas’. Lembra-nos que a liberdade é o bem mais precioso.

No passado mulheres e homens não podiam escolher com quem namorar, e até se decretaram leis que determinavam que mulheres só podiam namorar com homens (e vice-versa), o que era uma grande injustiça. Em alguns lugares do mundo ainda é assim. Noutros – apesar de as leis injustas terem mudado – a cabeça das pessoas ainda está em ‘modo de avião’ (sem rede, desligadas da realidade).

O preconceito – que é quando julgamos as outras pessoas injustamente, sem as ouvir, sem as ver, achando que só nós é que temos razão –, é das coisas mais feias e perigosas. É o oposto da cidadania íntima, que nos diz (através das leis e práticas de cada país), que todas as pessoas têm o direito a ser iguais em oportunidades, livres para gostar de quem gostam e para ser quem são.

SPSC – O Estado Novo promovia uma visão da intimidade balizada pela heterossexualidade, o casamento monogâmico e a sexualidade reprodutiva. O projeto INTIMATE estuda exatamente o que sai deste perímetro (vivências LGBTQ, poliamor e formas de reprodução que dispensam sexualidade). O perímetro do mundo dos afetos e sexualidades alargou-se ou temos hoje muitos perímetros?
ACS –
Em qualquer contexto – durante o Estado Novo como agora – sempre tivemos muitos mais perímetros do que aqueles com que nos autorizam a imaginar o campo dos afetos. Mesmo em democracia, o regime de género e sexualidade dominante tende a ser monocromático, num esforço inglório de cristalização daquilo que é, por definição, diverso, inacabado, fluido: a intimidade. Lamentavelmente a riqueza de experiências e práticas que acumulamos nas nossas biografias íntimas não encontra espaço de representação legítima nos media, nos manuais escolares nem no Código Civil. Esse apagamento é intencional e transporta consigo efeitos vários, incluindo – para citar porventura um dos exemplos mais banais – a violência do olhar heterossexista de que continuam a ser alvo demonstrações de afeto entre pessoas do mesmo sexo em espaços públicos. O que se alargou hoje (graças a processos de democratização) é a perceção da desigualdade e das várias formas de assimetria de poder. Alargou-se também a capacidade de denúncia – e aqui a ação coletiva, a academia e, de modo muito particular, as teorias queer e feministas, tiveram um papel fundamental. Alargou-se ainda a consciência de que os corpos que amamos (e a partir dos quais amamos) são múltiplos e incluem pessoas com diversidade funcional ou que não se conformam aos padrões estéticos dominantes.

SPSC – O que é que mudou mais nos últimos anos, ao nível das intimidades menos convencionais: as vivências, as políticas ou os interesses da academia?

ACS – A contradição é que tudo mudou e tudo parece estar demasiadamente igual. Continuamos a não ter um Doutoramento em Portugal em que a Teoria Queer ou os Estudos LGBTIQ tenham adquirido estatuto de Unidade Curricular. Continuamos a ter leis boas que esbarram em regulamentações tardias, ou que falham na monitorização do seu cumprimento, ou que ficam reféns da ausência de condições que assegurem o seu bom funcionamento. Paralelamente continuamos a ter leis discriminatórias, por ação direta e/ou por omissão. Veja-se, por exemplo, a exclusão de gays e lésbicas do acesso à maternidade de substituição ou a legislação de pendor patologizante face a pessoas transgénero e intersexo. Continuamos a ter relatos surpreendentes de discriminação em espaço público, incluindo escolas e serviços de saúde. Há uma tremenda dificuldade em reconhecer a urgência de promover abertamente uma educação anti-homofobia, bifobia e transfobia, uma comunidade escolar que chame bullying ao que é bullying, e que aplique medidas inequívocas de combate e prevenção da violência simbólica e física em função da orientação sexual, relacional e identidade de género.

avioneteA contradição é que tudo mudou e tudo parece estar demasiadamente igual. Continuamos a não ter um Doutoramento em Portugal em que a Teoria Queer ou os Estudos LGBTIQ tenham adquirido estatuto de Unidade Curricular. Continuamos a ter leis boas que esbarram em regulamentações tardias, ou que falham na monitorização do seu cumprimento, ou que ficam reféns da ausência de condições que assegurem o seu bom funcionamento.

SPSC – Há 15 anos, uma investigação de doutoramento da psicóloga clínica Gabriela Moita, deu-nos conta da existência de muitos preconceitos patologizantes da homossexualidade, nas narrativas dos psiquiatras e psicólogos portugueses. Qual a importância desta dimensão para a construção da cidadania da intimidade?

