Católicas e Católicos LGBT: Um Duplo Estigma!


Católicas e Católicos LGBT: Um Duplo Estigma!

Uma reflexão de…
José Leote, Fundador e Coordenador Nacional da Rumos Novos – Católicas e Católicos LGBT

 

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Rumos Novos – Católicas e Católicos LGBT
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Data
21 de fevereiro de 2018

A Rumos Novos – Católicas e Católicos LGBT, fundada em 1 de maio de 2008, é uma comunidade de fiéis católicos unidos pela sua fé, mas igualmente pela sua orientação sexual. Acreditando que «Deus… chama a igreja a ministrar a cada homem, mulher e criança, com a solicitude pastoral do nosso Senhor compassivo»[1] trabalha para que a pastoral com as pessoas LGBT possa ser uma realidade ao nível das dioceses e paróquias portuguesas, pois as pessoas LGBT, como de resto todas as pessoas, não devem sofrer preconceito em relação aos seus direitos humanos básicos, tendo direito ao respeito, amizade e justiça e devendo desempenhar um papel ativo nas paróquias e na comunidade católica em geral. Às pessoas LGBT católicas a Rumos Novos oferece uma palavra inclusiva que se estende igualmente aos pais e famílias, convidando-os a aceitarem a graça de Deus presente nas suas vidas e a confiarem na misericórdia infalível de Jesus nosso Senhor, pois todas e todos são chamados a se tornarem um corpo, um espírito em Cristo.

A presença das pessoas LGBT no seio da Igreja Católica ganhou uma visibilidade mais marcante e mediática após as palavras do Papa Francisco: «Quem sou eu para julgar!» e elas mesmas deram um novo alento e conforto a todo este conjunto de fiéis. Apesar delas ainda é grande o estigma que este grupo de pessoas sofre.

Falar de estigma é falar de uma rejeição genérica, não somente ao nível da pessoa, mas outrossim de todas as pessoas pertencentes a um determinado grupo, neste caso, tendo por base a sua crença religiosa e a sua orientação sexual, uma rejeição que lhes torna difícil construir uma identidade pessoal e de autoestima bem alicerçadas. Na natureza heterogénea da nossa sociedade a questão do estigma assume uma natureza ainda mais complexa, pois ser uma católica ou um católico LGBT sujeita a pessoa a um duplo estigma, no qual a pessoa pode sentir-se ameaçada na sua dupla condição: a de católico e a de pessoa LGBT. Tensão esta que pode ser difícil de suportar para muitas e muitos, em particular para os mais jovens[2].

Todos concordamos que um dos principais efeitos do estigma – seja ele interpares/social […] ou religioso […] – é minar o sentimento de identidade da própria pessoa, então o cuidado pastoral dispensado às pessoas católicas LGBT deve ir precisamente no sentido de o restaurar, bem como na reconciliação destas pessoas com a mesma igreja, da qual se afastaram, tantas vezes, num profundo sentimento de dor e amargura

O Primeiro Estigma

Provavelmente o local onde menos se pensaria existir um estigma em relação às pessoas católicas LGBT seria interpares, isto é, no seio da própria comunidade LGBT. No entanto, é precisamente aqui que se assiste ao primeiro estigma. Na sua esmagadora maioria constituída por agnósticos e ateus, ou mesmo por católicas e católicos profundamente marcados pela rejeição por parte da igreja, esta comunidade olha com particular desconfiança para estas pessoas, não percebendo muitas vezes a sua persistência na fé e, mesmo, por mostrarem o seu desacordo em relação a determinados comportamentos «mais desinibidos» por parte de algumas pessoas LGBT. A este título veja-se, por exemplo, que a presença de católicas e católicos LGBT nas marchas LGBT é vista como algo de inusitado, quase como se aquelas pessoas não devessem estar ali. Lembremo-nos que há alguns anos constituiu um verdadeiro espanto a presença de um elemento da Rumos Novos que no seio das intervenções no final da marcha, em Lisboa, subiu ao palanque para falar de Cristo; ou, mais recentemente, como são acolhidos com algumas vaias e assobios as intervenções de elementos de grupos LGBT católicos em marchas um pouco por todo o lado. Embora possamos afirmar que muito já se fez em relação a este estigma, ele ainda continua bem presente no seio da comunidade LGBT o que marginaliza ainda mais um grupo de pessoas já estigmatizadas.

