“A intervenção psicológica com vítimas de abuso sexual requer formação especializada”
À conversa com…
Marisalva Fernandes Fávero (mfavero@ismai.pt), Coordenadora do Observatório da Sexualidade e do Projeto WebEducaçãoSexual
Data
4 de Fevereiro de 2017
Isabel Freire
“O abuso sexual é um crime muito difícil de sinalizar”, que pode ocorrer em qualquer lado: na família, na escola, na universidade, mesmo no consultório do psiquiatra ou psicólogo. Marisalva Fernandes Fávero, doutorada em psicologia e investigadora do Instituto Universitário da Maia, dedica-se ao estudo deste fenómeno, na perspetiva da vítima. A autora de Sexualidade Infantil e Abusos sexuais, terapeuta sexual e psicodramatista, explica ao site da SPSC, que “desenclausurar” o abuso é possível, mas complexo, requerendo do profissional que acompanha a vítima uma formação especializada.
Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica – A violência sexual pode ter apenas uma dimensão psicológica? Ou pressupõe sempre uma qualquer forma de agressão física?
Marisalva Fernandes Fávero – A violência sexual tem várias faces e protagonistas. Não pressupõe sempre a agressão física. Felizmente, e ao contrário do que as pessoas podem pensar, esta é uma constatação que os estudos científicos vieram trazer para a comunidade em geral. Até há umas décadas só se considerava violência sexual se houvesse marcas físicas e, portanto, os tribunais procuravam vestígios. Não se considerava violência sexual ser-se assediado, obrigado a ver cenas de sexo entre outras pessoas (ao vivo ou em filmes), a ver o corpo do agressor (no caso do exibicionismo), a deixar-se fotografar e filmar nu e em poses eróticas, etc..
SPSC – Que metáfora usaria para descrever o que acontece no universo psicológico e emocional de uma criança que seja abusada sexualmente por um membro da família, e de forma repetida, ao longo de anos?
MFF – O abuso sexual continuado é, para mim clausura, prisão. É um estado semelhante ao vivido em campos de concentração. Gera, na vítima, a despersonalização, a falta de controlo sobre o seu corpo, sobre as suas emoções, remete-a a um silêncio forçado, a uma permanência na situação de violência. Ainda que os portões de saída estejam abertos, não há para onde fugir. Emociono-me, sempre com uma afirmação de dois terapeutas franceses (Perrone e Naninni), que ilustram esta solidão e desamparo: “A criança fica numa situação de exílio. Faz parte do mundo adulto sem estar integrada e participa do mundo das crianças sem lhe poder pertencer. Por isso, está condenada ao silêncio! Em sua casa fala uma língua estrangeira e fala uma língua estrangeira no exterior. É estrangeiro num e noutro.” Eu “aportuguesei” a expressão anglo-saxónica Disclosure (usada para indicar a revelação do abuso sexual) num texto que está para publicar (“Porque Desenclausurar é mais do que revelar um segredo bem guardado”). A mensagem de esperança é que “desenclausurar” é possível. A terapia é imprescindível nestes casos. É preciso ter os sentidos em estado de alerta, para perceber quando uma criança ou adolescente está a ser vítima. É um fenómeno de silêncio, é certo, mas o ser humano não comunica só com palavras – as vítimas dizem que fizeram tentativas de revelar, que enviaram sinais, que não foram consideradas. Por outro lado, é imprescindível investir em programas de prevenção. Num estudo em que participei na Universidade de Salamanca (com Amaia Del Campo e Félix López), sobre a avaliação de um programa de prevenção em todos os níveis de escolaridade, 10 alunos/as (oito do grupo experimental e duas meninas do grupo de controle) revelaram, durante a aplicação do Programa, que foram ou estavam a ser vítimas.
SPSC – Que sinais não verbais pode a vítima enviar?
MFF – Qualquer mudança de comportamento, isolamento social, estar com sono em horários de aula ou de atividades sociais, alterações fisiológicas, comichão nas zonas íntimas, comportamentos sexuais ou interesses sexuais não esperados para a idade, etc..
SPSC – Quando pensamos em abuso sexual intrafamiliar não o associamos a mulheres agressoras. Porquê?
MFF – Em certa medida pensamos bem, porque está demonstrado que a maioria das vítimas são meninas e o agressor homem. No entanto, também há mulheres que agridem sexualmente crianças e adolescentes da sua família. Até há bem poucos anos, pensava-se que as mulheres só agrediam sexualmente, se instigadas pelos seus companheiros agressores. Mas os estudos científicos e o trabalho com vítimas tem vindo a desconstruir este mito. A pedofilia feminina e a agressão sexual por mulheres são reconhecidas na psiquiatria e psicologia forense. No meu estudo (realizado a partir de 1994 e publicado em 2003) encontrei 10% de mulheres agressoras de crianças. Os dados mantêm-se e os estudos internacionais vão na mesma direção, revelando percentagens que vão dos 5% (quando as vítimas são meninas) aos 20% (para vítimas rapazes). A agressão é mais facilmente velada, pois nas crianças mais jovens pode ser confundida com os cuidados. Isto também se aplica aos homens agressores, mas no caso das mulheres pode ser ainda mais subtil. É preciso pontuar que as consequências podem ser tão graves quanto as perpetradas por agressores e os motivos também se assemelham.
