No consultório médico “vivemos ainda um pacto de silêncio” em relação à sexualidade


No consultório médico “vivemos ainda um pacto de silêncio” em relação à sexualidade

À conversa com…
Letícia Abreu é especialista em medicina geral e familiar, e sexóloga. Responsável pela consulta de Medicina Sexual do Centro de Saúde do Bom Jesus, no Funchal (Madeira).

 

Percursos…
Licenciada em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra; Terapeuta sexual pela Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica (V Curso de Pós Graduação em Sexologia Clínica, com ano prático no Hospital de São João no Porto, sob orientação da Dra. Márcia Mota); VI Curso de Medicina Sexual, da Sociedade Europeia de Medicina Sexual (ESSM), em Oxford, que permitiu acesso ao 1º Exame Europeu de Medicina Sexual (grau de Fellowship pelo European Committee of Sexual Medicine).

 

Data
26 de Março de 2018

Entrevista
Isabel Freire

Letícia Abreu é médica de família e responsável de uma consulta de Medicina Sexual, no Funchal. Considera que para muitos/as especialistas é ainda complicada a abordagem da sexualidade com o doente, no consultório. “Porque se sentem pouco à vontade. Porque o tempo da consulta é limitado. Porque receiam ‘abrir uma caixa de Pandora’ e não saber o que fazer depois com ela”. Quanto medo temos ainda da saúde sexual, mesmo em contextos de saúde? E fora deles?

Letícia Abreu defende que precisamos investir na formação junto de estudantes de medicina, e dar mais atenção à prevenção e promoção da saúde sexual. Médicos de família e médicos de saúde pública precisam trabalhar em parceria, criando Programas de Formação e de Atuação ao nível das instituições de ensino e de solidariedade social, dando formação aos utentes e profissionais.

Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica – O tema da sexualidade é hoje uma narrativa fácil ou difícil no consultório? Para quem e em que medida?

Letícia Abreu – Esse foi o tema da minha investigação no Curso de Sexologia Clínica (da SPSC). Os médicos de família indagam os utentes (de ambos os sexos) sobre a sexualidade? Se não o fazem, quais são os motivos? Estas eram as minhas interrogações. Concluí que a maioria só indagava sobre o tema se os utentes o fizessem primeiro. E porquê? Porque se sentem pouco à vontade. Porque o tempo da consulta é limitado. Porque receiam ‘abrir uma caixa de Pandora’ e não saber o que fazer depois com ela. Vivemos ainda um pacto de silêncio. O profissional espera que seja o utente a tomar iniciativa. O utente espera o mesmo do profissional. E isto é extensível às diversas especialidades médicas que lidam com esta vertente da saúde. A normalização destes temas (não a sua banalização) tem ajudado colegas a estarem mais confortáveis na sua abordagem. Mas é necessário promover o conhecimento da sexualidade, a montante, durante a formação universitária. No estudo que desenvolvi, a maioria dos colegas admitiu não ter tido qualquer formação sobre sexualidade (ou apenas noções mínimas).

SPSC – Faz sentido o/a médico/a de família perguntar numa consulta de rotina, como vai o apetite, o sono, a sexualidade?

LA – Obviamente! Num país onde a prevalência de problemas de saúde mental é grande, essas são as três questões basilares para o seu despiste. A precariedade do estado social, o empobrecimento das massas, os baixos rendimentos da classe média, causaram um aumento das situações vulgo “sociais”, dos transtornos de carácter psicogénico, dos comportamentos marginais. O papel do médico de família é de diagnóstico precoce, numa perspectiva sistémica, compreendendo o indivíduo como estando integrado num contexto familiar e social. Deparo-me algumas vezes com situações caricatas. Utentes medicados para um síndrome depressivo, sem análise do contexto familiar/conjugal (terreno fértil para a disfunção sexual que surgiu depois). Utentes com disfunção sexual (com repercussão na relação do casal) que deprimem à posteriori, sem que – por receio – se tenha explorado o que surgiu primeiro. Um receio bilateral (médico/utente) de falar sobre o que é sexual. Utentes oncológicos, uma população que vejo a crescer, e a quem ‘esquecemos’ (ou preferimos omitir) o que é da esfera da sua sexualidade. É imperativo mudar mentalidades. Entenda-se, mentalidades do doente e do profissional. Referindo-se a sobreviventes do Holocausto, Esther Perel diz: “Há aqueles que sobreviveram e aqueles que aprenderam a reviver”. Temos o dever enquanto profissionais de ajudar doentes oncológicos a aprender a reviver.

