O Oráculo de Delfos, a sexualidade no decurso da evolução hominídea e o que a Arte nos pode dizer na ausência da escrita


O Oráculo de Delfos, a sexualidade no decurso da evolução hominídea e o que a Arte nos pode dizer na ausência da escrita

 

Uma reflexão de…
A. Santinho Martins, endocrinologista, sexólogo e ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica (2004-2005).

 

Percurso 
Licenciado em Medicina pela Universidade Clássica de Lisboa. Assistente Hospitalar Graduado de Endocrinologia do Hospital Júlio de Matos (aposentado em 2005). Colaborador do Serviço de Genética do Hospital de Dona Estefânia (1994-1998). Professor auxiliar convidado do Mestrado em Sexologia da Universidade Lusófona (entre 1998 e 2014). Regente da Cadeira de Ergonomia da Faculdade de Belas Artes de Lisboa (1985-1992). Prémio Ricardo Jorge de Saúde Pública, 1984 (em co-autoria).

 

Data
28 de Abril de 2018

 

O Oráculo de Delfos estava situado, como o nome indica, numa, ao tempo, importante cidade grega entretanto desaparecida, localizada nas encostas do Monte Parnaso. O Templo dedicado a Apolo, foi fundado no séc. VIII aC, teve uma longa duração de cerca de mil anos, tal a importância das previsões ali efectuadas que mereceram a atenção das mais destacadas figuras das Culturas grega e romana. A figura central era a sacerdotisa de serviço denominada pitonisa.

A sala, onde se antevia o futuro, era relativamente pequena e estava situada sobre uma fenda geológica, donde emergiam vapores, que uma equipa multidisciplinar de investigadores, há menos de vinte anos, concluiu que havia um gás diluído nesses vapores, o etileno. A pitonisa, que teria uma função de médium, sentava-se num banco, à beira da fenda e ia inalando os vapores que lhe provocavam um transe benigno, permanecendo consciente e eufórica, o que lhe permitia a comunicação com Apolo e a resposta às perguntas que lhe eram encomendadas. Não há a certeza, se a resposta ambígua, como interessava, era dada directamente pela pitonisa, ou se era interpretada pelos sacerdotes face às palavra e às vocalizações assim como pelas posturas corporais. Pensa-se que haveria mais do que uma pitonisa de serviço que se revezavam, para não se exporem excessivamente às sucessivas intoxicações que poderiam causar a morte, embora estas sessões não fossem contínuas nem, tão pouco, diárias.

A que propósito é aqui convocado o Oráculo de Delfos, onde se adivinhava o futuro?

Façamos uma rotação de 180o e obteremos assim como que um Oráculo de Delfos “inverso”, virado para o passado e vejamos quem são os actuais decifradores do passado, eles são os paleoarqueólogos, os paleoantropólogos, os paleobiólogos, os paleoclimatologistas, os paleontologistas. É muita gente a trabalhar seriamente para tentar desvendar o passado, com rigor científico, um passado com sete milhões de anos, mas a Ciência não é infalível nem estática, ela está em contínua evolução, aprofundando conhecimentos, partindo para novas hipóteses, que se podem confirmar ou não. O próprio processo investigativo arqueológico, sofre de uma limitação: as metodologias utilizadas, por razões óbvias, não permitem a sua replicação, deixando em aberto um vasto campo à especulação e à subjectividade. Mas certo, certo, é que, nos últimos cinquenta anos, os conhecimentos relativos à linhagem hominídea teve um desenvolvimento fantástico coincidente com o da Medicina, e aproveitando-lhe conhecimentos e novas tecnologias por ela utilizados, como a Neuroimagiologia, estudos hormonais, a Biologia molecular, a Genética e o Genoma humano, tornando mais compreensível o actual comportamento sexual humano, que permite regredir no tempo e perceber como aconteceu todo o processo evolutivo na formação da sexualidade e como esses mecanismos selectivos continuam presentes.

Poderão alguns dizer que não lhes interessa o passado, mas sim o futuro, como em Delfos. Não penso assim, mas para valorizar a minha opinião, não me ocorre onde li, mas pelo seu humor, não esqueci que, para credibilizar as nossas afirmações há sempre o recurso a um filósofo grego de serviço:

“Não obstante o parentesco e as semelhanças [com chimpanzés, os cães e os gatos, os elefantes e os golfinhos, os lobos] são avassaladores, sendo importantes para nos ajudarem a compreendermo-nos e a perceber como chegámos ao que somos”. Não é grego, é um cientista português com grande reconhecimento internacional, António Damásio, que se socorre da Etologia comparada. Vou mais longe, temos obrigação de tentar conhecer o passado, para compreender o presente e antecipar o futuro.

Se na história clínica, perguntamos pelos antecedentes familiares, que normalmente não vão além dos avós, porque não conhecer de antemão os ancestrais que se estendem por sete milhões de anos e os parentes da linhagem dos símios, com os chimpanzés e os bonobos a partilharem connosco 97% do nosso ADN?

É minha convicção, que em Sexologia, o conhecimento dos nossos ancestrais ajuda a compreender alguns comportamentos actuais. Sob o ponto de vista, pessoal e profissional, no conhecimento da nossa especiação vamos encontrar muitas respostas às nossas interrogações, numa base biopsicossocial.

Como exemplo, escudado nos enormes avanços da Biologia molecular e da Paleobiologia, recordar que o genoma humano foi determinado em 2003 e o do chimpanzé em 2005, seguindo-se de imediato a comparação entre os dois, mas a insaciabilidade do conhecimento humano levou a que rapidamente se conhecessem os genomas do orangotango, gorila, e bonobo, tendo como consequência a comparação genómica de todos os grandes símios e suas similitudes e diferenciações. A cada resposta da investigação científica levantam-se invariavelmente novos questionamentos, e, assim, passou-se para a tentativa de encontrar diferenças de comportamentos sexuais entre as espécies. A mesma questão foi levantada com a comparação genómica entre os neandertais e os denisovanos, já extintos, pertencentes à tribo Hominini.

A comparação, dos genomas do ancestral comum, última partilha de genes há 600 000 anos, do Homo sapiens, dos neandertais, dos denisovanos, excluindo intercruzamentos entre eles, pode ajudar, em muito, a compreensão da estrutura filogénica da sexualidade humana.

Incomoda-me, e não só a mim, que haja um certo diferendo entre a gente das ciências humanas (psicólogos, antropólogos, sociólogos) e a gente das ciências ditas exactas no posicionamento do funcionamento da mente e dos comportamentos humanos e não humanos; é evidente que a abordagem, aos temas, utilizando metodologias diferentes, provavelmente, poderá levar a conclusões que não são coincidentes. Enquanto a gente das ciências ditas exactas, onde se enquadra a biologia, num sentido amplo, não tem grande dificuldade em aceitar os aspectos culturais, lato sensu, no desenvolvimento psicológico e comportamental humano, já a gente das ciências humanas oferece alguma resistência à aceitação das influências biológicas (genes, hormonas e por aí fora), nesses mesmos desenvolvimentos. Falemos claramente da aprendizagem; não concordo com a teoria da tábula rasa, defendida por Locke, no século XVII, retomando a ideia de Aristóteles de que, ao nascer, o nosso cérebro é como a tábua, coberta por cera, utilizada pelos romanos para a sua escrita, de outra maneira, como uma folha de papel em branco. Há comportamentos que são inatos e socorro-me, mais uma vez, de Damásio (2010), “o inconsciente genómico, um importante aspecto evolucionista, mantém uma certa constância de comportamentos relacionados com os instintos, comportamentos automáticos, motivação, impulsos, que incluem a sexualidade”.

Enquanto a gente das ciências ditas exactas, onde se enquadra a biologia, num sentido amplo, não tem grande dificuldade em aceitar os aspectos culturais, lato sensu, no desenvolvimento psicológico e comportamental humano, já a gente das ciências humanas oferece alguma resistência à aceitação das influências biológicas (genes, hormonas e por aí fora), nesses mesmos desenvolvimentos

A plasticidade neuronal, a modificação permanente a nível do sistema nervoso central, é de dois tipos: tipo estrutural, com aparição e desaparição selectiva das conexões entre neurónios; e tipo funcional, modificação, no funcionamento, das conexões já existentes. As duas formas de plasticidade poderiam corresponder a dois estádios do desenvolvimento ontogénico e à codificação de dois tipos de memória.

A plasticidade estrutural presente na época pré-natal e durante o desenvolvimento pós-natal seria determinada pelos genes e pela informação sobre o meio. Nesta fase os processos de crescimento e de diferenciação neural têm um papel determinante com a aparição e desaparição selectiva dos prolongamentos e das conexões interneuronais. Hoje sabe-se que no cérebro humano, adulto, há regeneração dos neurónios cerebrais, provocando alterações na sinaptologia cerebral, também no hipocampo, estrutura relacionada com aprendizagem e memória, significando que esta remodelação sináptica hipocampal, abre caminho a novas aprendizagens.

Ainda dentro dos comportamentos inatos, referir o medo dos primatas, não humanos, às serpentes, reagindo com medo, gritos e geralmente fuga. Os macacos rhesus, criados em laboratório, que nunca tiveram qualquer contacto com as serpentes, reagem exactamente do mesmo modo.

 

História da especiação humana

O primeiro símio antepassado comum viveu na Ásia e pesava cerca de 200 kg, tendo aparecido há 20 milhões de anos. Aos 15 milhões de anos os orangotangos (Pongo) separam-se do antepassado comum. A partir dele, aos 7 milhões de anos, formam-se duas novas vias: a humana e a dos chimpanzés, que por volta do 1 milhão de anos sofrem a separação dos bonobos ou chimpanzés pigmeus. Os grandes símios africanos são o gorila (Gorilla gorila), o chimpanzé (Pan troglodytes) e o bonobo ou chimpanzé pigmeu (Pan paniscus). Sigamos a via hominini:

Há 7 milhões de anos – Australopithecus arcaicos.

