A disfuncionalidade pode prevenir-se com uma boa educação para a sexualidade


A disfuncionalidade pode prevenir-se com uma boa educação para a sexualidade

À conversa com…
António Pacheco Palha, psiquiatra, ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica, e Diretor Clínico da Casa de Saúde Bom Jesus – Irmãs Hospitaleiras, no Porto.

 

Percursos…
É presidente da Associação de Saúde Mental em Língua Portuguesa (ASMELP), ex-Presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, Professor Catedrático de Psiquiatria, Jubilado, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e Membro Honorário da World Psychiatry Association.

 

Data
9 de Outubro de 2017

Entrevista
Isabel Freire

António Pacheco Palha é um dos médicos de referência da luta travada para colocar a sexualidade na agenda clínica, no Portugal do pós 25 de abril de 1974. Olhando para o presente, o psiquiatra e ex-presidente da SPSC está otimista. Vê na sociedade portuguesa grande abertura para a aceitação da diversidade, nomeadamente “de comportamentos ligados à homossexualidade e à transexualidade”. Porque a disfuncionalidade pode ser prevenida com uma boa educação para a sexualidade, defende que é preciso continuar a apostar na informação e formação dos jovens.

Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica – Trabalha com as questões da sexualidade há mais de 40 anos. O que mudou de forma mais profunda no olhar dos sexólogos clínicos?

António Pacheco Palha – Há 40 anos ainda não havia uma grande atenção para os problemas da sexualidade em geral nos meios médicos, e também nos meios da área psicológica. Havia uma apreciável militância por parte do grupo de médicos e técnicos envolvidos nos problemas de planeamento familiar, dado que no tempo da ditadura havia restrições para métodos contracetivos hormonais (a célebre pílula contracetiva). Procurava-se lutar contra o uso do aborto como processo da limitação dos nascimentos. Nessa época tive o privilégio de conviver e trabalhar a nível da divulgação de conhecimentos com o Dr. Albino Aroso, o pai do moderno planeamento familiar em Portugal.

SPSC – As pessoas que lhe chegam ao consultório vêm procurar ajuda apenas porque não querem ser doentes (do ponto de vista da sexualidade) ou já procuram ajuda porque querem ser sexualmente mais saudáveis?

APP – As pessoas que nos procuram para consulta, a maior parte das vezes, não se apresentam como doentes. Melhor dizendo, por vezes é o parceiro que diz que o outro está doente e de facto é mais fácil aceitar uma doença do que uma falha comportamental.

SPSC – Há alguma causa relacionada com a sexualidade ou com a sexologia, que o mobilize para a ação, para o ativismo?

APP – Cheguei ao estudo dos problemas da sexualidade humana através do movimento para o planeamento familiar, que se iniciava em finais do anos 1960. No início de 1969, liguei-me a um pequeno grupo de católicos progressistas do Porto, que estavam ligados à saúde, para a criação do núcleo do norte da APF, que tinha sido criada em Lisboa (um ou dois anos antes). A partir daí e com a prática de observação de mulheres e casais na consulta de planeamento familiar criada na Universidade de Santo António (pelo Dr. Albino Aroso) fui-me apercebendo da importância dos problemas sexuais da mulher e do casal. Ao mesmo tempo, dei-me conta que toda a situação disfuncional poderia ser prevenida através de uma boa educação para a sexualidade. Assim, passei a ter uma outra preocupação na área da sexualidade que foi com a organização de atividades em prol dessa educação (com jovens, com pais, com professores, etc.).

SPSC – Que lugar lhe parece ter hoje a sexualidade humana nas preocupações de investigação e de intervenção em psiquiatria, em Portugal?

APP – Não só a psiquiatria portuguesa, que teve pioneiros na divulgação da importância dos problemas sexuais para a vida mental e que foram fundadores da Sociedade Portuguesa de Sexologia – Afonso de Albuquerque, Allen Gomes, Silveira Nunes, entre outros e eu próprio – mas também a medicina portuguesa da época pré revolução de 1974, não estavam muito atentas a este programa. Num período pós revolução, com a criação da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica, com a dinamização levada a cabo por um novo grupo de urologistas (que criaram a Sociedade Portuguesa de Andrologia) e pelo grupo dos ginecologistas ligados ao planeamento familiar, passou a haver na sociedade médica portuguesa um novo interesse pelos problemas da sexualidade humana.