ACS – Tem a importância que decorre do poder simbólico conferido a figuras de autoridade. A sexualidade constituiu-se enquanto objeto de escrutínio científico e intervenção detalhada a partir da construção da sexologia enquanto ramo da medicina no século XIX. Logo, o discurso científico sobre sexualidade sempre esteve muito ancorado no conhecimento legitimado pela comunidade médica, e em especial por profissionais da psiquiatria e da psicologia. Há todo um imaginário cultural que alimenta essa projeção (“Freud explica…”). Neste contexto, agravado pela ingerência católica em matéria de sexualidade, não é apenas importante convocar estas/es profissionais para a co-construção de conhecimento científico despatologizante; é fundamental que se perceba que, na ausência desse papel proactivo, estão a incorrer numa omissão perigosa e irresponsável, com consequências sérias. São demasiados os exemplos com que me deparo ainda hoje de intervenções sexistas e homofóbicas por parte de profissionais da psiquiatria e psicologia, com grande acolhimento por parte dos media. Para citar apenas dois exemplo mais recentes, ocorre-me o livro A Queda Dos Machos, escrito por Pio Abreu este ano, ou as declarações da presidente da Associação de Psicólogos Católicos que fazia equivaler homossexualidade e toxicodependência. Ambos os exemplos confirmam o quanto ainda está por fazer neste campo, 15 anos depois da dissertação pioneira que nos trouxe a Gabriela Moita. Convém lembrar o impacto da patologização nos campos da assexualidade e da diversidade de género. Basta lembrar que não só a prática clínica, mas a própria lei de identidade de género requer o diagnóstico de “perturbação de identidade de género”.

SPSC – Que conhecimento fundamental sobre as vivências não-convencionais dos afetos e sexualidades (em Portugal) nos traz o INTIMATE?

ACS – Um dos objetivos mais importantes do INTIMATE é conhecer experiências quotidianas de intimidade a partir das histórias de vida de pessoas LGBTQ considerando três eixos principais: conjugalidade, parentalidade e amizade. Essa recolha, feita através de entrevistas em profundidade, tem sido reveladora de um facto pouco discutido social e politicamente: a norma é a diversidade. Ou seja, aquilo que é minoritário ou pouco frequente são as vivências estritamente heterossexuais, reprodutivas e monogâmicas. O casal heterossexual, que coabita, tem filhos e cujos cônjuges nunca tiveram nenhum outro parceiro/a sexual ao longo da vida não corresponde ao modelo familiar dominante, mas antes a uma projeção frágil de um mito. Quanto mais rapidamente e de forma consolidada se reconhecer a banalidade da diferença, mais depressa se desmontam pânicos sexuais ancorados em décadas de narrativas patologizantes e de pendor moralista, influenciadas por visões intencionalmente redutoras da realidade. A investigação que desenvolvemos contribui para desmontar as falácias da discriminação, dando corpo à riqueza das experiências pessoais, à importância da vida de cada pessoa, e lembrando a partir do lugar simbólico fundamental que ocupa a academia, que temos o dever de proteger a diversidade enquanto mais-valia, que não pode ser agredida.

SPSC – O que é preciso que a política portuguesa incorpore, mais urgentemente, ao nível das vivências das pessoas LGBTQ?

ACS – Há áreas que carecem de intervenção urgente, no sentido de conferir maior autodeterminação às pessoas face ao poder biomédico. E nessa frente podemos pensar no enquadramento jurídico conferido à transexualidade ou à intersexualidade, e também no fundamento necessariamente patologizante como condição de acesso à maternidade de substituição, entre outros exemplos. Mais do que identificar um défice legislativo específico, verificamos um défice de cidadania. O que falta à política portuguesa é o reconhecimento de que o combate à discriminação não é opcional. Trata-se de cumprir a Constituição que nos garante igualdade perante a lei. O cumprimento do princípio constitucional da igualdade fortalece a democracia. Essa igualdade não admite concessões nem exceções, assim como não pode ser apenas uma declaração de intenções. Ao abster-se do exercício urgente de monitorar leis previamente aprovadas ou de regulamentar em tempo útil, já para não falar na ausência de formação adequada de profissionais em áreas tão diversas como a educação, a saúde, o desporto, as forças armadas ou as câmaras municipais, estamos perante um entendimento pouco sério e descuidado face a leis aprovadas e aos conceitos mais elementares de justiça, dignidade e direitos humanos. A este respeito, a ausência de educação sexual em meio escolar, ensinada de forma sistemática e consistente, continua a ser inexplicável.

espartilhoO casal heterossexual, que coabita, tem filhos e cujos cônjuges nunca tiveram nenhum outro parceiro/a sexual ao longo da vida não corresponde ao modelo familiar dominante, mas antes a uma projeção frágil de um mito.

SPSC – Em que medida as pessoas poliamorosas em Portugal estão fora do perímetro da cidadania?

ACS – A cidadania é um conceito que compreende várias frentes simultâneas. No INTIMATE olhamos para a cidadania a partir de três ângulos complementares: a cidadania formal, a cidadania sociocultural e a cidadania experiencial (ou vivida).