Há 3,3 milhões de anos – Lucy – Australopithecus afarensis – Há quem argumente que Lucy e outros Australopitecinos eram bípedes e portanto considerados hominini, portanto membros primitivos do género Homo, por isso, também designados como Praeanthropus.

Há 1,7 milhões de anos – Homo habilis – características particularmente simiescas, com membros superiores mais compridos e os inferiores mais curtos, que nós humanos, e com uma curvatura pronunciada dos dedos dos pés, o que sugere que subiam às árvores para dormir ou em situações em que se sentissem ameaçados. Quando procuravam alimentos deslocavam-se pelo chão em posição bípede. Extinguiu-se aos 1,1 Milhões de anos,

Há 1,1 milhões de anos – Homo ergaster > Homo erectus. O homo Ergaster é tido como progenitor de todas as espécies posteriores de Homo.

Há 300 000 mil anos – O Homo Erectus dá origem ao Homos sapiens arcaico e aos Neandertais (que se extinguiram há 30 000 mil anos).

Há 200 000 mil anos – Homo sapiens arcaico tardio.

Há 50 000/40 000 mil anos – Homo sapiens sapiens.

As investigações dos fósseis têm permitido chegar a conclusões quanto à sua morfologia e locomoção. O estudo (físico e químico) da dentição habilita-nos a avaliar o tipo de alimentação e, a partir daí, em que condições ecológicas viviam e, com estes indícios intentar discernir sobre o comportamento sexual dos nossos ancestrais, talvez com tantas certezas como dúvidas. Assim, os nossos ancestrais australopitecinos teriam as mesmas dimensões corporais que os Chimpanzés e bonobos actuais. Os australopitecinos tinham um volume cerebral de 450 cc semelhante aos outros símios, e o Homo habilis andava nos 750 cc, mas se se considerar o volume corporal e o volume cerebral, o denominado coeficiente de encefalização, este não é muito diferente do dos australopitecinos. No Homo ergaster eram 1250 cc; houve um progressivo aumento e depois um pequeno retrocesso para se fixar nos 1350 cc do Homo sapiens arcaico, mantendo-se até à actualidade. No intervalo compreendido entre os 1,7 milhões de anos e os 300 000 anos, existiram cerca de 100 000 gerações. Em conformidade com a teoria evolucionária da selecção natural, de Charles Darwin, podemos partir para o estudo da sexualidade humana. Há dois tipos de selecção sexual: intrassexual, competição entre membros do mesmo sexo; e intersexual, competição e coordenação entre os dois sexos. Os primeiros da superfamília Hominoideia muito provavelmente teriam relações sexuais diurnas. Com os actuais chimpanzés, em liberdade, a maior parte das copulações ocorrem de manhã cedo ou no fim da tarde, quando o bando está menos disperso, e com posições ventral-dorsal (macho por detrás), ainda que, juntamente com os bonobos, tenham um leque maior de posições sexuais, como a posição face a face, comparados com outros primatas e mamíferos, com a maior parte a concretizar-se no chão. Nos hominini, a posição bípede, implicou um maior desenvolvimento dos glúteos, portanto um maior volume das nádegas, resultando nas fêmeas, uma ocultação e diminuição das dimensões da vulva, incluindo o clitóris, e, por isso, juntamente com a perda do pelo peitoral e o desenvolvimento mamário, o foco de atenção sexual, progressivamente, passou do dorso para a parte frontal e consequentemente uma maior frequência de cópulas face a face. E se continuarmos a fazer analogias com os chimpanzés e bonobos, é provável que as cópulas tenham sido em grupo, quer de multimachos quer de multifêmeas. No mesmo sentido, os primeiros hominídeos fêmeas devem ter copulado com muitos machos, concedendo acesso preferencial a machos dominantes no seu período mais fértil e evitando relações durante parte avançada da sua gravidez e pós-parto devido à amamentação, normalmente prolongada, e aos cuidados com a cria. Deve ter havido uma competição intrassexual, entre os machos, procurando uma posição favorável na hierarquia do bando, e com isso um maior sucesso copulatório.

As maiores mudanças do comportamento sexual tiveram lugar durante a primeira ou média evolução do Homo. A transição dos australopitecinos para os primeiros Homo, não está bem documentada devido à escassez de material fóssil, desta época de evolução mas, apesar deste constrangimento, aponta-se para 1,7 milhões de anos.

Com os estudos citogenéticos, é possível determinar que tipos de rearranjos cromosómicos ocorreram neste longo caminho da especiação humana. As modificações mais importantes verificaram-se nos cromossomas sexuais X e Y, provavelmente, há cerca de 2 a 3 milhões de anos. Houve uma translocação, passagem de material genético, de uma região, a região 21.3, do braço longo do cromossoma X para o braço curto do cromossoma Y. Posteriormente, entre 200 000 e 40 000 anos, verificou-se que este material sofreu uma inversão paracêntrica (rotação de 180 graus) ocupando presentemente a região 11.2, dando origem à espécie Homo Sapiens moderno. Há recombinações frequentes nos emparelhamentos cromosómicos. O cromossoma Y, quando existe genoma masculino, está isolado, e a sua sequência de ADN vai-se degradando com o tempo; há delecções, perda de partes do cromossoma, mas ele tem uma baixa concentração génica, tem alguma capacidade de auto regeneração, parecendo improvável que provoquem disrupções, na expressão de genes fundamentais. O comprimento do cromossoma Y vem diminuindo ao longo de milhões de anos, mas se o seu desaparecimento se concretizar, essa hipótese só se verificará daqui a 4,5 milhões de anos. No entanto, o gene SRY, responsável pela determinação sexual masculina, pode translocar-se para outros cromossomas, mesmo autosomas que já possuem outros genes responsáveis pela determinação sexual. Estas trocas entre os dois cromossomas sexuais, acaba por estabelecer um novo sistema de recognição, o sistema de reconhecimento específico do parceiro, que é o que define a reprodução das espécies e as diferencia umas das outras. Um sinal proveniente de um potencial parceiro sexual, desencadeia uma resposta por parte do outro, estabelecendo-se uma cadeia de sinais alternativos entre os dois, responsável por um sucesso ou falência de uma copulação. Este conceito pode ser aplicado no caso do Homo sapiens, com a linguagem.

Um dos alelos do gene receptor da vasopressina, subtipo AVPR1a, localizado no cromossoma 12, braço longo, região 14-15, é responsável por polimorfismos relacionados com a vinculação, sua intensidade e comportamento paternal masculino nas espécies. Humanos e bonobos têm um receptor diferente dos chimpanzés. Os polimorfismos dos AVPRs têm a ver com o comportamento masculino do emparelhamento, melhor dizendo, monogamia. Muito citada é a sua acção sobre os arganazes (Microtus Ochrogaster).

Quanto aos polimorfismos dos receptores androgénicos (ARs), o comprimento da cadeia de repetição do triplete CAG, é inversamente correlacionada com a competência transcripcional dos ARs, isto é, quanto menor o seu número, maior a sensibilidade à testosterona e, maior a capacidade transcripcional no núcleo celular e vice-versa. Variações étnicas na distribuição do alelo do triplete CAG nos ARs e seus polimorfismos, podem explicar diferenças na actividade sexual desses grupos. A média de repetições CAG dos ARs, na população europeia é de 22,4 com um intervalo de variação 18-24, enquanto a nível mundial é de 10-36.

As alterações individuais nos polimorfismos genéticos dos receptores da dopamina (DRD 4), explicam diferenças individuais nas migrações adaptativas, comportamentos de acasalamento e diferenças na promiscuidade sexual. Uma explicação para as variações individuais, pode ser encontrada nas variantes alélicas codificando para as diferenças de expressão do gene do receptor DRD 4. O gene codificador expressa particularmente para os receptores situados no córtex pré-frontal. Estes polimorfismos variam entre 2 e 11. O locus 5 do DRD 4 está relacionado com o desejo e excitação sexual. Os portadores de DRD 4.7 evidenciam desejo sexual mais intenso e fácil excitabilidade sexual, ultrapassam com facilidade barreiras culturais, apresentam menos descriminação sexual, propensão para a promiscuidade, desejo de ter descendência, relações sexuais mais precoces.

A oxitocina e a testosterona influenciam o emparelhamento, aumentam a vinculação, e com a estimulação dos mamilos aumentam os comportamentos afiliativos. A vinculação social é fundamental para a sobrevivência das espécies, ao favorecer a reprodução e a protecção contra predadores. A oxitocina desencadeia ou modula muitas funções biológicas – como a felicidade, a atracção, o amor – e tem uma função calmante (como exemplo interessante, extra-humano, temos os bonobos); aumenta com a fase de excitação e, tem uma libertação explosiva com o orgasmo. Há também diferenças individuais relacionadas com os polimorfismos dos seus receptores.

As investigações dos fósseis têm permitido chegar a conclusões quanto à sua morfologia e locomoção. O estudo (físico e químico) da dentição habilita-nos a avaliar o tipo de alimentação e, a partir daí, em que condições ecológicas viviam e, com estes indícios intentar discernir sobre o comportamento sexual dos nossos ancestrais, talvez com tantas certezas como dúvidas

Os bonobos, muito frequentemente envolvem-se em práticas sexuais e, sem descriminarem o sexo. É um dos exemplos, de práticas sexuais, sem intuitos reprodutivos, gizando aliviar tensões intragrupais e para cimentar amizades. Os bonobos, como outros animais o fazem, chimpanzés incluídos, e, parece que também humanos, os bosquímanos, oferecem alimentos em troca de sexo, com vantagens recíprocas (eles copulam mais vezes e elas aumentam a sua ingestão calórica). Porque têm coito face a face, os bonobos aproximam-se mais dos humanos, de tal modo que nas suas manifestações sociais se beijam na boca, com introdução da língua, assim como na resolução de situações conflituais, apaziguadas com relações sexuais, o que não acontece com os chimpanzés, cuja finalidade do acto sexual é a procriação, como norma. Os chimpanzés também fazem, frequentemente, o coito face a face, e as suas fêmeas, em práticas homossexuais, igualmente o fazem, devido à dimensão aumentada do seu clitóris. Uma coerção excessiva visando a obtenção de favores sexuais, pode levar a respostas agressivas, por parte das fêmeas: num extremo, morder o pénis do macho, no outro, ignorar o macho e envolver-se em práticas homossexuais. Os bonobos, talvez por viverem em grupos maiores, têm uma maior facilidade na sua socialização e, daí consequente, com todas estas manobras. Outra vantagem dos bonobos sobre os chimpanzés, é que sabem procurar territórios de maior riqueza alimentar.

