A terapia sexual fora de série


A terapia sexual fora de série

A opinião de…
Patrícia Pascoal, terapeuta sexual e vice-presidente da SPSC

Data
4 Setembro 2016

Foto de Laila Torres

Estreada em Setembro de 2013, a série Masters of Sex é uma produção para televisão que conta a história dos pioneiros da investigação laboratorial em Sexologia e da terapia sexual: William Masters, ginecologista, e Virginia Johnson, inicialmente contratada para funções administrativas. Juntos fizeram um tetra: fundaram a investigação laboratorial em sexologia; criaram um modelo de resposta sexual; desenvolveram um modelo explicativo das dificuldades com a resposta sexual; e fundaram a terapia sexual.

Masters of Sex é sobre uma área disciplinar – a Sexologia – das mais transversais, pois agrega saberes de muitas outras áreas. Na série, a busca científica aparece emparelhada com a criatividade, muitas vezes considerada a sua antagonista mais comum. Embora parta de um ponto de vista autocentrado, não distanciadoas memórias da própria Virginia Johnson, relatadas no livro com o mesmo título, de Thomas Maier –, o resultado é uma narrativa televisiva imperdível, pelo lado pedagógico, pela relevância e atualidade das questões focadas.

Numa linha histórica, temos acesso cronológico aos eventos que tornaram os trabalhos de Masters & Johnson uma referência mundial no estudo e terapias sexuais. Numa linha processual, a série constitui-se um delicado manual de ensino acerca dos primórdios da investigação laboratorial, permitindo-nos pensar de que ‘massa’ é feita, com que desafios se deparam os investigadores e como o engenho e o entusiasmo são uma marca do espírito científico. Neste sentido, a série é também um poderoso meio de desmistificação de crenças e mitos acerca da ciência. A mais importante, a meu ver, é a de que o trabalho de laboratório é distinto e separável da prática clínica. Masters of Sex mostra-nos de forma muito cautelosa como a investigação laboratorial sustentou um modelo explicativo da resposta sexual, e como este, apoiado no conhecimento mais alargado, serviu para desenvolver um conjunto de metodologias de intervenção clínica. Espetadores/as incautos podem assumir que as metodologias de recolha de dados e os resultados obtidos por Masters & Johnson se mantêm absolutamente atuais e que devem ser defendidas de forma acrítica. Não é o caso. A série é apenas uma visão, um documento dramatizado que pode servir de base para uma melhor compreensão do contexto em se fundaram as raízes da investigação laboratorial em sexualidade humana e também de que forma ainda hoje muitas das concepções acerca da resposta sexual assentam nos resultados pioneiros desta equipa.

 

Embora parta de um ponto de vista autocentrado, não distanciado – as memórias da própria Virginia Johnson, relatadas no livro com o mesmo título, de Thomas Maier –, o resultado é uma narrativa televisiva imperdível, pelo lado pedagógico, pela relevância e atualidade das questões focadas

 

Relativamente à atualidade das questões abordadas, saliento três: a conciliação trabalho-família, as mulheres no mundo académico-científico e as dificuldades em angariar voluntários/as para a investigação. A primeira é abordada através da angústia e culpabilidade vividas por Virginia Johnson, mãe numa família monoparental, tentando conciliar a educação dos filhos com a atividade profissional, que progride numa carreira inusitada. Apesar das conquistas das últimas dezenas de anos de luta pela igualdade de género, existe ainda uma grande disparidade entre homens e mulheres no que respeita ao acesso e estabelecimento de uma carreira académica – a segunda questão abordada pela série. As universidades, os corpos editoriais das revistas científicas e as comissões científicas de congressos ainda não refletem, na maioria das vezes, uma distribuição equitativa entre os géneros, muito embora não faltem mulheres altamente qualificadas cientificamente. Por último, uma questão científica crucial, que levanta muitos problemas: como trazer pessoas ao laboratório? Mais… E as pessoas que vêm ao laboratório, serão elas equiparáveis ou distintas das que não vêm? Estará o estudo da sexualidade humana condenado a ser o estudo de um conjunto de pessoas altamente motivadas para explorar e conhecer a sua própria sexualidade? Se sim, será o conhecimento adquirido através destas amostras, válido para as restantes pessoas?

A série é bonita, parece inspirada nas cores dos filtros que se encontram nas aplicações de fotografia: vintage, faded colors, vignette… A estética datada aguça o olhar, prende a atenção. Por si só justificaria o visionamento. Mas é a natureza única da temática que a torna tão especial. Que outras séries detalham, de forma quase obsessiva, os passos e procedimentos que estão por detrás de fazer sair um estudo científico? Quantas colocam uma mulher sem graus académicos no centro disto tudo? Se calhar muitas outras. Mas nesta há sexo. Masters of Sex é um belíssimo objeto estético e pedagógico que, por querer ou sem querer, é também um manifesto elogio à curiosidade, ao engenho e à persistência.