O Segundo Estigma

As posições assumidas em inúmeros documentos e pronunciamentos da Igreja Católicas em relação à homossexualidade e ao acolhimento das pessoas católicas LGBT têm contribuído para prolongar no tempo a presença daquilo a que denominarei o segundo estigma, ou seja, a rejeição por parte de amplos setores da Igreja Católica institucional[3] das pessoas católicas LGBT, ou a imposição de determinados comportamentos que vão contra a natureza destas pessoas. Esta rejeição contribui, ainda mais, para a estigmatização das pessoas católicas LGBT, já de si marcadas pelo preconceito social e que no local onde esperariam ser acolhidas – a igreja – encontram, antes, portas que se fecham e mãos que não acolhem.

Este estigma torna grande e pesado o pecado da igreja em relação a estes fiéis, pois tantas vezes as suas atitudes são precisamente a negação da mensagem do próprio Jesus Cristo de que a Igreja católica deve ser testemunha fiel. Tornam-se particularmente graves todas as atitudes discriminatórias que têm conduzido a tantos suicídios, depressões e mergulhos em estilos de vida que nunca teriam acontecido se, desde sempre, a atitude fosse de acolhimento e de inclusão, pois estas pessoas necessitam na sua igreja de uma mão aberta que as acolha e não de um punho cerrado que as derrube.

A necessidade de ultrapassar este estigma encontra algum respaldo no atual Papa, não somente na cadeira de Pedro, mas igualmente na sua posição anterior enquanto arcebispo de Buenos Aires e na sua disponibilidade de estender a mão a todas e todos os que se encontram nas periferias da sociedade, com particular ênfase para aquilo a que o Papa chama de «periferias existenciais», que incluem os divorciados recasados e as pessoas LGBT.

O modo como esta aproximação à realidade das pessoas LGBT e consequentemente o início da «suavização» deste segundo estigma será colocado em prática e compaginado com os ensinamentos tradicionais da Igreja é algo que ainda merece um aceso debate no seio da Igreja Católica. Para explorar a forma como este estigma de se ser LGBT e católico pode ser abordado, parece-me necessário fazer três coisas: primeira, explorar as origens religiosas possíveis do estigma de que as pessoas católicas LGBT são objeto; segunda, examinar que abordagens pastorais propõe a Igreja para estas pessoas; finalmente, que propõem as pessoas católicas LGBT à sua igreja.

O Catecismo da Igreja Católica, no seu parágrafo 2358, afirma que «um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente radicadas… Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta»

Religião e Homossexualidade

Os textos judaico-cristãos contêm condenações explícitas do comportamento homossexual, particularmente o masculino, caldeadas por referências que alguns interpretam como eróticas em relação ao futuro rei David e Jónatas e em relação ao amor particular de Jesus por um dos seus discípulos, tradicionalmente identificado por João.

O cerne da questão é sabermos até que ponto – pelo menos, na linha da nossa tradição judaico-cristã – é que as condenações tradicionais referentes ao comportamento homossexual podem ser transpostas e aplicadas ao que podemos denominar como uma situação completamente nova hoje vivida e que, certamente, não é aquela abordada nos textos bíblicos, ou mesmo aquela a que se referem os teólogos na linha mais tradicional da igreja católica, se considerarmos que as pessoas não se comprometem em atos homossexuais, mas antes vivem toda a sua orientação sexual direcionada para pessoas do seu próprio sexo. Por exemplo, James Alison, antigo sacerdote jesuíta, defende que esta situação completamente nova necessita, por parte da igreja, que se proceda a uma revisão completa das atitudes da hierarquia católica face à homossexualidade, argumentando que se a Graça assenta na Natureza, então a descoberta da orientação homossexual é um facto simples da Natureza e não um desvio do desígnio de Deus ou da lei natural. Contudo, posso sublinhar que, até há bem pouco tempo, os documentos oficiais do Vaticano sobre a homossexualidade escamotearam claramente a sua condição permanente, certamente por receio de interpretações mais abrangentes como a de James Alison. Em vez disso, esses documentos faziam a distinção clara entre aquilo que se considerava a homossexualidade enquanto condição – descrita como objetivamente desordenada, mas não em si pecaminosa – e o comportamento homossexual, sempre descrito como pecado grave.