Uma prática muito interessante entre os símios é o catamento, que estabelece uma relação próxima entre os parceiros, por efeito da oxitocina e das endorfinas, e um poder relaxante notável, com diminuição da frequência cardíaca, relaxação muscular, de tal modo, como os humanos com práticas de relaxação, acabam por adormecer. Têm-se realizado experiências interessantes, com opiáceos e antagonistas dos receptores opióides (ex. naloxano), que me fazem pensar poder estar-se perante uma dependência do catamento.

No decurso da evolução dos primatas, o cérebro expandiu-se de trás para a frente, sendo a parte anterior (o lobo frontal) a que proporcionalmente cresceu mais. As outras porções posteriores e laterais, estão preferencialmente mais ligadas à visão e a outros aspectos perceptivos sensoriais, e à memória; os lobos frontais têm o controlo dos sistemas de avaliação e recompensa, de julgamento e tomada de decisão. Conectam-se com os sistemas opioidérgicos e dopaminérgicos e, em algumas zonas, são memorizadas as recompensas. O córtex posterior e medial, filogeneticamente e ontogenicamente mais antigo, processa as recompensas primárias, como a sexual, enquanto a anterior, mais recente, processa as recompensas secundárias, dependentes da aprendizagem, envolvendo comportamentos adaptativos. Nos mamíferos, essa camada representa entre 10% a 40% do volume cerebral, nos primatas mais próximos dos humanos representa 50%, e nos humanos 80%. O neocórtex, com uma camada de 3 mm de espessura, envolve o núcleo interior do ancestral cérebro reptiliano, com cerca de 300 milhões de anos, que todos os vertebrados partilham. No Homo sapiens, no decurso da evolução, sofreu um tal desenvolvimento que teve de se enrugar para se conter dentro da caixa craniana, formando circunvoluções com uma superfície total de dois metros quadrados. É a este aumento da superfície cortical que se deve o aparecimento da linguagem, do pensamento reflexivo, da consciência, da imaginação, e é também o que permite aos humanos a liberdade de escolha nas suas acções e comportamentos.

Para este aumento cerebral, há várias teorias, desde as biológicas às sociológicas. As biológicas, estão relacionadas com prováveis mutações genéticas. Os australopitecinos foram os primeiros hominídeos a adquirir os genes SRGAP2 duplicados – há 2,4 milhões de anos, começo da expansão do neocórtex – tendo sofrido mais duas duplicações ao longo dos tempos, envolvidos na migração neuronal, sua diferenciação e na sinaptagem. Pouco mais ou menos nesta data estabelecem-se duas linhagens, facilmente distinguíveis. Uma, com molares desenvolvidos, assim como a estrutura óssea facial para inserção mais potente dos músculos mastigatórios, mais desenvolvidos, adequada a uma alimentação vegetariana, tendo-se extinguido 1,5 milhões de anos depois. A outra, omnívora, mas predominantemente carnívora, relacionada com alterações climáticas, com consequentes alterações da flora, devido à baixa qualidade vegetal, obrigou, senão ao começo, pelo menos à intensificação da caça, o que permitiu a evolução da espécie: esta distinção na linhagem teve a ver com as necessidades energéticas cerebrais, que na actualidade, em relação às necessidades do organismo, se situa entre 20% e 30%. As sociológicas, que fazem depender o crescimento cerebral de competências socias aliadas a teorias da mente, relacionadas com as dimensões do grupo em que estão inseridos; nos humanos, o contingente de pessoas com as quais mantemos um estreito relacionamento social é de cerca de 150 indivíduos, e nos chimpanzés, o número médio, nas comunidades a que pertencem, é de 50-55 indivíduos. A fala/linguagem apareceu como uma necessidade de substituição do catamento, quando as dimensões do grupo ultrapassam a capacidade de controlar a coesão pacífica grupal. A linguagem é o maior sistema simbólico na comunicação com os outros. A data de aparecimento da fala é muito controversa (não tanto da linguagem). Certos investigadores atribuem a emissão de sons com algum significado, por volta de 1,7 milhões de anos, com o Homo mais arcaico, coincidindo com a primeira migração africana para a Eurásia, só possível com uma capacitação da laringe, pulmões e do diafragma, para permitirem sons mais complexos, permitindo o canto e, já aqui, com transmissão de sentimentos e um maior convencimento para as práticas sexuais. Outros investigadores sinalizam o Homo sapiens primitivo, à volta dos 300 000 anos. A linguagem, talvez, há 40 000 anos com o Homo sapiens sapiens, mas ainda aqui, não há unanimidade entre diversos estudiosos da matéria.

Os chimpanzés e os bonobos têm espículas à superfície do pénis, que são determinadas por genes e têm duas funções; uma, é aumentar a sensibilidade peniana tendo, como consequência, um tempo de latência ejaculatória de 5 a 7 segundos; a outra, diz respeito à competição espermática, com uma capacidade de remover o esperma do outro rival, existente na vagina da parceira. O homem, ao longo da sua evolução, perdeu esse gene e por consequência deixou de ter espinhas penianas, perdendo, parcialmente, a capacidade de remoção espermática, até dele próprio, e devido a uma aparente diminuição da sensibilidade peniana, aumentou o tempo de latência ejaculatória. A linhagem hominini também perdeu o osso peniano (baculum), existente entre outros mamíferos (nos chimpanzés e bonobos), mas ganhou em aumento das dimensões penianas, tendo, porém, testículos menores; na passagem à posição bípede, tornou mais visível o seu pénis, aumentando o foco erótico para a mulher.

Estudando os dois vírus do herpes – oral (HSV1) e o genital (HSV2) – e a sexualidade humana, os investigadores chegaram, por esta via, a uma conclusão inimaginável: o sexo oral não deve ter sido praticado, de forma sistemática, pelos nossos ancestrais.

Há várias opiniões sobre o tipo de emparelhamento humano ao longo da evolução, tomando como termo comparativo a linhagem dos símios. Mas será o modelo de símios, como chimpanzés, gorilas ou símios não actuais, uma boa referência para a sexualidade dos primeiros hominini? Uns consideram que há uma monogamia, outros, que há monogamia serial. Outros poliginia ligeira, excepto no caso da poliginia declarada dos Mormons e, não só, como em Angola. E teremos de considerar a poliandria em casos muito minoritários. Pretende-se estabelecer que nos humanos o que prevalece é a monogamia, que é rara no reino animal; foi estudada a estrutura social de 2545 espécies de mamíferos, das quais menos de 9% são socialmente monogâmicas, sendo de 25% entre os primatas. Na maior parte dos outros 75% dos primatas funciona a figura do detentor de harém, o macho mais elevado na hierarquia do grupo, que detém o poder copulatório sobre as fêmeas. O detentor do harém sofre dois tipos de contestação: um, quando um outro macho lhe quer usurpar o lugar, dando direito a luta, e sangrenta; outro, quando as suas “pupilas,” de forma sub-reptícia resolvem dar sinais, a um ou mais dos outros membros masculinos do bando, que estão receptivas a uma infidelidade, correndo ambos os riscos da sua condição de “amantes”, se o macho procriador se apercebe que, um macho inferior, está atentar subtrair uma das fêmeas ao seu poder. Há o convencimento de que, o que detém a capacidade de distribuir os seus genes, de qualidade, com o envelhecimento perderá as suas capacidades atléticas de luta e inexoravelmente será substituído por um outro mais jovem. Mas esta luta de substituição, terá de ser estimulada pelo harém, que terá de dar sinais que encorajem o candidato a avançar para a luta.

O período necessário para que as crias tenham condições mínimas de sobrevivência autónoma, é mais longo nos humanos do que nos símios, devido à neotenia; resumidamente, com o bipedismo houve alterações estruturais da bacia. Numa perspectiva evolucionária, as dimensões do crânio teriam de ser menores para a passagem no canal do parto, havendo como que um atraso no desenvolvimento cerebral em relação ao corpo e, cuja recuperação cerebral, após o parto, levará cerca de 1 ano, para permitir uma proliferação neuronal, assim como a plasticidade neuronal mais longa. Explicitando melhor, este crescimento cerebral é feito mais à custa das conexões interneuronais, o conectoma, do que em relação ao número de células cerebrais. Esta recuperação corresponderia ao nascimento, se nos reportássemos aos símios ou ao nosso antepassado comum, e mais o tempo necessário, habitual, para, em condições normais, ter defesas mínimas de sobrevivência, o que perfaz cerca de 4-5 anos. Nos símios, as fêmeas dão à luz com intervalos de 5 a 8 anos, só regressando ao ciclo reprodutivo no fim do aleitamento, altura em que cessa a amenorreia devida aos valores elevados da prolactina. A protecção dos machos aos seus descendentes e o acesso rápido às fêmeas, em condições de procriar, justifica a elevada frequência de infanticídios nos mamíferos e, particularmente nos primatas, apontando-se para os gorilas, 30% dos recém-nascidos. Para os machos, a protecção do investimento do seu futuro genético, adiciona uma pressão suplementar para a procura de uma fêmea com disponibilidade procriadora, que se acelera com o infanticídio da sua cria. Tendo em conta a diferença de dimensões do corpo, os custos energéticos da produção de uma criança são, nos humanos, 10% superiores aos dos chimpanzés, atendendo à diferença do volume cerebral.