O abuso sexual continuado é, para mim clausura, prisão. É um estado semelhante ao vivido em campos de concentração. Gera, na vítima, a despersonalização, a falta de controlo sobre o seu corpo, sobre as suas emoções, remete-a a um silêncio forçado, a uma permanência na situação de violência. Ainda que os portões de saída estejam abertos, não há para onde fugir.
SPSC – Como pode a vivência testemunhal do abuso sexual do ‘outro’, marcar uma criança ou adolescente?
MFF – Neste momento, e depois de 6 anos a investigar o assunto, não tenho dúvidas de que uma criança ou adolescente que ouve, assiste e/ou é confidente de uma vítima muito próxima de si, é também ela uma vítima (indireta). Temos verificado que as características do abuso sexual em si, as vivências subjetivas, os mecanismos de defesa e as consequências são muito semelhantes às das vítimas diretas.
SPSC – É possível que o abuso sexual vivido na infância/adolescência seja completamente apagado do consciente? Que técnicas terapêuticas se recomendam para intervir junto destas vítimas?
MFF – Apagado não é o termo. O acompanhamento de vítimas diz-nos que, principalmente nos casos de abusos sexuais repetidos, de facto podem ocorrer no momento do trauma, reações dissociativas que, ao impedir o acesso às memórias (do trauma), prejudicam o seu processamento. A dissociação é um fenómeno defensivo, complexo, que permite que a pessoa se distancie cognitiva e emocionalmente da experiência, de forma a manter a estabilidade física e mental. A dissociação pode surgir durante, ou imediatamente após o trauma (peritraumática), ou como uma consequência a longo prazo. Por isso, está fortemente associada a fenómenos dissociativos na idade adulta, pelo que a presença da dissociação nesta etapa da vida pode ser um indicador fortemente confiável de que a pessoa sofreu abusos sexuais na infância e/ou adolescência. Várias propostas de intervenção focada no trauma têm surgido, cada qual reclamando maior eficiência e rapidez. Independentemente do modelo terapêutico de intervenção utilizado, deve promover a estabilização dos sintomas, validar a experiência e os sentimentos associados e promover o desenvolvimento pessoal com vista ao futuro.
SPSC – Que organizações recomenda no apoio a famílias que lidam com o problema da violência sexual na infância/adolescência?
MFF – Tenho colaborado com a Associação Projecto Criar. Possui os GIAC (Gabinetes Interdisciplinares de Apoio à criança, no Porto, Vila do Conde, Braga e Lisboa) e oferece intervenção psicológica, social e jurídica às vítimas. Há várias respostas sociais, IPSS, ONG, Gabinetes de psicologia em algumas universidades. Em dezembro foi criado o primeiro Centro de Crise de apoio a mulheres e raparigas sobreviventes de violência sexual na Cidade de Lisboa, o primeiro serviço especializado em Portugal. Na inauguração ficou a promessa política para o seu alargamento ao país.
SPSC – O Sistema Nacional de Saúde comparticipa o tratamento psicoterapêutico a menores vítimas de violência sexual? E a adultos?
MFF – Não especificamente. Há apoio psicológico em hospitais, centros de saúde, etc.. Mas a resposta, embora feita por psicólogos e psiquiatras, não é especializada e isto deveria ser um ponto importantíssimo a entrar na agenda política. A intervenção psicológica com vítimas de abuso sexual (seja com crianças e adolescentes ou pessoas adultas que foram vítimas na infância ou adolescência) requer uma formação especializada. É uma área complexa, exige muito do/a profissional, que deveria submeter-se à supervisão e à sua própria terapia.
SPSC – Há muito a ideia de que a vítima de abuso sexual se transforma frequentemente em agressor/a, se não for ajudada. Na realidade é mesmo assim?
MFF – Não é bem assim. Grande parte das vítimas rompe o chamado ciclo de violência. De outro modo, tendo em conta a elevada frequência de vítimas, o flagelo da violência sexual seria, ainda, maior. Outra evidência é que a maior parte das vítimas são mulheres e os ofensores, homens.
Temos que considerar todos os fatores que possam contribuir para a agressão sexual. Apesar de a maior parte das vítimas romper, efetivamente, o ciclo de violência, a intervenção psicológica é muito importante, para, por um lado evitar a repetição do ciclo, mas também para acabar com esta espécie de “premonição” de vítima-a-agressor, nos rapazes vítimas. Por tudo isto, é preciso realçar que, ser vítima de violência sexual na infância ou adolescência pode ser um fator de risco de agressão sexual no futuro, não a causa do referido comportamento.
SPSC – As direções pedagógicas dos meios universitários portugueses são sensíveis à necessidade de prevenir a violência sexual, de criar estruturas para denunciar agressores e para apoiar vítimas? Ou promove-se mais a ideia de que ‘isso não acontece aqui’?
