Violência sexual em Portugal: em que ponto estamos?


Violência sexual em Portugal: em que ponto estamos?

A opinião de…
Ricardo Barroso. Investigador e professor auxiliar da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.

Investigador do Centro de Psicologia da Universidade do Porto e do Sexlab.

Membro da Direção de da Comissão Científica da International Association for the Treatment of Sex Offenders.

Membro da Direção da European Association for Forensic Child and Adolescent Psychiatry & Psychology.

Data
4 de Fevereiro 2017

A violência sexual é reconhecida como uma das formas mais graves de concretização da violência nas sociedades ocidentais, suscitando facilmente nas pessoas uma resposta de repúdio. Abrange um vasto conjunto de atos sexualmente violentos: violações, abuso sexual de menores, prostituição forçada, tráfico para exploração sexual ou mutilação genital feminina.

Para além do essencial e prioritário foco nas vítimas, os profissionais que exercem a sua prática no âmbito da sexologia forense poderão lidar especificamente com agressores sexuais, tanto no processo de avaliação do risco de reincidência, no estudo das suas características clínicas, ou na implementação de intervenções específicas dependendo da tipologia de agressor sexual (e.g., violador, abusador sexual de crianças ou com interesses sexuais pedófilos).

Centrando o foco nos agressores sexuais, parece-nos importante fazer em primeiro lugar uma descrição do processo técnico que permite ajudar na distinção da presença ou ausência de violência sexual. Em seguida, procedemos a um breve resumo sobre o que sabemos sobre a prevalência desta tipologia de violência em Portugal e, por último, uma reflexão sobre o que é preciso fazer do ponto de vista da avaliação e intervenção clínica.

Importa antes de mais esclarecer que as práticas de violência sexual podem ser perpetradas por adolescentes ou adultos sendo, na sua maioria, praticadas por agressores do sexo masculino sobre vítimas do sexo feminino, embora estejam identificados comportamentos de violência sexual cometidos por mulheres sobre homens e, também, em relações do mesmo sexo.

Do ponto de vista técnico, o que define a presença ou ausência de violência sexual, bem como a natureza da interação e do relacionamento em causa é o consentimento, a igualdade e a coerção (ver Barroso, 2016, para mais detalhes).

Por consentimento entende-se um acordo ou um acordo implícito, em que a pessoa que consente deverá possuir: 1) compreensão do que é proposto, 2) conhecimento dos padrões sociais daquilo que é proposto, 3) consciência dos potenciais riscos e consequências, 4) conhecimento das alternativas, 5) decisão voluntária, assumindo o princípio de que o acordo e o desacordo serão respeitados e, finalmente, 6) competências mentais.

Em relação ao fator da igualdade, considera-se em todo o processo da interação sexual as diferenças de desenvolvimento físico, emocional e cognitivo, bem como a passividade, a assertividade, o poder e controlo e a autoridade. Se os indicadores desenvolvimentais são relativamente fáceis de avaliar, estes últimos indicadores centrados na autoridade e no poder e controlo, são em geral descritos como fundamentais para clarificar a igualdade ou desigualdade da interação sexual, destacando-se aqui principalmente as diferenças de papel entre o eventual agressor e a vítima (e.g., tio/sobrinha). Esta autoridade poderá assim ser explícita ou menos nítida/percepcionada.

Sobre o terceiro e último fator, a coerção, esta refere-se às pressões existentes que impedem a vítima de optar de livre vontade, podendo ser experienciada diretamente, de forma percepcionada (e.g., vulnerabilidade da vítima face a um agressor mais velho), motivada por ganhos secundários ou por perdas secundárias. Em resumo, um abuso sexual é qualquer comportamento sexual que ocorre sem consentimento, sem igualdade e como resultado de uma coerção.