A passagem das fêmeas homininis ao bipedismo, expô-las a maiores riscos, atendendo aos dimorfismos sexuais, que para se defenderem, passaram a trabalhar mais em grupo, nos trabalhos forrageiros; grupos maiores implicavam maior competição, o que levou à provável utilização de ferramentas líticas para aumentar a colheita; trabalhando em grupo, estavam mais protegidas contra animais predadores ou machos intrusivos. A recente descoberta de pegadas de um homem e quatro mulheres, em cinza vulcânica que rapidamente endureceu, reforça a ideia da existência de poliginia no Australopithecus afarensis, há 3,3 milhões de anos. Os australopitecínios seriam mais poligínicos do que os do género Homo, que enveredariam por uma poliginia ligeira. Nestas sociedades Homo de caçadores-recolectores, havia uma divisão de trabalho, com as mulheres dedicadas à forragem e aos cuidados maternais e os homens a tenderem, na sua actividade de aprovisionamento familiar, a forragear produtos de mais difícil recolha ou mais distantes do local de habitação e a caçar, onde existirem, animais de grande porte, o que implica práticas associativas, ou pequenos animais; a partilha dos animais de caça, aumenta o estatuto dentro do grupo, proporcionando melhores oportunidades de acasalamento. As práticas sexuais destas sociedades são mais recatadas, evitando-se assim o ciúme sexual e a competição de acasalamento, contrastante com o comportamento sexual dos símios, como os orangotangos e gorilas, em que existe uma forte competição masculina. Os machos dominantes copulam abertamente, até para sinalizarem o seu poder, enquanto os machos inferiores, são de tal maneira discretos, que os primatologistas não se aperceberam que eles “davam uma voltinha” com as fêmeas do bando, só se apercebendo quando se fizeram determinações do ADN a todo o bando. O mesmo acontece numa sociedade, supostamente monogâmica como a nossa, em que 4% dos descendentes, têm um ADN diferente dos putativos pais. Os chimpanzés são exogâmicos femininos, numa percentagem de 90%. As fêmeas mudam-se para outros bandos, alguns distanciados centenas de quilómetros, demonstrados pelas análises de ADN mitocondrial (mtDNA).

Estudando os dois vírus do herpes – oral (HSV1) e o genital (HSV2) – e a sexualidade humana, os investigadores chegaram, por esta via, a uma conclusão inimaginável: o sexo oral não deve ter sido praticado, de forma sistemática, pelos nossos ancestrais

Existem muitos modelos teóricos socioecológicos para a compreensão da evolução da sexualidade dos homininis, que valorizam a protecção ou cuidados masculinos na formação da vinculação. Nos últimos Homo, os cuidados masculinos, no que ao aprovisionamento diz respeito, ao aumentar os factores energéticos alimentares, pode ter tido como contrapartida um sucesso reprodutivo mais longo da mulher e, ao homem, um acesso sexual, com vinculação, a longo termo. A escolha feminina para o acasalamento está orientada para a sua própria protecção e da sua prole. As fêmeas de várias espécies, incluindo o Homo sapiens sapiens, procuram acasalar com machos que proporcionem complementaridade com o MHC (Complexo Major de Histocompatibilidade) ou bons genes (ex. alelos favoráveis à neutralização de doenças infecciosas locais).

Conflitos de interesses sexuais podem ser interessantes sob o ponto de vista da coerção sexual, numa perspectiva filogénica e adaptativa. Os primatas terrestres podem ser mais propensos à coerção sexual, porque o seu volume corporal (com 60% da massa muscular disposta na metade superior do corpo) favorece-os no combate corpo a corpo, em relação, por exemplo, aos símios arborícolas. Portanto, o símio terrestre, devido a esta condição morfológica, tenderá a exercer coerção sexual sobre as fêmeas, mais os chimpanzés que os bonobos. Esta capacidade de luta macho-macho, integra a competição intrassexual e pode resultar em comportamentos coercivos sobre a fêmea. Esta condição física e capacidade de luta pode ser um factor de aceitabilidade do acasalamento, por parte da fêmea, mas também pode ser um factor de rejeição, exactamente pelo temor de que essa força possa ser um factor de coerção sobre si. De qualquer modo, as escolhas ancestrais femininas condicionam a evolução do comportamento humano. A escolha no acasalamento foi-se tornando mais exigente, com a aprendizagem de competências como cantar, caçar e pintar, papéis cada vez mais importantes na atracção sexual.

A competição espermática resulta da copulação de uma fêmea com mais do que um macho. A fêmea pretende os melhores espermatozoides para a fecundação do seu óvulo, visando uma gravidez viável e uma cria saudável. O macho pretende disseminar os seus genes e, se assumir a função de cuidador, quer ter a certeza de que a cria é sua. As intenções procriativas podem não ser conciliáveis, e estamos perante um conflito sexual de interesses, interesses dos machos diferentes dos interesses das fêmeas. Para aceder à fêmea, haverá previamente uma competição intrassexual, de intensidade variável, competição esta, pré-copulatória.

A pós-copulatória desenvolve-se dentro da vagina, podendo a mulher, ela própria, fazer a seleção dos espermatozoides que lhe interessam, independentemente da competição intravaginal dos machos. Os machos, um ou mais, vão tentar fazer a remoção dos espermatozoides existentes, aí depositados por cópulas anteriores. Como foi descrito, os símios dispõem de espículas à superfície da pele do pénis, que ajudam a esta remoção, mas os hominídeos, apesar da perda dessas espículas, possuem ainda alguma capacidade para entrar nesta competição, dependente da forma do pénis, constituído pela glande e pelo corpo e, nesta junção, o colo; a glande tem uma forma de um pequeno cogumelo, com um alargamento progressivo da sua extremidade, o meato urinário, até à sua base, forma que permite uma melhor introdução; na junção da glande com o corpo, existe uma pequena diferença de diâmetros, formando um pequeno recesso circular que, junto com a inserção do prepúcio, pode criar condições para a possível remoção de espermatozoides, depositados por outrem. Esta competição está dependente do número de competidores e da organização social do grupo. Os gorilas são pouco promíscuos, só o macho dominante com posse de harém acasala com as fêmeas. Têm testículos relativamente pequenos. Já os bonobos e chimpanzés, vivendo em grandes grupos de multi-machos e multi-fêmeas, são promíscuos, têm os testículos proporcionalmente maiores, em relação ao corpo, para poderem produzir maiores quantidades de espermatozoides. Os hominídeos, monogâmicos ou poligínicos ligeiros, têm testículos de dimensões intermédias – entre os gorilas e os chimpanzés, volume do ejaculado baixo e qualidade espermática também baixa. As fêmeas da linhagem hominídea, têm trompas de Falópio relativamente curtas, consistentes com uma baixa pressão de competição espermática.

Utilizando a citogenética, a partir dos nucléolos, foi possível determinar as escolhas reprodutivas. O nucléolo está situado no núcleo das células eucariotas, contém o ácido ribonucleico (ARN), assim como uma parte de ADN, e proteína para síntese de ARN ribosómico, ligado, principalmente, à condução do processo reprodutivo. A diferença do nucléolo quando é único (pode haver dois ou mais, entre chimpanzés e humanos) é de 1,23% (35 milhões de pares de bases), dos quais 1,06% corresponde a divergência fixa entre as espécies. No cromossoma Y é maior (1,9%) do que no cromossoma X (que é 0,94%). A taxa de mutação masculina é 3 a 6 vezes superior à feminina. Isto indica que há necessidade, por parte da mulher (englobando todos os homininis, incluindo os humanos actuais) de fazer uma boa escolha reprodutiva.

As ligações emocionais enfraquecem, ou extinguem-se mesmo, dando aso a que os acasalamentos se desfaçam; por exemplo, numa sociedade de caçadores-recolectores, os Ache do Paraguai têm, em média, doze parceiros ao longo da sua vida, com vinculações que oscilam entre alguns meses a vários anos.

As bases hereditárias dos hominídeos evidenciam mudanças para vinculação a longo prazo, monogamia, com poliginia ligeira, ou a monogamia serial, reproduzindo homologias com outras espécies com vinculação a longo prazo e fazendo por vezes, uma clara distinção entre vinculação e actividade sexual.

O amor romântico é distinto da excitação sexual e das emoções. O amor romântico está mais relacionado com a recompensa do que com uma emoção. A área tegmental ventral, tem um papel primordial no cérebro dos mamíferos, nos processos de recompensa e motivação.

O amor a longo prazo, mostra localização na área tegmental ventral e núcleo caudato, regiões estas, relacionadas com a reprodução, comportamento social e amor romântico. Há um aumento de actividade nas regiões ricas em dopamina, associadas à recompensa e motivação, particularmente na área tegmental ventral na região mesolímbica.

A activação de estruturas cerebrais no amor recente, é sobreponível à do amor romântico a longo prazo, no que concerne ao sistema de recompensa e motivação mas, no longo prazo, estão activadas mais algumas regiões, com outro significado; há um aumento da vinculação, com uma activação do tálamo e globo pálido, onde existe uma elevada densidade de receptores para a oxitocina e vasopressina, provocando uma maior tranquilidade na relação, porque menor ansiedade e obsessão devido ao recrutamento dos neurónios serotoninérgicos e opióides como acontece no globo pálido. A activação de estruturas de vinculação entre humanos é sobreponível à ligação entre roedores, especialmente a nível do globo pálido. Existe um modelo biológico dual, para o desejo sexual e para o amor numa perspectiva do padrão evolucionário posterior → anterior. A ínsula está relacionada com hormonas esteróides na sua porção posterior e é activada para o desejo sexual e, a parte anterior para o amor. Já a área tegmental ventral e estriado dorsal, estão relacionadas com os sistemas opióide e dopaminérgico em consonância com a recompensa e o amor. Dito de outra maneira, a parte posterior está relacionada com o instinto, enquanto a parte anterior e também o córtex fontal estão relacionados com o sistema de recompensa, logo com comportamentos aprendidos.