Entendo que, da perspectiva do profissional, seja mais fácil ignorar o que se esconde nos bastidores do problema e simplesmente prescrever uma terapêutica. Simples, rápido, mas pouco eficaz. Há problemas puramente médicos ou médico-cirúrgicos, e deve ser sempre feito o despiste orgânico. Porém, quando se observa o casal, e não apenas aquele que colocou o problema, é surpreendente o que se descobre

SPSC – Numa consulta de pediatria, a médica perguntou à minha filha (então com 5 anos), se já namorava, dizendo-lhe descontraidamente que as crianças podiam namorar com crianças, só não podiam – nunca – namorar com adultos. O que podem os especialistas em medicina geral e familiar fazer pela prevenção da saúde e direitos sexuais na infância?

LA – Faz todo o sentido a observação da pediatra. As consultas de Saúde Infantil estão estipuladas pela Direção Geral de Saúde, de acordo com idades-chave. A abordagem (ainda que breve) pode e deve ser assertiva. Contudo, não é suficiente. Entendo que o médico de família tem um papel na comunidade. Deve colaborar com escolas, lares de acolhimento, forças policiais e outras instituições de âmbito social, dando formação aos utentes e profissionais. Temos de apostar na Prevenção e Promoção da Saúde. O ideal seria uma parceria entre médicos de família e médicos de saúde pública, com a criação de Programas de Formação e de Atuação ao nível das instituições de ensino e de solidariedade social. É importante sensibilizar professores e educadores para noções básicas do desenvolvimento psicossexual das crianças e jovens. Esta informação ajuda os profissionais a distinguir comportamentos desviantes ou ‘suspeitos’ numa criança/jovem vítima de abuso. A dar-lhes informação de segurança. Por exemplo, a importância de saber distinguir a esfera publica da esfera privada. A importância de identificar os toques “OK” dos toques “Não OK”. A importância de veicular a noção de que o corpo é da criança, de trabalhar as emoções e o reconhecimento das mesmas nos outros, da noção dos limites de si e do outro. Se começarmos a sensibilizar todos os profissionais em formação e se conseguirmos o mesmo na comunidade teremos já feito muito. Mas este deve ser um trabalho contínuo.

SPSC – E na adolescência?

LA – Na adolescência fazem-se sentir as ondas de propagação daquela (in)formação que foi (ou não) transmitida na infância. Estamos sempre muito focados na prevenção das IST e da gravidez na adolescência. Esquecemo-nos do resto. Ainda que a Educação Sexual esteja legislada, o professor que lecciona é nomeado sem se indagar da sua capacidade ou conhecimentos. O conteúdo programático (se houver tempo para o leccionar) resume-se muitas vezes às funções biológicas e reprodutivas da sexualidade. Não podemos deixar de debater com os adolescentes, por exemplo, além da Informação Básica, a Informação de Segurança. Por exemplo, se o abuso sexual implica o toque (ou não). Se há fronteiras que não devem ser ultrapassadas nas relações de namoro. Se (e como) nos devemos preocupar com a segurança em encontros online (chatrooms). É necessário reforçar com os adolescentes o tema dos limites, do reconhecimento das emoções em si e no outro, educar para a diferença, para as emoções e os afectos. Esta lacuna a montante faz culminar a violência no namoro nesta faixa etária. A colaboração de um médico de família – devidamente formado – é valiosíssima. Pode ajudar a elaborar programas de formação para os profissionais e utentes; protocolos de actuação e encaminhamento; divulgação dos serviços de atendimento ao jovem, etc.. Em suma, servir de elo de ligação entre o Sistema Nacional de Saúde e o exterior.

SPSC – Que sensibilidade vem encontrando – entre especialistas de medicina geral e familiar – relativamente ao peso das questões da saúde (e direitos) sexuais (e de género), para o bem-estar e qualidade de vida das pessoas?

LA – Vejo-o em crescendo. É minha convicção que o médico de família está numa posição privilegiada para abordar estas questões. Vê o utente no seu todo, sendo mais fácil fazer diagnósticos diferenciais e portanto afunilando hipóteses e soluções! Esta abrangência é muito subestimada e desvalorizada pelos utentes, pelos colegas e muitas vezes pelos próprios. Precisamos reconhecer e lidar com os nossos vieses e preconceitos. Só depois estaremos mais “livres” para essa sensibilidade e para nos sentirmos confortáveis ao abordar a esfera sexual no outro.