Aqui chegados será legítimo que nos perguntemos: se esta é a posição formal e oficial da igreja católica, como podem as pessoas LGBT não sofrer com o sentimento de serem estigmatizadas pela sua própria igreja? Contudo, podemos igualmente reter que muitos católicos e católicas – incluindo muitos membros da hierarquia – não pensam desta forma e creem ser possível conduzir a sua sexualidade de uma forma que esteja em consonância com aquilo que é proposto pelo Evangelho. Nesta situação encontra-se a Rumos Novos – Católicas e Católicos LGBT.

Consideremos ainda que este estigma – bem como aquele que considerei o número um – tem raízes num passado remoto e que não podemos associar exclusivamente, mas também, devido à ação da própria igreja. Desta forma, a própria comunidade católica LGBT deve ser chamada, ela própria, a ser a principal agente de mudança das mentalidades encontrando a verdadeira identidade da católica e do católico LGBT modernos. O desafio para a igreja será o de discernir se pode ajudar neste processo e se o pode fazer enquanto permanece fiel aos seus princípios fundadores.

Todos concordamos que um dos principais efeitos do estigma – seja ele interpares/social, como no primeiro caso, ou religioso, como no segundo – é minar o sentimento de identidade da própria pessoa, então o cuidado pastoral dispensado às pessoas católicas LGBT deve ir precisamente no sentido de o restaurar, bem como na reconciliação destas pessoas com a mesma igreja, da qual se afastaram, tantas vezes, num profundo sentimento de dor e amargura. As duas formas de alcançar este desiderato são através de grupos de apoio – formados pelas próprias pessoas católicas LGBT, como acontece com a Rumos Novos – e da direção espiritual individualizada – criados pela própria hierarquia católica, como acontece já em alguns países europeus, no Brasil e nos Estados Unidos.

Que propõe a Igreja às pessoas católicas LGBT

A Igreja católica afirma que existe um valor moral universal dos atos humanos, independente das circunstâncias desses atos, pelo que considera os atos homossexuais «objetivos» como pecaminosos. Contudo, ela distingue a moralidade dos atos da responsabilidade das pessoas que os vivem. Nas situações «homoafetivas», a Igreja católica não aprova a passagem ao ato sexual, reconhecendo embora que a avaliação da liberdade real e, portanto, da responsabilidade moral das pessoas é sempre difícil de fazer. Uma pessoa homossexual não é responsável pela sua orientação psicoafetiva e não controla necessariamente a sua expressão. Na teologia contemporânea, o argumento central assenta numa antropologia onde a diferença dos sexos, com o seu significado teológico – a união entre homem e mulher à imagem da relação com Deus – seja um elemento essencial de identidade e do devir humano, na sua dimensão sexual, conjugal e procriativa: a humanidade é criada na complementaridade do homem e da mulher (Gn 2, 20-24), «à imagem de Deus» (Gn 1, 27) e abertos à procriação, pelo que os atos homossexuais são considerados objetivamente desordenados, pois «o prazer sexual é moralmente desordenado quando procurado por si mesmo, isolado das finalidades da procriação e da união»[4].

A resposta pastoral da Igreja às pessoas LGBT deve envolver uma atitude de respeito e um acompanhamento da sua situação, para além da vida sacramental, oração, aconselhamento e acompanhamento individual, de modo a que toda a comunidade cristã possa reconhecer o seu chamamento à ajuda destes seus irmãos e irmãs, sem os marginalizar ou forçar ao isolamento. As pessoas LGBT são, assim, «chamadas a realizar na sua vida a vontade de Deus e… a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar devido à sua condição»[5], sendo convidadas «à castidade»[6].