 

Toda a Arte é uma forma de literatura, porque toda a Arte é dizer qualquer coisa (Álvaro de Campos)

A Arte substitui a escrita na sua ausência e “a espécie humana é, pela sua natureza, artística, e a história da Arte inicia-se com a humanidade” (Lorblanchet, 2007). Logo, desde a sua origem, o Homem é, em todos os sentidos do termo, um Homo Aestheticus. O aparecimento da escrita verificou-se entre 4 000 e 3 000 aC, funcionando como linha de fronteira entre a Pré-história e a História, sendo esta última que vamos abordar. O fim da Pré-história não foi simultâneo nos vários continentes, só acabando na África Central, Américas e Austrália na era dos Descobrimentos, quando os europeus entraram em contacto com as populações locais, estabelecendo a primeira globalização mundial, subsistindo, porém, algumas bolsas populacionais, que foram sendo eliminadas progressivamente, muitas vezes fisicamente, pensando nos índios da Amazónia e de populações polinésicas.

A primeira escrita foi desenvolvida pelos sumérios, na Mesopotâmia. Apareceu há cerca de 3 000 anos aC. Era cuneiforme, com alguns historiadores a recuá-la para os 4 000 anos aC, havendo anteriormente simulacros de escrita. Nasceu por necessidades comerciais e pelo desenvolvimento agrícola, estendendo-se posteriormente a ramos científicos, Astronomia, e culturais, Literatura, Poesia, e Direito (o Código de Hammurabi, na Babilónia), seguindo-se os hieróglifos no Egipto, com uma notável conotação artística, e os alfabetos fenício, grego e romano.

O alfabeto fenício, considerado a origem dos alfabetos actuais, foi criado no séc. XII aC, expandindo-se pelo Mediterrâneo e Médio Oriente. A escrita chinesa surgiu cerca de1500 anos aC, ideográfica, também com conotações artísticas, inspiradora de alguns pintores contemporâneos, como exemplo, um pintor português, Eurico Gonçalves, com as suas caligrafias/pintura-escrita, gestualistas, inspiradas no Budismo Zen.

A recente descoberta de pegadas de um homem e quatro mulheres, em cinza vulcânica que rapidamente endureceu, reforça a ideia da existência de poliginia no Australopithecus afarensis, há 3,3 milhões de anos

Considera-se que “oficialmente” a Arte terá nascido com o Homo Sapiens Sapiens, o Homem moderno, isto é, há cerca de 40 000 anos; estas linhas separadoras acabam por ser aleatórias, quer em relação à Arte quer em relação ao Homo sapiens sapiens mas, convenhamos, necessárias. Seria importante, ao fazer o balizamento temporal do que é a Arte, defini-la, mas quão difícil isso é. Já referi qual a data de nascimento que lhe é atribuída; local Europa Central, fruto de uma transformação substancial da cognição humana, consequência de alterações neuronais que a suportam, provocadas por uma provável mutação genética que deu origem ao Homo sapiens sapiens. Outros investigadores mantêm a data de aparecimento da Arte mas, descartam uma correspondência directa com o aparecimento do Homem moderno. Apontam sim, para uma natural evolução gradual com atribuições simbólicas, desenvolvimentos tecnológicos, organização económica e social mais estruturados, e com modelos resultantes de diferentes culturas com sistemas artísticos e culturais próprios, existentes em diferentes épocas e regiões.

O arqueólogo português João Zilhão (2009), atribui as origens da Arte ao “…valor adaptativo do aparecimento de comportamentos cerimoniais relacionados com a propriedade e os direitos sobre os recursos, do desenvolvimento com mitos e sistemas de crenças religiosas com antepassados reais ou míticos, e não numa mutação tardia habilitando os homens com a capacidade de pensamento simbólico.” A experienciação da Arte é complexa e resulta de diversos processos interdependentes englobando a percepção, cognição e afectos. É, fundamentalmente, comunicação estabelecida através de códigos criados pelo homem, com valores estéticos, incluindo conceitos de beleza humanos, flutuantes com o tempo e com cada cultura.

Recuemos no tempo. O primeiro artefacto conhecido com laivos de Arte é uma chamada pedra-figura de jasparite, encontrada na actual África do Sul. Deve ter alguma intervenção humana, o que define o artefacto, aperfeiçoando, de modo incontestável, os contornos de uma pedra, semelhando a algo. Esta pedra-figura, encontrada em Makangost, representa um rosto humanoide, foi trabalhada por um australopitecíneo, no Paleolítico Inferior, resumindo, tem três milhões de anos. Foram encontradas, em Israel, três pedras-figuras, a que foi atribuída uma datação de 280 000 a 250 000 anos, também Paleolítico Inferior, trabalho de Homo sapiens primitivo. As três pedras-figuras eram de matéria vulcânica, tinham 3,5 cm de altura e 2,5 de largura, e representavam mulheres obesas. Os investigadores não tiveram qualquer dúvida em classificá-las de pedras-figuras, ao fazer exames microscópicos às peças e verificarem que havia sinais bem evidentes de raspagens no peito, ombros, pescoço e braços. Com outro tipo de intervenção foi encontrada, na Índia, com datação de 200 000 anos, uma pedra com as chamadas cúpulas. As cúpulas são pequenas cavidades com poucos centímetros de diâmetro e um ou dois centímetros de profundidade, produzidas ou pelo Homo sapiens primitivo ou pelos neandertais, e consideradas como primeiras manifestações de Arte Rupestre no Mundo, manifestações estas, que se prolongaram pelos Paleolíticos Médio e Superior, como simbólicas ou rituais.

Os pigmentos vermelhos são utilizados desde há cerca de milhão e meio de anos, iniciando-se com o Homo Habilis. A utilização do vermelho, a que se pode atribuir uma preferência quase geral, e que alguns dizem ser de causa genética, e cuja utilização, ao longo do tempo, poderá estar relacionada com o desenvolvimento cognitivo e simbólico. Os pigmentos eram, inicialmente, utilizados para embelezamento corporal, em si, ou como sinal de estratificação social e mais tarde em eventuais pinturas rupestres, entretanto desaparecidas, devido à qualidade das misturas pigmentares com fraca aderência duradoura às paredes rochosas e também ao longo tempo mediando entre a sua execução e os nossos dias. Na Europa Ocidental, há cerca de 130 000 anos, o Homo sapiens arcaico tardio desenvolveu novas tecnologias, com algum grau de sofisticação, utilizando trituradores, mós e pás de vários materiais e, na sequência temporal, diversificaram o leque de pigmentos.

Considerando ainda os colares, como materiais de embelezamento ou adornos e como manifestações artísticas, a sua utilização é situada, pelos arqueólogos, há pelo menos 300 000 anos (Paleolítico Médio) pelos Homo sapiens primitivo e Homo neanderthalensis, podendo ser usados sobre a pele ou sobre vestuário. Foram encontradas na África do Sul, com 85 000 a 75 000 anos, pequenas conchas perfuradas e frequentemente pintadas, recolhidas nas praias ou nas margens dos rios, que encordoadas poderiam constituir colares. Os Cro-Magnons, existiram entre os 35 000 e 10 000 anos, pertencentes aos homens modernos, foram grandes fabricantes de colares e pendentes.

O corpo ao perder pêlo, ficou com uma área disponível para o seu embelezamento com pinturas corporais. O uso de adornos como ossos e dentes de animais, era muito comum entre os neandertais.

As pinturas, os adornos, o uso de cosméticos vegetais a serem aplicados sobre os cabelos e pêlos restantes serviam para aumentar a atractividade sexual. Outro modo de embelezamento são as escarificações cutâneas, que tive a oportunidade de ver pessoalmente, quando da minha passagem por África, formando como que rendilhados de elevado pendor estético e que nos tempos paleolíticos podiam estar ligados a cerimoniais ou marcas de ritos de passagem.

Pedras com estrias, também chamadas gravações, com datação de 380 000 anos (Paleolítico Inferior), obra do Homo erectus/Homo habilis foram encontradas em África e na Europa. No Paleolítico Médio, entre 100 000 e 40 000 anos, com o Homo sapiens arcaico tardio, estas pedras aparecem com maior frequência na Europa. Há um maior número de ossos com incisões que eram intencionais, portanto decorativas, ou eram o resultado da descarnação de peças corporais de animais feitas com utensílios líticos cortantes utilizados para esse efeito, ou a descarnação refeiçoeira feita com os dentes dos Homos arcaicos ou, ainda, feita pelos dentes dos animais carnívoros? Aqui fazia jeito o Oráculo de Delfos “inverso”.

Ainda em África, na célebre gruta de Blombos, foram encontradas casca de ovos de avestruz com uma datação de cerca 60 000 anos, com linhas geométricas cruzadas. Pensa-se que as cascas de ovo com uma forma mais adequada a recipiente eram aproveitadas para moer os pigmentos. Pensam os especialistas nestas matérias que as gravações ou incisões indiciam uma partilha de representações simbólicas.

Estas estatuetas ou Vénus caracterizam-se por serem portáteis e de pequenas dimensões, situando-se a maioria entre os 12-15 cm. É muito comum, a ideia, que estas representações vão todas no sentido de mulheres obesas. As representações são variadas, elas são obesas, elas são magras, elas são de corpulência média. Algumas têm peças de vestuário. Os atributos sexuais estão esculpidos com bastante detalhe

Depois destas descrições de que estive a falar? Não foi de Arte? Já disse que para a comunidade científica o marco miliar para a Arte são os 40 000 anos aC. Ora bem, tentando ultrapassar estas dificuldades, alguns, chamam-lhe, inteligentemente, a Arte antes da Arte.

A Arte no Paleolítico Superior, na Europa, é o resultado de uma acumulação lenta e abundante de tradições culturais transmitidas e de competências associando-se a uma herança biológica. Uma das características da Arte Paleolítica é a existência de uma Arte escultórica, com peças denominadas estatuetas, bastões e gravações e baixos- relevos nas paredes rochosas. Ironicamente, a possibilidade de materializar a satisfação de conceitos estéticos/mentais, resultaram da necessidade de melhorar os instrumentos cortantes para satisfação de necessidades biológicas relacionadas com a alimentação carnívora. Durante o período Glaciar ou em zonas sazonais de gelo o descarnar de peças de carne geladas, implicava a existência de instrumentos, com gumes muito afiados e, a optimização da sua manipulação. E, assim, se passou da carne congelada para o trabalho com marfim, dentes, ossos, chifres, pedra de várias qualidades e argila utilizando raspadores, cinzéis, pequenos bifaces, pequenas lâminas curvas para a obtenção de artefactos tais como estatuetas humanas e de animais, bastões, colares, ponteiras, particularmente, na Europa Ocidental e Central.

