Ética profissional no trabalho com famílias homoparentais


Ética profissional no trabalho com famílias homoparentais

A opinião de…
Jorge Gato, Psicólogo, Investigador de Pós-Doutoramento, Terapeuta Familiar e Membro da Sociedade Portuguesa de Sexologia (jorgegato@fpce.up.pt)

Data
4 Janeiro 2017

Um número crescente de pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros (LGBT) estão a formar família. Esta é efetivamente uma temática que tem ganho alguma visibilidade em Portugal, principalmente por via de alterações legislativas que passaram a proteger os vínculos existentes nestas famílias, a garantir a igualdade no acesso à adoção ou o acesso à procriação medicamente assistida para todas as mulheres, independentemente do seu estatuto relacional, da sua orientação sexual e das suas condições de fertilidade.

Inicialmente vistas com alguma desconfiança e alarme social na década de 1970, as famílias homoparentais depressa se constituíram como um foco de estudo da Psicologia, sendo este, portanto, um corpo de investigação com mais de 40 anos. Resumidamente, verificou-se, de forma consistente e reiterada, que são mais as semelhanças do que as diferenças entre famílias hetero e homoparentais. No entanto, sabemos que as pessoas LGBT e as suas famílias continuam a enfrentar desconhecimento, preconceito e discriminação, nomeadamente em contextos tão importantes como a escola, os serviços de saúde ou em situações de apoio psicológico e social. Nesta medida, várias organizações profissionais como a Academia Americana de Pediatria, a Associação Americana de Psicologia ou a Ordem dos Psicólogos Portugueses têm produzido diretrizes que, além de incluírem informação cientificamente validada sobre as famílias homoparentais, encorajam os seus membros a ser competentes nas suas intervenções junto destas pessoas. Estas chamadas “competências culturais” compreendem três aspetos: conhecimento (i.e., compreensão das trajetórias psicossociais dos/as clientes), aptidão (i.e., desenvolvimento de intervenções sensíveis às necessidades específicas destas pessoas) e consciência (i.e., capacidade de refletir acerca dos próprios enviesamentos, pressupostos e limitações enquanto técnico/a). É sobre esta última questão que nos temos debruçado e relativamente à qual gostaríamos de partilhar alguma informação.

Assim, procurámos, no âmbito de um doutoramento defendido em 2012 na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, identificar que tipo de características pessoais podem influenciar as atitudes face às famílias homoparentais, nomeadamente no que diz respeito a apreciações acerca da competência de lésbicas e gays enquanto mães e pais e à forma como o desenvolvimento psicossocial dos seus filhos é encarado. Porque a desinformação e o preconceito podem ter um carácter particularmente lesivo em contextos nos quais a relação de ajuda assume maior preponderância, inquirimos um conjunto de pessoas que, sendo provenientes de diferentes áreas técnicas (Psicologia, Serviço Social, Medicina, Enfermagem e Ensino Pré-Escolar e Básico), apresentam um aspeto em comum, isso é, lidarão profissionalmente com crianças, adultos e as suas famílias.

Sucintamente, verificámos que alguns atributos pessoais dos/as participantes estavam efetivamente associados a uma maior “desconfiança”, quer relativamente à competência parental de lésbicas e gays, quer no que diz respeito ao desenvolvimento dos seus filhos. Assim, foram sobretudo as pessoas que não tinham amigos não heterossexuais, as pessoas que apresentavam uma visão mais rígida dos papéis de género e as pessoas com níveis mais elevados de homofobia que apresentaram também atitudes mais negativas relativamente à homoparentalidade. Curiosamente, estas características influenciavam mais os posicionamentos face ao desenvolvimento das crianças educadas em contexto homoparental, do que as opiniões relativas à competência parental de lésbicas e gays. Por outras palavras, os/as participantes mostraram-se sobretudo preocupados/as com as crianças, algo que parece ser mais aceitável quer do ponto de vista da norma social, quer do ponto de vista profissional.

Mas, voltando um pouco atrás, como explicar a associação entre determinadas características pessoais dos/s participantes e as suas atitudes face à homoparentalidade? No que diz respeito ao contacto interpessoal, sabemos desde há várias décadas que a familiaridade com pessoas pertencentes a grupos estigmatizados facilita a desconstrução de fantasmas e estereótipos. Também visões rígidas de quais devem ser os atributos dos homens e das mulheres, conhecidas por “conservadorismo de género”, estão, como se esperaria, associadas a atitudes mais negativas face à homoparentalidade. Finalmente, um dos contributos mais interessantes do estudo consistiu em verificar que a homofobia é indissociável das atitudes negativas face à homoparentalidade. Nesta medida, clivagens atitudinais patentes em afirmações como “não tenho nada contra os gays, mas a parentalidade é outra coisa” não encontraram corroboração. Efetivamente, quanto maior a homofobia maior a desconfiança relativamente às configurações homoparentais.

São várias as implicações destes resultados para a formação dos profissionais que lidam com crianças, adultos e famílias. Em primeiro lugar, porque as atitudes em relação às famílias homoparentais parecem encaixar-se num sistema de crenças mais alargado que define de forma inflexível quais são os papéis apropriados para os homens e para as mulheres, as estratégias educacionais que desencorajam o conservadorismo de género podem ser usadas para desconstruir o preconceito contra as pessoas LGBT e as suas famílias. Em segundo lugar, dado que contato interpessoal com lésbicas e gays influencia as atitudes em relação a esses indivíduos e às suas famílias, promover atividades formativas que envolvam o contacto interpessoal com pessoas LGBT pode ser uma estratégia recomendável. Adicionalmente, dado que os maiores receios dizem respeito ao desenvolvimento das crianças, é particularmente relevante fornecer informação cientificamente validada sobre este aspeto. Para além da formação, a reflexão pessoal sobre atributos e valores pessoais que estão mais associados a atitudes enviesadas, é da maior importância. Uma das linhas orientadoras da APA para a intervenção junto de pessoas pertencentes a minorias sexuais encoraja os psicólogos/as a reconhecer de que forma as suas atitudes e o seu conhecimento sobre as minorias sexuais podem influenciar a avaliação e a intervenção junto destas pessoas. Idealmente, esta diretriz ética dever-se-ia estender, na nossa opinião, a outras áreas de atuação, nomeadamente à sexologia.