[…] como nos lembra o Vaticano II, «As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do mundo atual, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo e não há nada de verdadeiramente humano que não encontre eco no seu coração»

Que propomos à Igreja Católica

O Catecismo da Igreja Católica, no seu parágrafo 2358, afirma que «um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente radicadas… Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta».

Alicerçados nestes pressupostos, nas palavras do próprio Papa Francisco e num número cada vez maior de leigos comprometidos, sacerdotes e membros da hierarquia é possível considerar que o acolhimento com respeito, compaixão e delicadeza, de ambas as partes – pessoas católicas LGBT e igreja institucional – será a chave para fraternalmente ser possível todas e todos continuarmos sendo igreja.

Atualmente a Igreja está confrontada, tal como o conjunto da sociedade, com um dado novo: um conjunto de fiéis que sendo homossexuais não se reveem nos ensinamentos tradicionais da igreja sobre a sexualidade humana, mas pretendem seguir as suas vidas como católicas e católicos, no seio de relações responsáveis, estáveis e perenes. Esta identidade «homossexual» é algo de novo, não existia nos séculos passados, nem nunca existiu, pois, como tão bem o sublinhou Michel Foucault, no passado somente conhecemos as «práticas homoeróticas». A abordagem psicomédica das sexualidades e da homossexualidade desenvolvida no século XIX, colocou progressivamente em destaque a sexualidade e a orientação sexual, como «verdade» do sujeito. Na sua realidade e na sua expressão, a orientação sexual é considerada atualmente como a marca da autenticidade da pessoa e das suas aspirações mais profundas.

A Igreja deve ouvir essas expectativas e a questão fundamental diz respeito ao realismo e ao acompanhamento. Na diversidade das situações de facto (vida em casal ou sozinho) e dos tipos de sexualidades, eventualmente em contradição com as suas prescrições, a Igreja deve, no entanto, refletir sobre a maneira de acompanhar as pessoas homossexuais, como o faz com os heterossexuais, em direção a uma maior fidelidade, respeito e amor ao próximo, numa caminhada humana e espiritual e não a vivência de um amor sem atos sexuais, mesmo quando os cônjuges vivem sob o mesmo teto. É precisamente a construção de uma ponte de escuta, compreensão e caminhada mútuos aquilo que as pessoas católicas LGBT, através da Rumos Novos, propõem à sua igreja e à sociedade, como forma de ultrapassar esta dupla estigmatização. Por isso a Rumos Novos organiza-se de modo a unir as católicas e os católicos LGBT, bem como as suas famílias, amigos e pessoas queridas de modo a que todas e todos nos capacitemos para ser um instrumento através do qual possamos ser ouvidos pela Igreja e promover nela as necessárias reformas, que permitam desenvolver uma teologia sobre toda a sexualidade que conduza à reforma dos ensinamentos atuais da igreja respeitantes à sexualidade humana, bem como para a aceitação das católicas e dos católicos LGBT como membros completos e iguais do único Cristo Salvador, pois, como nos lembra o Vaticano II, «As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do mundo atual, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo e não há nada de verdadeiramente humano que não encontre eco no seu coração»[7].

[1] Vaticano, Carta da CDF «Sobre o Cuidado Pastoral das Pessoas Homossexuais» outubro de 1986.

[2] Estudos internacionais vários permitem demonstrar que, por exemplo, a taxa de adolescentes LGBT com um historial de, pelo menos, uma tentativa de suicídio no ano anterior é de cerca de 29% contra 6% dos adolescentes heterossexuais (Kann L, Olsen EO, McManus T, et al. Sexual Identity, Sex of Sexual Contacts, and Health-Related Behaviors Among Students in Grades 9-12 – United States and Selected Sites, 2015. MMWR Surveill Summ 2016; 65(9): 1-202)

[3] Expressão utilizada como facilidade de linguagem e referindo-se aos setores que, no seio da Igreja católica, têm o poder de decisão.

[4] Catecismo da Igreja Católica, p. 2351.

[5] Ibidem, p. 2358.

[6] Ibidem, p. 2359.

[7] Constituição Gaudium et spes, sobre a Igreja no mundo atual, n.º 1.