A génese e desenvolvimento da Arte tem como substracto, segundo uns, as emoções e os processos evolucionários envolvidos na recompensa, segundo outros, a categorização do controlo dos movimentos, outros ainda, a capacidade de criar imagens mentais. Há uma evolução paralela das técnicas líticas e da cognição.

Uma das características da Arte do Paleolítico é a existência de uma Arte escultórica. A escultura é considerada uma Arte visual mas, no entanto, ela é, fundamentalmente, táctil; vi escultores a apreciarem obras, de terceiros, a passearem a mão por partes da escultura. Rodin, antes de começar a esculpir tinha de tocar, contornar o/a modelo.

Na Europa, o clima frio, especialmente durante o Período Glaciar, implicava a cobertura do corpo com peles. A explicação para a existência de estatuetas representando mulheres nuas, estaria no desejo da uma contemplação de um corpo nu. Estas estatuetas ou Vénus caracterizam-se por serem portáteis e de pequenas dimensões, situando-se a maioria entre os 12-15 cm. É muito comum, a ideia, que estas representações vão todas no sentido de mulheres obesas. As representações são variadas, elas são obesas, elas são magras, elas são de corpulência média. Algumas têm peças de vestuário. Os atributos sexuais estão esculpidos com bastante detalhe. A cabeça é pequena, algumas vezes muito pequena, não tem rosto ou o rosto não está definido. Os membros são pequenos e mal definidos, não têm pés ou são muito pequenos. Têm grandes mamas e nádegas, que serão as partes eroticamente mais atractivas. As grandes nádegas suscitam a dúvida se correspondem a uma idealização ou a uma realidade, na sequência das migrações africanas, lembramos a existência actual de uma incrível esteatopigia nas mulheres das tribos Hotentotes ou Busquimanos. Em Itália, nas grutas de Grimaldi, foi encontrada uma estatueta com datação de 20 000 aC, com cerca de 8,1 cm de altura, em esteatite verde escura, cuja fotografia dá, perfeitamente, a ideia de se tratar de uma negra. Efectivamente, aqueles povos imigraram para ali em 45 000 aC.

Karel Absolon (1949) afirmou, com alguma ironia, que “o sexo e a fome são os dois motivos que influenciam a vida mental dos caçadores de mamutes e a sua produtividade artística”. As estatuetas de Vénus são portáteis e são um objecto sexual com a finalidade de proporcionar uma ajuda estimulatória, voyerista, para a masturbação, quando tinham de se afastar do acampamento ou grutas, durante dias, para caçar mamutes ou outos animais de grande porte. Outros vêm nelas representações de deusas, particularmente, a da fertilidade.

A mais popularizada estatueta de Vénus será, provavelmente, a de Willendorf, uma das duzentas encontradas até hoje, e produzidas no Período Glaciar europeu, entre 27 000 e 22 000 aC; esta foi encontrada na Áustria, com datação de 24 000 aC, trabalhada em pedra calcária, com 10,4 cm de altura. As mãos pequenas repousam sobre umas volumosas mamas, pressupondo que, toda ela está bem fornida de gordura, com ventre e nádegas volumosas. Gordura como reserva para a gestação e lactação? O que chama imediatamente a atenção, para além da sua volumetria corporal, são as dimensões da cabeça, muito maiores do que é típico destas esculturas, ausência de rosto, essa habitual, e um complicado penteado com trancinhas, envolvendo toda a sua cabeça, questionando-me como era possível fazer tal arranjo capilar, pura ilusão de óptica, desatenção e ignorância, mas, pior que eu, foram os estudiosos, que não resolveram o mistério. Só há relativamente pouco tempo o problema foi resolvido; Afinal não era cabelo. Trata-se sim, de um gorro de elaboração extremamente minuciosa, feito à mão, que se vai desenvolvendo do centro para a periferia, em espiral, deixando-nos outra perplexidade. A minúcia é tal, que nos faz crer que o tempo despendido na sua elaboração deve ter sido maior do que com o resto da escultura. Espantem-se, mais uma especulação que faz algum caminho: tratar-se-ia de um modelo para os tecelões que confeccionavam gorros. Os gorros poderiam ser uma sinalização de estatuto na sua comunidade. Voltando à estatueta em si, há uma vulva nitidamente esculpida, que aquando da sua descoberta se encontrava com vestígios de pigmentos vermelhos, e também pelo corpo.

Outra curiosa estatueta, em marfim de mamute, encontrada em Kostenki, Rússia, margens do rio Don, por isso denominada Vénus de Kostenki, com datação de 23 000 aC, observada por investigadores de ambos os géneros, tão embrenhados estavam nas hipóteses de objecto sexual de deusa, particularmente da fecundidade, que não repararam que estavam esculpidas partes de vestuário. Vendo-a pela parte dorsal, há a nítida existência de uma espécie de corda, mais larga que um simples cordão, com a disposição semelhante à de um soutien, enquanto anteriormente, dando continuidade ao que é visto posteriormente, as cordas descem, de um lado e outro, do pescoço, em V, e vão ligar-se ao prolongamento horizontal da parte posterior, só que, ao contrário do seria espectável, passam sobre as volumosas mamas empurrando-as para baixo, e acentuando o seu volume. Em Angola, nas populações rurais, a mudança de hábitos vestuários com a cobertura total da nudez, o sistema de amarração dos panos à frente, cria como que um enfaixamento das mamas, empurrando-as para baixo e exauridas pela subnutrição e com lactações prolongadas e sucessivas torna-as pendentes, compridas e com uma espessura de poucos centímetros. A cabeça segue o padrão mais comum, ausência de rosto e um gorro pormenorizadamente esculpido, semelhante à de Willendorf, separadas por 1 000 anos e por 2000 km.

Em Kostenki, sítio arqueológico extremamente rico, foi descoberta uma, denominada Vénus amarrada, muito mutilada, restando apenas a parte inferior do corpo, de pedra calcária, e possivelmente da mesma época que a anterior. Restam, dos membros superiores, um, quase completo e, do outro, uma mão; ambas as mãos repousam sobre um ventre arredondado, As mãos estão amarradas entre si, por aquilo que me parece, uma corda, exactamente igual à da sua conterrânea. A interpretação dos especialistas é o de que a escultura pode indiciar uma submissão, um ritual de passagem, um cativeiro, uma escravidão fruto de uma escaramuça com uma tribo rival, um castigo da própria tribo, ou um castigo dentro de um acasalamento poligínico. De qualquer modo, quer esta, quer a anterior, têm conotações sexuais e todas as representações escultóricas estão dependentes da cultura sexual dos seus artesãos.

Outra das mais citadas Vénus é a de Lespugue (França, 23 000 aC), de marfim de mamute com a altura de 14,5 cm. Apresenta uma forma losânguica, cabeça minúscula com rosto não trabalhado, mamas enormes e esteatopigia, seguindo os cânones destas estatuetas mas, o que impressiona vivamente, com o olhar actual, é o seu estilo modernista absolutamente admirável.

Os machos dominantes copulam abertamente, até para sinalizarem o seu poder, enquanto os machos inferiores, são de tal maneira discretos, que os primatologistas não se aperceberam que eles “davam uma voltinha” com as fêmeas do bando, só se apercebendo quando se fizeram determinações do ADN a todo o bando. O mesmo acontece numa sociedade, supostamente monogâmica como a nossa, em que 4% dos descendentes, têm um ADN diferente dos putativos pais

A grande maioria destas representações femininas apresenta ancas largas e mamas grandes, morfologia adequada para uma reprodução de sucesso, arquétipo inconsciente, ainda hoje presente, na escolha de uma parceira, por parte de um homem. Esta provável ideação de mulher atractiva, será mais incisiva a nível da cintura pélvica. As mamas grandes não eram assumidas como ideal de beleza no Egipto e na Grécia antigos. Mas mantém-se, ainda hoje, nos Estados Unidos, com os exemplos de dois ícones – Marilyn Monroe e Jayne Mansfield – consideradas nos anos 1950 e 1960 símbolos sexuais, que passaram, nuas, na capa da revista Playboy, sendo a última cognominada de “Loura [platinada] explosiva”. Há que dizer que o ideal de mulher tem a ver mais com modas do que com modelos culturais. E que nos Estados Unidos este ideal tem sofrido alterações, facilmente verificáveis, quer visualmente quer com mais rigor, nos registos antropométricos, das artistas de cinema, das concorrentes a títulos de beleza e, por exemplo, nas revistas Playboy e Hustler.

Timoty Taylor (1996) ensaia uma série de teorias explicativas para a existência de estatuetas de Vénus, a saber: Existência epocal do matriarcado, no entanto, também se pensa que existia poliginia nesta época; fertilidade humana, no entanto, não há representações de crianças, como por exemplo, crianças ao colo ou partos; sacerdotisas xamânicas, estas figuras representativas, estariam presentes em rituais sexuais, partilhados por toda a comunidade, colocando-se assim uma hipótese para a existência das grutas, com a presença do gravado e do pictórico, como lugares sagrados; objectos sexuais, transportáveis, com potenciais de ajuda erótica; modelos para tecelões (particularmente fabricantes de gorros), tendo como exemplos a de Willendorf, de Kostenki e outras; imagens religiosas, representações da deusa suprema, na Europa, a Grande Deusa Mãe (Vénus de Willendorf). E, ainda, poderíamos juntar uma outra hipótese, a da autorrepresentação de artistas femininas.