SPSC – Muitos especialistas alertam para a afirmação crescente de valores ultraconservadores associados à sexualidade e à reprodução, em países ditos desenvolvidos. Na sociedade portuguesa há sinais desta vontade de arrepiar caminho?

APP – Sempre existiram valores ultraconservadores associados à sexualidade e à reprodução, em países ditos desenvolvidos, em países de tradição cristã, sobretudo católica. Não sou pessimista neste domínio do comportamento humano e estou convencido que não haverá um arrepiar de caminho.

SPSC – Que ideias enviesadas (equívocas) da sexualidade humana considera que é preciso ainda desconstruir, na sociedade portuguesa dos nossos dias, de forma mais ampla e premente?

APP – Penso que a Sociedade Portuguesa tem tido uma grande abertura para a aceitação dos comportamentos ligados à homossexualidade e à transexualidade, embora em relação a esta última ainda tenha que ser promovido um melhor esclarecimento, dada a complexidade psicológica e biológica de tal escolha. Parece-me  também que os comportamentos bissexuais merecem um estudo mais aprofundado, dado haver também recetividade variada por parte da população.

SPSC – Com que novos desafios (afetivos, sexuais, relacionais) se defrontam as gerações mais jovens, nos nossos dias?

APP – As gerações mais jovens naturalmente enfrentam desafios derivados das mudanças socioculturais. As estruturas familiares são aparentemente menos normativas. Mas há maior circulação de todo o tipo de informação (a séria e a outra…). Há mais liberdade de movimento geográfico e há também a internet (redes sociais). Assim sendo, verificam-se variados comportamentos, que se vão passando através da internet, como o chamado “sex-dating”, com o relacionamento virtual, com as estimulações à distância, etc.. São desafios não apenas para os jovens, mas também para o comportamento sexual em geral e para os sexólogos do futuro.

SPSC Quais são os principais inimigos de uma sexualidade saudável na terceira idade (dos 65 aos 80) e na quarta idade (dos 80 em diante)?

APP – A sexualidade na terceira e quarta idade deve ser preparada desde cedo. Melhor dizendo, ninguém acorda para o comportamento sexual numa idade avançada. Temos que o “acarinhar” desde sempre. Não há dúvida que o chamado envelhecimento ativo (ou com êxito) é uma condição essencial para que a dimensão sexual possa ser uma realidade nessas idades. É necessário que seja completamente eliminada a ideia de que há uma diminuição ou mesmo “uma grande perda” do desejo e das capacidades de resposta sexual das mulheres (muitas vezes é o contrário) e que existe uma andropausa do homem que também limita a sua expressão sexual. O que eu digo muitas vezes em consulta é que a entrada na aproximação da terceira idade pode ser um momento para reavaliação e dinamização da relação afetiva e sexual do casal idoso. No caso de viuvez há ainda muitos tabus. Muitos tabus a vencer. As gerações mais novas das famílias precisam aceitar que o avô ou a avó tem um namorado e andam muito felizes com isso. Muito haveria a dizer sobre este problema, sobretudo a necessidade de renovação da dinâmica interna de funcionamento dos chamados lares de terceira idade.

SPSC – O que diz aos seus pacientes (na terceira e quarta idade) quando percebe que deixaram de se permitir o direito a uma sexualidade saudável e feliz?

APP – Aquilo que eu costumo dizer é que não desistam, dado que a experiência sexual nesse período de vida está muitas vezes ligada a fortes sentimentos de amor e que se assim suceder podem resultar num período de vida de muita satisfação.

SPSC – Que pressões sociais e familiares sentem as pessoas na terceira e quarta idade relativamente às suas vivências afetivas e sexuais?

APP – Como disse anteriormente, as expressões familiares e sociais são muito importantes na expressão das diferentes dimensões na sexualidade do idoso. Por um lado, há pressões baseadas no que alegadamente parece mal, é ajustado ou vergonhoso, etc., por outro, há as preocupações com os bens materiais ligados às heranças. 

SPSC – Que discursos públicos é preciso promover em relação à sexualidade dos mais maduros (terceira e quarta idade) e em que contextos é preciso sublinhá-los?

APP – Primeiro que tudo, é necessário que a reforma venha a tempo de o idoso poder realizar sonhos que tenha tido durante a vida.
Poderá ser a realização de forma calma e sem pressões de uma sexualidade plena que muitas vezes não foi possível durante a vida. Assim, não alongar demais a idade da reforma e fazer com que esta seja financeiramente adequada, é algo a exigir dos poderes públicos.