SPSC – E ao nível da gestão das instituições de saúde pública? Há sensibilidade para a importância das questões da saúde sexual, para além da dimensão reprodutiva?

LA – O Estado diminuiria a despesa se apostasse na prevenção. Se a importância dada à sexualidade transbordasse a perspectiva meramente reprodutiva, os doentes oncológicos seriam mais acompanhados, os quadros de dor na mulher não seriam banalizados (nem subestimado o seu impacto), o casal infértil seria abordado de forma holística, as Perturbações da Identidade de Género seriam asseguradas multidisciplinarmente, sem morosidade exasperante. Poderia dar outros inúmeros exemplos. Mas o caminho faz-se caminhando. Desde as primeiras diligências para instituir a consulta de sexologia, não foram poucas as vezes em que me vi confrontada com comentários sexistas, piadas com humor pouco refinado e alguma altivez, proveniente de pessoas do secretariado, aos serviços informáticos, passando por profissionais de saúde e órgãos de gestão. Ainda ouço quando faço apresentações que me são solicitadas. Confunde-se muito a esfera profissional com pessoal e facilmente se dão rótulos às pessoas. Especialmente em sítios pequenos, como é o caso. Devo confessar que senti alguma relutância em iniciar clínica neste âmbito, não só pelo isolamento sentido, mas também pela pouca receptividade à iniciativa. Tenta-se mudar mentalidades, posturas, políticas. Por outro lado, as exigências próprias de um exercício consciente, exigente e atualizado, têm sido suportadas individualmente (sem apoio institucional, em termos financeiros ou culturais). Apesar disso, tem sido uma experiência apaixonante, repleta de desafios e projetos, em termos formativos e clínicos.

SPSC – Uma ‘engenharia do silêncio’ relativamente à sexualidade marcou várias gerações que foram educadas durante o Estado Novo. Hoje não faltam discursos sobre sexualidade nas esferas mediáticas e públicas. Na sua prática clínica sente que as pessoas estão informadas, conhecem o seu corpo, lidam abertamente com a sua sexualidade?

LA – É verdade que havia o medo e da censura. Por outro lado parece-me que o erotismo era mais rico em detalhes. Hoje fala-se abertamente sobre sexualidade. Mas não estaremos a banalizar e empobrecer estes discursos, limitando-o à corporalidade e à genitalidade? As pessoas acham que existe um número de relações sexuais a ter por dia, por semana, por mês. Que a sexualidade só tem lugar para os jovens, os bonitos e os saudáveis. Que existe um modelo corporal normativo, sem lugar para a diferença, incentivado pela indústria pornográfica e infelizmente aproveitado pela área da cosmética com fins lucrativos pouco lícitos. O que me parece também preocupante é a falta de tolerância à frustração desde tenra idade, que se reflete mais tarde, nesta incapacidade de “trabalhar” a descoberta do outro. E que requer tempo, paciência, perseverança. O erotismo vai-se perdendo e aumentam-se os problemas relacionais. Estamos a perder as noções do humanismo. Passámos duma “engenharia do silêncio” como diz, para uma em que tudo se fala, mas em que se escondem muitos “não ditos”.

SPSC – É responsável pela Consulta de Medicina Sexual no Centro de Saúde do Bom Jesus, no Funchal. Trata-se de uma consulta interdisciplinar. Trabalha em parceria com uma psicóloga. O que lhe ensinou a experiência cerca desta interação?

LA – Trabalho em estreita relação com a Dra. Carla Câmara (Consulta de Sexologia, Hospital Marmeleiros) que tem sido uma parceira inestimável neste projeto conjunto. Ambas partilhamos a mesma paixão e entusiasmo por esta “disciplina” humanística que é a sexualidade humana e ainda um mesmo sentimento de isolamento, quer pelas idiossincrasias inerentes à vivência numa ilha, quer pela ausência de respostas adequadas do Serviço Regional de Saúde. Tentamos, sempre que possível, reunirmo-nos e discutirmos os casos em comum.