Mais uma estatueta de difícil interpretação, foi descoberta nas grutas de Grimaldi, em Itália, esculpida no Paleolítico Superior, em esteatite, de cor verde, translúcida, com uma altura de 8,1cm, e conhecida como o Hermafrodita de Grimaldi. A estatueta tem algumas mutilações, falta-lhe a cabeça, dos membros superiores restam umas mãos que aparecem ao nível dos genitais, parecendo cobri-los parcialmente com um pénis pouco definido que lhe conferia o diagnóstico de hermafrodita. O que vem complicar esta interpretação é a existência de um segundo par de mãos que parecem vir da parte posterior do corpo e parecem introduzir um objecto na vagina, muito provavelmente um dildo, logo a atribuição do sexo feminino, parecer mais plausível. Ambas as interpretações levantam dúvidas. Mas, observando a fotografia com atenção, porque não levar mais longe as dúvidas e especular com a existência de uma dupla masturbação, peniana pelo próprio, e vaginal por terceiros? O Oráculo de Delfos “inverso” bem podia dar aqui uma ajuda.

Foi descoberta na Turquia, uma escultura, em argila, com cerca de 12,5 cm, muito desgastada pela usura do tempo, com uma datação de 6 500 a 5 700 aC, e que seria a representação da Grande Deusa Mãe ou a Mãe Terra. Esta sim, parece relacionada com a procriação e, também, referida como entidade suprema. A figura central é feminina e está sentada. É descrita como estando ladeada por dois felinos, a minha interpretação é que está sentada num trono, como admitido por alguns autores, cujos braços terminam com a escultura da cabeça de felinos. Tem o rosto definido, está vestida e com as mamas de fora, e o mais importante, aos seus pés está uma criança recém-nascida. É uma posição vertical, sentada, com cadeiras especiais ou improvisadas, que foi muito utilizada, durante a Idade Média e até ao séc. XVIII. À época da escultura, a posição mais comum era a vertical, mas agachada. Há estórias actuais, de mulheres do campo que surpreendidas pelo parto e vendo-se sós, utilizaram a posição agachada.

As representações escultóricas masculinas são escassas, o mesmo não se verifica nas pinturas rupestres, onde assumem formas antropomórficas, com cabeças de animais, podendo isto estar relacionado com actividades xamânicas.

Em Larissa, na Grécia, foi encontrada uma escultura, de argila, com uma datação de 5 000 aC, representando um homem sentado a masturbar-se. Igualmente, para a mulher, existe uma escultura, muito primária, de argila, encontrada em Malta, datação de 4 000 aC, representando uma mulher a masturbar-se. Ela está sentada com as pernas levantadas e afastadas, com os grandes lábios tumefactos, uma mão na vulva e outra na cabeça.

Outros artefactos que chamam a atenção, são os bastões declaradamente fálicos, alguns com as bolsas escrotais bem esculpidas, e muitos com decorações gravadas, que poderiam ser bastões de comando. Encontram-se muitos artefactos destes, em marfim de mamute e pedra calcária, em muitas estações arqueológicas europeias, uns mais trabalhados que outros, esculpidos entre 20 000 e 10 000 aC.

Há um, intrigante, proveniente de Dolni Vestonice (República Checa), de marfim de mamute, com um comprimento de 8,7 cm, muito estilizado e harmonioso. Na junção do terço com os dois terços da peça encontram-se duas formações ovóides, pendentes que ultrapassam em largura o corpo da peça que, contém gravações, não indicativas de qualquer formação corporal. Põe-se o dilema: são testículos ou são mamas? O quer que seja pode ser bastão de comando, um objecto para práticas rituais ou um dildo.

Em França, foi encontrado na Dordogne, produzido no Paleolítico Superior, um bastão fálico duplo, com muitas gravações, conferindo-lhe um valor estético, funcionalmente permitindo a introdução simultânea a duas mulheres facultando, uma masturbação partilhada.

Como penso que deixei expresso, na ausência da escrita ou de uma transmissão oral, há uma grande dificuldade na interpretação dos artefactos artísticos, quanto ao seu valor simbólico e quanto à sua funcionalidade, pondo-se hipóteses interessantes, plausíveis, mas sempre contaminadas, por muito que se não queira, pelos nossos contextos actuais, desfocados, eventualmente, das intenções artísticas epocais longínquas.

Isto, a propósito dos bastões como dildos, com provável utilização em rituais com a desfloração. A sua introdução pode ser mais ampla, abarcando a oral e anal. Pensa-se que a utilização de dildos, rebatizados de brinquedos sexuais, se iniciou na Idade do Gelo. Se se verificaram introduções vaginais de objectos, com intuitos sexuais, em símios em liberdade, atendendo a aspectos evolucionários, porque não admitir o seu uso ancestral, pelo menos, após a passagem à posição bípede, com melhor acesso à vulva.

Existe um fragmento de uma gravação em osso de rena (do Paleolítico Superior), encontrado na Dordogne, em que se vê um animal, um veado, em pé, com o pénis erecto, colocado sobre uma fêmea, provavelmente xamânica, sob a condição de mulher-animal com pernas correspondendo às de uma corça, com o ventre aumentado, por provável gravidez, com peles cobrindo parcialmente o abdómen com vários adornos, colares e pulseiras.

A Arte Rupestre implica pintura, escultura e gravação. A céu aberto, existem poucas pinturas, é minha convicção que a usura do tempo, não permitiu que muitíssimas mais chegassem até nós.

À entrada de uma gruta na Dordogne, com uma datação de 30 000-25 000 aC, encontra-se a gravação de uma fenda vulvar, bem definida e profunda e que, sob o ponto de vista simbólico levanta a questão de se saber se esta vulva não representa o acesso ao útero, que a caverna configura.

Como exemplo de uma escultura na rocha, refiro ainda uma interessantíssima escultura ou, talvez melhor, baixo-relevo, em rocha calcária, na Dordogne, com datação de 22 000 a 18 000 aC., denominada Vénus com um chifre ou simplesmente Vénus de Loussel, de um grande simbolismo relacionado com a reprodução. Tem numa mão, levantada, um chifre de bisonte, encurvado como normalmente, representando uma lua no quarto crescente, tem incisões, representando os treze dias do quarto crescente e os treze meses do ano lunar; a outra mão, descaída, aponta para um ventre aumentado de volume, por provável gravidez, parecendo estar a estabelecer uma ligação das fases da lua, quarto crescente, com uma gravidez.

A gravação e pintura, em rocha, tem um bom exemplo em Foz Côa, o Homem da Ribeira de Piscos com datação à volta de 15 000 aC. Trata-se de três gravações sobrepostas, em que há um auroque pintado que tem outro, mais pequeno, no seu interior; em sobreposição, e em primeiro plano, encontra-se um homem, em erecção, com um pénis de grandes dimensões a ejacular

A gravação e pintura, em rocha, tem um bom exemplo em Foz Côa, com o Homem da Ribeira de Piscos com datação à volta de 15 000 aC. Trata-se de três gravações sobrepostas, em que há um auroque pintado que tem outro, mais pequeno, no seu interior; em sobreposição, e em primeiro plano, encontra-se um homem, em erecção, com um pénis de grandes dimensões, a ejacular. E porque não a ejacular? Há provas de que os neandertais estiveram neste vale, mas isso foi cerca de 15 000 anos antes destas gravações.

A associação entre homininis e animais e a sua dependência deles, é um facto com milhões de anos: carne, peles para vestuário e paredes das tendas, ossos de mamute para fazer as tendas no período glaciar, instrumentos musicais a partir dos ossos, dentes como adornos, material para actividades artísticas, etc.. Para relacionamento sexual, só após a domesticação de animais de médio porte, o que aconteceu há dez mil anos. Refiro uma pintura em Vale Camónica nos Alpes italianos com 3 000 aC, representando um homem a fazer sexo com uma burra e uma outra na Sibéria (Rússi), em que um homem com skis tenta copular um alce.

Quanto à homossexualidade, o exemplo, no Mesolítico (um pouco fora já, dos parâmetros temporais a que me propus, até por que as comunidades deste período, são diferentes das da Idade do Gelo, 110 000 a 12 000 anos, com um pico aos 25 000), de interessantes gravações na rocha na gruta de Addaura, na Sicília (Itália): os participantes desta festa, pertencem aos dois sexos e estão nus; dois homens, com os pénis erectos encontram-se deitados no chão, parecendo rolar um sobre o outro, enquanto os outros sete circundantes parecem dançar e possivelmente cantar. Na realidade há várias interpretações, uns vêem nesta representação uma relação homossexual dos dois indivíduos deitados, outros uma demonstração acrobática, outros uma cerimónia iniciática, com a virilidade como componente principal, outros de sacrifício humano, outros, ainda, de uma execução de prisioneiros por enforcamento. De qualquer modo o carácter sexual parece bem evidente.

A Arte rupestre nas cavernas tem uma outra abordagem. Foram encontradas 150 cavernas (a mais antiga é a de Chauvet com uma datação de 31 000 aC, em França), quase todas no Norte de Espanha, Sul da França e da Alemanha e regiões mais a Leste da Europa. A Pintura rupestre está ligada aos Cro-Magnons que coabitaram ainda com os Neandertais, antes da sua extinção. Os temas centrais estão relacionados com os animais, especialmente de grande e médio porte, de que estavam muito dependentes. As magníficas cores que se veem, hoje, nas cavernas, podem não ser as que foram utilizadas, mais frequentemente, ocres vermelhos e amarelos, carvão e fuligem, cuja durabilidade é variável. Os óxidos de ferro e os hidróxidos mudam de cor. Os pigmentos brancos podem passar a negro, e os negros a verde. Dependem também da constituição química e da textura da rocha onde são aplicadas e das condições atmosféricas no interior da gruta.

Qual a finalidade da sua execução e porquê em cavernas, geralmente muito fundas e de difícil acesso? Porquê esconder as suas obras? Não parece que fosse uma questão de preservação. No Paleolítico Superior, havia já sentimentos de transcendência, de religiosidade, com complexidade de pensamentos e de simbolismos, necessários até à coesão das comunidades e à entreajuda nas tarefas indispensáveis à sua subsistência. Logo, muito provavelmente estas cavernas seriam lugares de culto e daqui saltamos para o xamanismo. Os xamãs transformam-se em pessoas sagradas, com poderes mágicos, fazendo a ligação entre um mundo sobrenatural e o grupo, através de técnicas de obtenção do êxtase (com práticas meditativas especiais e/ou com música, dança e, naquele tempo, com plantas) – muitas das práticas religiosas favorecem a libertação de endorfinas a nível cerebral.