MFF – Não reconheço essa preocupação em nenhuma universidade.
SPSC – Nas escolas secundárias também acontece violência sexual? De que formas? O sexting é uma delas?
MFF – A violência sexual acontece em qualquer lugar, desde que haja agressores. O sexting está a tornar-se vulgar, pois toda a gente tem telemóveis ou outros meios de comunicação, todos de fácil acesso.
Se a violência sexual, principalmente a intrafamiliar, é um crime quase perfeito (protegido pelo silêncio da vítima, da família, pelos sentimentos ambivalentes da vítima para com o agressor, por outros fenómenos psicológicos), a violência sexual nos contextos profissionais é um crime perfeito, sobretudo quando é perpetrado por psiquiatras e terapeutas.
SPSC – Sabemos que o assédio sexual também acontece nos gabinetes de profissionais de saúde (médicos, psicólogos, psiquiatras, entre outros especialistas). Esta é uma realidade mais fácil de sinalizar, punir e combater?
MFF – Toda a violência sexual é difícil de sinalizar. Se a violência sexual, principalmente a intrafamiliar, é um crime quase perfeito (protegido pelo silêncio da vítima, da família, pelos sentimentos ambivalentes da vítima para com o agressor, por outros fenómenos psicológicos), a violência sexual nos contextos profissionais é um crime perfeito, sobretudo quando é perpetrado por psiquiatras e terapeutas. É muito difícil de sinalizar e combater. Os estudos indicam que, apenas as situações mais sérias terão alguma probabilidade de serem reportadas. Dá-se o caso, em grande parte das situações, de a própria vítima demorar a reconhecer que está a ser vítima. Em tribunal a primeira coisa que perguntam é: “se isto aconteceu na primeira consulta, porque é que lá voltou?”. E as vítimas são desacreditadas, remetidas ao silêncio. E a “violência sexual” é quase legitimada em tribunal. O público em geral faria a mesma pergunta, tende a culpar a vítima, por isso, dizia eu, é um crime perfeito!
SPSC – Temos ideia da percentagem de pessoas que sofre (sofreu) de violência sexual no nosso país, atualmente? Como interpretar estes dados?
MFF – Desde a realização do meu estudo não foi feito nenhum estudo nacional de prevalência, que retira dados da informação da própria população e não através de fontes oficiais (que são as que resultam das denúncias). Neste primeiro estudo, 7% da amostra referiu ter sido vítima até os 18 anos. No entanto, na época, tendo em conta os dados internacionais (entre 10 e 15%) considerámos que algumas pessoas da amostra não tinham sido sinceras e que os dados de vitimação poderiam ser maiores do que os revelados. Por este motivo, e passados quase 15 anos do início do processo Casa Pia (que consideramos ter sido um acontecimento que fez romper o silêncio social sobre o fenómeno, tanto que se verificou um aumento das denúncias), decidimos replicar o estudo e, embora só tenhamos tratado os dados do norte do país, verificamos que 10% da amostra revelou ter sido vítima. Mas aqui introduzimos um dado novo, pois verificámos que, nesta mesma amostra, 5% foi vítima indireta, ou seja, testemunhou o abuso sexual por ter ouvido, presenciado ou sido confidente de uma vítima direta. Como se vê são dados preocupantes. Por isso urge a implementação de programas de prevenção (avaliados e eficazes), a reformulação das penas, a intervenção psicológica e jurídica para as vítimas e para as suas famílias e a intervenção com agressores.
SPSC – A sociedade portuguesa reconhece os horrores da violência sexual como horríficos?
MF – Sim, depois de ter sido confrontada de uma forma muito dramática, com o que ficou conhecido como o processo Casa Pia. A sociedade portuguesa teve de rever certos mitos e preconceitos, nomeadamente o de que o agressor pode ser alguém com reconhecimento e simpatia pública, e o de que as vítimas podem ser rapazes. O processo Casa Pia abriu um debate público, social, e conseguiu implicar todas as pessoas na reflexão sobre o que é, verdadeiramente, a violência sexual contra crianças e adolescentes. Inicialmente, no entanto, gerou-se pânico, medo e insegurança por parte dos adultos relativamente à forma como deveria ser o relacionamento com as crianças sem ser/parecer abusivo. É evidente que todo este processo teve também repercussões nos processos judiciais. Apesar de considerar que ainda falta muito para se chegar a um modelo adequado de intervenção nos abusos sexuais, alguns acontecimentos abrem uma ponta de esperança. Por exemplo, o caso de um professor, no Porto, que foi condenado por abuso sexual de três alunas adolescentes, cujos tipos foram o que chamamos de menos intrusivos (sem penetração, sem contactos físicos subtis, assédio sexual verbal, etc.) e para tal terem valorizado as perícias psicológicas, o meu depoimento na qualidade de psicóloga de uma das vítimas, e terem ouvido as adolescentes, com recurso à gravação para memória futura.