Desde as primeiras diligências para instituir a consulta de sexologia, não foram poucas as vezes em que me vi confrontada com comentários sexistas, piadas com humor pouco refinado e alguma altivez, proveniente de pessoas do secretariado, aos serviços informáticos, passando por profissionais de saúde e órgãos de gestão. Ainda ouço quando faço apresentações que me são solicitadas

SPSC – Pela sua experiência clínica, a sexualidade é vista como ‘parte de um todo’, na relação?

LA – Quando me referenciam casos de dificuldades sexuais, costumo salientar que se está a observar apenas a ponta do iceberg, subestimando o que se encontra submerso. Há uma tendência para isolar uma disfunção sexual de todo o contexto duma relação. E é muito frequente que isto aconteça. Entendo que, da perspectiva do profissional, seja mais fácil ignorar o que se esconde nos bastidores do problema e simplesmente prescrever uma terapêutica. Simples, rápido, mas pouco eficaz. Há problemas puramente médicos ou médico-cirúrgicos, e deve ser sempre feito o despiste orgânico. Porém, quando se observa o casal, e não apenas aquele que colocou o problema, é surpreendente o que se descobre. Descortinar o contexto relacional é, no meu ver, condição sine qua non para a adequada resolução do problema. Do ponto de vista dos doentes, se alguns estão dispostos a trabalhar para resolver o problema relacional subjacente e entendem a sua génese, outros preferem que tudo seja solucionado com um simples comprimido azul. Esta medicalização dos problemas relacionais (disfarçadamente sexuais) é validada pelos media que difundem a ideia de que a medicina é panaceia para qualquer problema.

SPSC – Como se posiciona relativamente à possibilidade de vermos o género para além de um esquema binário, de forma diversa, transversa, despatologizada?

LA – Invocando o exemplo de Alfred Kinsey, costumo dizer que se o mundo fosse a preto e branco seria nauseante. Todos somos um espectro entre aquelas duas cores, variando em tonalidades de cinzento. Não podemos colocar as pessoas em caixinhas, categorizando-as sob uma chave dicotómica. A diversidade na natureza humana sempre existiu e existirá. A questão está em como cada um de nós lida com esse facto. ‘Patologizar’ apenas serve para marginalizar, discriminar e perpetuar o sofrimento de quem se sente só entre os demais. É cruel. Há que respeitar o outro enquanto ser humano integral, dotado de livre arbítrio e de uma consciência moral.

SPSC – Se pudesse – por magia – fazer desaparecer três preconceitos nocivos da sexualidade, que preconceitos (ideias, construções sociais) escolhia?

LA – Atualmente ainda se observa um certo consentimento e permissão da violência de um género sobre outro, designadamente o masculino sobre o feminino (já o contrário é tabu pela vergonha do estatuto masculino). Constato ainda um pacto de silêncio por parte de profissionais e da população. Finge-se que não se vê. Portanto, escolhia o reconhecimento social de que existe violência de género. Outra ideia que fazia desaparecer era a primazia dada à sexualidade masculina em prol da sexualidade feminina. Pessoalmente, sinto-me indignada por este tratamento preferencial que é dado aos problemas sexuais do homem. Veja-se o exemplo da investigação em disfunção eréctil, para a qual de se investe rios de dinheiro, enquanto pouco se investe na área do desejo sexual feminino. Mas há outros exemplos. Relativamente aos síndromes dolorosos pélvicos, prevalece a mentalidade que uma mulher tem de sofrer calada, anos a fio, pois tem de “cumprir o seu dever” marital. E não podia deixar de comentar a pouca relevância dada ao impacto da doença oncológica (designadamente da mama) na saúde sexual da mulher, enquanto se apregoa tanto o impacto da doença prostática no desempenho sexual do homem. Finalmente, o pouco crédito dado às crianças e jovens, enquanto vítimas de violência sexual. Persiste não só o descrédito como a culpabilização. Estas pessoas são massacradas muitas vezes com interrogatórios em catadupa. Poucas são as instituições com formação adequada para uma abordagem sistematizada (child friendly) que apure os factos sem se apontar dedos ou criar bodes expiatórios.

SPSC – Como surgiu o seu interesse pela sexologia?

LA – O contacto constante com mulheres provenientes de várias regiões da ilha e com variado estatuto socioeconómico, permitiu-me conhecer diferentes realidades e questões do foro sexual muitas vezes não verbalizadas (ou camufladas sob expectativas sociais da mulher).

*A pedido de Letícia Abreu, o texto desta entrevista não respeita o novo Acordo Ortográfico.