Um bom exemplo é a gruta de Trois Frères, em França. Várias figuras humanas estão representadas na gruta com os Xamãs a serem representados por figuras híbridas, homem-animal, cujo corpo é humano e a cabeça animal. Uma dessas representações, pintada e gravada, conhecida como Feiticeiro, apresenta uma mistura de vários animais com um rosto de pássaro, um mocho, que tem visão noturna (o xamã deve ver no escuro), orelhas de lobo, cabeça e armação de rena, corpo e cauda de cavalo, patas dianteiras de urso, sendo as pernas, os pés, órgãos sexuais e postura, humanos. Nesta gruta há outras duas figuras xamânicas: uma, meio homem-meio bisonte; outra, exactamente com a mesma conformação corporal, mas com um grande pénis. Quer o bisonte quer o veado são animais cuja organização social é a poliginia e a posse de harém. Com estas representações, e com a sua proximidade aos animais, seria natural que as sociedades tomassem para si, como modelo, o acasalamento poligínico. As grutas poderiam ter servido, também, para a iniciação de jovens masculinos para a sua integração na sociedade masculina adulta.

É nesta gruta de Trois Frères que se encontra um dos primeiros testemunhos da Arte musical, um tocador de flauta, o que reforça a ideia de que nos rituais nas cavernas, haveria acompanhamentos musicais. Põe-se a hipótese de os primeiros sons, de carater rítmico, emitidos a partir de artefactos líticos ou lenhosos, terem sido criados antes dos hominídeos terem emitido sons vocais com algum significado. A partir do Homo habilis, cerca de 1,7 milhões de anos, com o aparecimento da fala, é muito provável que tenha havido alguma melhoria naqueles artefactos, e que com o aparecimento do Homo sapiens sapiens, no Paleolítico superior, e agora sim, com o desenvolvimento da linguagem, houvesse lugar ao canto e à música. Existem circuitos cerebrais para o processamento musical como a circunvolução temporal superior e a circunvolução de Heschl, que contém o córtex auditivo primário. A audição de sons musicais pode desencadear emoções e regular estados de humor apoiados em bases neuronais relacionadas com o prazer biológico, recompensa e motivação dos hominídeos e de alguns animais. As estruturas mesolímbicas dos gânglios basais onde se situa o núcleo accumbens, constituído por neurónios dopaminérgicos, relacionados com a recompensa, está largamente conectado com outras partes do sistema límbico. Os circuitos de recompensa são filogeneticamente antigos.

Foram encontrados artefactos produtores de sons pelo sopro, 120 considerados como flautas, sendo a mais completa, encontrada na Alemanha, com uma datação de 35 000 anos e mais de 90 assobios e uma melhoria de qualidade de instrumentos, com a introdução de ossos como matéria-prima.

Na gruta de los Casares, em Espanha, encontram-se várias gravações, datadas de 30 000 a 15 000 anos, sendo uma delas, a representação mais antiga de coito. A figura masculina, com um falo enorme repousando sobre o ventre e o púbis da mulher, com uma esteatopigia muito acentuada, volta a cabeça para olhar para um mamute; representa uma cerimónia de ritual sexual ou hierogamia. Ainda em Espanha, na gruta de La Marche, encontra-se uma representação de um coito frontal, mais recente, mas ainda no Paleolítico superior.

Existem grutas, ainda com vestígios de andaimes de madeira, montados para colocar os artistas pintores ao nível das suas pinturas nas paredes e possibilitar também a pintura dos tectos. Marcas de fuligem mostram que, tochas ou velas acesas, eram utilizadas para iluminar quem estava a trabalhar. Nas reuniões cerimoniais, muito provavelmente devido à localização, bem no interior, seguramente deveria haver iluminação artificial, para daí tirar alguns efeitos cénicos. As culturas envolvem códigos de repressão. Os códigos de conduta sexual variam de sociedade para sociedade e, quando são incongruentes com outras, em que são estabelecidas de algum modo relações de dependência, as mais repressivas, se tiverem maior poder (militar, político ou religioso), tendem a impor os seus códigos de maneira absoluta. Há um documento etnográfico esplêndido, a carta de Pêro Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, mas antes de fazer pequenas transcrições, algumas considerações são necessárias. O conteúdo da carta é o relato de um reencontro, aqui pacífico, de pessoas do mesmo género (Homo sapiens), que partindo de África, se separaram há 90 000 a 85 000 anos, ainda como Homo sapiens arcaico tardio. Uns chegaram à Península Ibérica, há 40 000 a 25 000 anos, já como Homo sapiens moderno, depois de alguns entrecruzamentos. Passadas algumas dezenas de milhares de anos, não contentes com a sua confinação a um pequeno território (o mais ocidental da Europa), resolveram por ambição expandir-se pelo Mundo. Vestidos, possuindo tecnologias várias, caravelas, conhecimentos de Astronomia, instrumentos de marear, armas de fogo, armaduras, conhecimentos de conservação de alimentos, conhecimentos avançados de Medicina (para a época), escrita, livros.
Os outros fizeram um longo percurso temporal de cerca de 75 000 a 70 000 anos mas, também espacial. Deslocaram-se uns pelo centro e outros pelo sul da Ásia, bordejando estes as costas asiáticas, sofrendo extensos períodos de alterações climáticas, com períodos longos de Gelo, de vulcões terríveis que os iam dizimando, subindo até ao estreito de Bering, certamente com entrecruzamentos até aqui chegarem, há 15 000 anos. Alguns deles em pequeno número, atravessaram por via terrestre, porque as águas dos oceanos tinham baixado e passados anos voltaram a subir. Uma ida sem regresso e assim chegaram ao Alaska, onde se detiveram, por condições desfavoráveis devido ao gelo; uns ficaram, são os actuais esquimós, outros foram à procura de melhor clima; uns desceram pelas costas do Pacífico, outros atravessaram o continente da América do Norte até ao Atlântico, descendo depois, sempre pela costa atlântica até à América do Sul. E aí os fomos encontrar, nus, armados de arcos e flechas, com conhecimentos suficientes de pigmentos para embelezarem os corpos, com adornos de penas, lábios perfurados com pedras coloridas aí introduzidas; ao fim de muitos milhares de anos e de muitos milhares de quilómetros, duas culturas, muito diferentes, estavam frente a frente, uma estava na História, a outra estava de onde nunca tinha saído, no Paleolítico Superior.

Agora alguns excertos: “quando o batel chegou à boca do rio, eram ali 18 ou 20 homens pardos, todos nus, sem nenhuma cousa que lhes cobrisse suas vergonhas”. “Andam nus, sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas vergonhas”. “Ali acudiram logo obra de 200 homens todos nus, e com arcos e setas nas mãos”. “E andavam aí outros quartejados de cores, isto é: deles a metade da sua própria cor e a metade de tintura negra, maneira de azulada, e outros quartejados d’ escaques [xadrez]”. “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis… e suas vergonhas tão altas e tão çarradinhas [fechadinhas] e tão limpas das cabeleiras que de as nós tão bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha”. “…cheio de penas , pegadas ao corpo, que parecia assetado como S. Sebastião, outros traziam carapuças de penas amarelas e outros de vermelho e outros de verde. E uma daquelas moças era toda tinta, de fundo acima, daquela tintura, a qual, certo, era tão bem feita e tão redonda e sua vergonha, que ela não tinha, tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha por não terem a sua como ela. Nenhum deles não era fanado [circuncisado], mas todos assim como nós”. “Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres moças, assim nuas que não pareciam mal, entre as quais andava uma moça com uma coxa, do joelho até ao quadril e a nádega, toda tinta daquela pintura preta e o resto todo da sua própria cor”. “… outra mulher moça com um menino ou menina no colo, atado com um pano não sei de quê aos peitos, que lhe não apareciam senão as perninhas, mas as pernas da mãe e o resto não traziam nenhum pano.” “…e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos e espáduas e pelos quadris, coxas e pernas até baixo; e os vazios com a barriga e estômago eram da sua própria cor. E a tintura era assim vermelha que a água lha não comia nem desfazia; antes, quando saía da água, era mais vermelho”.

Quando os zelosos missionários chegaram, as “vergonhas” tiveram de ser tapadas. Veja-se o que aconteceu, às populações locais, no séc. XVI, na América do Sul ocidental, com os invasores espanhóis, que imbuídos da sua religiosidade cristã e instigados pelos missionários, destruíram completamente os seus códigos de conduta sexual e todos os seus símbolos, quer esculturas, quer objectos de joalharia, quer simples bilhas de barro e como seria espectável, locais de culto da homossexualidade e transvestismo.

Mas no século passado, aconteceu o mesmo com objectos eróticos, que foram totalmente destruídos, na China, durante a Revolução Cultural ou Grande Revolução Cultural Proletária, iniciada em Maio de 1966, sob a direcção de Mao-Tsé-tung e executada pelos Guardas Vermelhos.

Ao longo deste longo artigo, fui incensando as tecnologias, as correntes teóricas, o trabalho de campo, e outro, dos investigadores e, perante, ainda, tantos aspectos nebulosos, fiz apelo, metaforicamente, ao Oráculo de Delfos “inverso”. Tenho um percurso, estudantil e profissional, de quase sessenta anos, a acreditar e a maravilhar-me com o conhecimento científico. Houve e há, tanta gente abnegada, inteligente e culta, a quem devemos tanto. Afinal, a História pode ser reescrita por boas razões. Afinal, não precisamos de nenhuma pitonisa do Oráculo de Delfos para adivinhar o futuro. O futuro pode antever-se com o desenvolvimento da Ciência, mas sem perder uma visão humanista deste Mundo em que vivemos e, a humildade e a lucidez de um Giordano Bruno, filósofo e astrónomo italiano “Se non è vero, è ben trovato” (1584).

* Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

 

Bibliografia base

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