A cidadania formal (traduzida num enquadramento jurídico adequado) não vislumbra sequer a possibilidade do reconhecimento de cônjuges múltiplos, independentemente do contrato estabelecido (casamento, união de facto, etc.). As questões da poliparentalidade também não são equacionadas na política portuguesa. Estes exemplos chocam com uma realidade em que ambos são já constitutivos da realidade de pessoas poliamorosas que coabitam (ou não), que têm crianças biológicas (ou não).

A cidadania sociocultural emerge dos entendimentos tácitos: daquilo que é legitimado ou desacreditado no quotidiano das instituições, do que é visibilizado ou não nas séries televisivas ou nos manuais escolares, do que é autorizado no julgamento célere da sala de espera ou do café do bairro. Nesta esfera, a monogamia adquire um peso compulsório e tudo o que fuja dele é um deslize e deve ser tratado com discrição, assumindo o seu estatuto devidamente clandestino, tabu.

Por fim, a cidadania experiencial decorre da gestão quotidiana da intimidade, do que é negociado em contexto de casal, de constelação poliamorosa ou da rede de prestação de cuidados. As práticas aqui são tão diversas quanto as pessoas, revelando contradições sérias entre a história ensinada e a história vivida, mantendo as pessoas poliamorosas fora do perímetro formal e sociocultural da cidadania.

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A equipa do INTIMATE. Foto de Carlos Nolasco/CES

SPSC – O projeto que lidera estuda e compara três países do Sul da Europa: Portugal, Espanha e Itália. O que encontraram até agora de divergente?
ACS –
O enquadramento jurídico das questões de cidadania íntima em Itália é muito incompleto, refletindo sérias dificuldades em respeitar em condições de igual dignidade as pessoas LGBTQ. Essa é uma diferença que configura pontos de partida distintos dos três países em estudo. As práticas individuais e coletivas são também diversas. Espanha e Itália têm uma tradição de militância na área das não-monogamias e do transfeminismo muito mais vincada do que a que verificamos em Portugal, onde o ativismo LGBTQ mantém muitos dos aspetos que o caracterizam desde a sua emergência nos anos 1990 (urbano, com pouca diversidade étnica, racial e funcional, lideranças masculinizadas, etc.). E Portugal é porventura aquele no qual o processo de transformação legislativa conheceu um percurso mais rápido e transversal que, no entanto, não encontra tradução direta nas experiências de vida das pessoas entrevistadas, muito marcadas por narrativas de embate com práticas individuais e institucionalizadas de discriminação. Nos três países temos relatos de violência e relatos de boas práticas, que indicam défices ao mesmo tempo que apontam caminhos. Algumas destas conclusões, sendo preliminares (o INTIMATE decorre entre 2014 e 2019), estão já disponíveis para consulta.

SPSC – Será a Europa do Norte mais respeitadora da cidadania íntima?
ACS –
A distinção por zonas geográficas, embora tentadora, não funciona. Até porque há leis muito bem pensadas que não sobrevivem ao teste das práticas quotidianas, o que gera dissonância no respeito face à diversidade. E a própria Europa do Sul apresenta grandes diferenças internas, conforme os ângulos que escolhermos para olhar a cidadania íntima. Contudo, o peso dos valores tradicionais do catolicismo e o legado de regimes ditatoriais conservadores (entre outros fatores) faz que seja possível identificar um contraste entre a importância sociocultural dos modelos tradicionais de família nos países que estudamos no INTIMATE e os países nórdicos, nos quais tradições culturais e uma história política distinta facilitaram uma atitude menos conservadora no campo da intimidade.

SPSC – O que acha que seria necessário fazer para promover a cidadania íntima junto de gerações mais jovens, no nosso país?

ACS – Não existe uma idade certa para se começar a falar de igualdade de direitos e justiça. Mas existe um tempo certo para agir: ontem. Os trabalhos de Mercedes Sánchez Sainz com crianças e adolescentes confirmam maiores níveis de homofobia e transfobia à medida que aumenta a idade das crianças e adolescentes. É necessário reconhecer de forma concertada, sistemática, inequívoca, que a diversidade (sexual, relacional e de género) é parte constitutiva do que somos enquanto humanos. É urgente rejeitar de forma concertada, sistemática e inequívoca, qualquer menorização em função da orientação sexual, relacional ou identidade de género. E depois há que tornar os temas da sexualidade e do género transversais aos conteúdos educativos (da infância à universidade), envolvendo agentes de educação formal e não formal (o Ministério da Educação e as editoras que publicam livros infantis); investir na formação para a cidadania íntima de profissionais de saúde, integrando unidades curriculares nas áreas dos Estudos de Género e Estudos LGBT e Queer nos Cursos de Medicina e Enfermagem; envolver as autoridades policiais; sensibilizar jornalistas; trabalhar de forma incansável e interseccional com comunidades religiosas, associações de moradores, grupos desportivos, jardins de infância, etc.. A lista do que há a fazer é potencialmente interminável. E havendo tanto por fazer, a perplexidade consiste em reconhecer que ainda se fez tão pouco.