[…] em relação ao ano de 2012, cerca de 37% de todas as violações cometidas em Portugal nesse ano foram perpetradas por jovens menores de idade

Em relação ao contexto português, podemos salientar que nos últimos anos têm vindo a ser realizados diversos estudos que nos permitem ter uma noção clara da prevalência, tanto em relação aos agressores como às vítimas de violência sexual. Sobre estas últimas, uma investigadora (Martins, 2013) que recorreu a uma amostra de 1000 participantes portugueses, verificou que a prevalência dos comportamentos sexualmente abusivos sofridos era de 29%, sendo a maioria das vítimas do género feminino (60%). Concretamente, os dados obtidos nesta investigação indicaram que cerca de 25% do total de participantes da amostra do género masculino e aproximadamente 33% do total de participantes do género feminino assinalaram ter sofrido algum tipo de violência sexual ao longo da sua vida.

Em relação à prevalência de crimes sexuais, uma investigação realizada com adolescentes agressores sexuais (Barroso, 2012) que cometeram crimes entre 2004 e 2012, verificou uma grande variabilidade anual do número de agressões sexuais cometidas por jovens menores de idade. Assim, por exemplo, a prevalência anual dos crimes de violação oscilou entre os 14% (ano de 2004) até aos 37% (ano de 2012). Por outras palavras, concretamente em relação ao ano de 2012, cerca de 37% de todas as violações cometidas em Portugal nesse ano foram perpetradas por jovens menores de idade, sendo os restantes crimes desta tipologia realizados por adultos. Também neste estudo se verificou que 20.7% dos adolescentes agressores apresentavam já interesses sexuais pedófilos.

Num estudo mais recente com uma amostra representativa com 297 agressores sexuais adultos (Barroso & Oliveira, 2016) verificou-se que 15.6% destes apresentavam interesses sexuais pedófilos.

Apesar destes dados, decorrente da nossa experiência profissional, podemos afirmar que, com enorme probabilidade, existem muitos mais crimes do que aqueles que são reportados às entidades oficiais, levando a crer que muitas vítimas não apresentam denúncia às autoridades. As explicações para não o fazerem parecem ser as mesmas que surgem em diversos trabalhos científicos de outros países: percepção de dificuldade de prova, agressão sexual sofrida em contexto conjugal, morosidade do processo legal, revitimização, ou receio de vitimação secundária.

Ao contrário do que por vezes é percepcionado, é possível verificar a existência de dados epidemiológicos sobre a problemática da violência sexual em Portugal, fruto de investigações com suficiente qualidade metodológica para serem considerados representativos da população portuguesa.

Desde há poucos anos, entramos paulatinamente numa segunda fase crucial: a) validação de instrumentos de avaliação do risco de reincidência, b) concretização de programas de intervenção terapêutica específicos com vítimas e com agressores sexuais e, c) formação técnica especializada dos profissionais para intervir com vítimas ou com agressores sexuais.

A complexidade e as responsabilidades profissionais neste âmbito, exigem uma maior uniformização/estandardização de procedimentos de avaliação forense e práticas de intervenção técnica. É também essencial que os profissionais que trabalhem neste âmbito detenham formação específica e atualizada, e que se criem linhas técnicas orientadoras (guidelines) reguladoras desta prática. Torna-se fundamental, por isso, promover uma linguagem comum (rigorosa) entre os profissionais e prepará-los sobre os modelos de intervenção com vítimas ou com agressores. Esta preparação deveria ser dada sobre a forma de especialização, já que requer que o profissional tenha um conhecimento sobre a problemática da agressão sexual e sobre as suas várias formas de expressão e das técnicas mais eficazes a utilizar. Por exemplo, sabemos atualmente que uma intervenção psicoterapêutica que não atenda à tipologia do agressor (violador, abusador sexual de crianças ou com interesses sexuais pedófilos) é totalmente ineficaz e, em alguns casos, contraproducente. Importa, assim, concretizar programas de intervenção e formação técnica específica para cada um destes grupos. No entanto, e permitam-me ser ainda mais específico, torna-se necessário também a este nível clarificar o papel e reforçar a intervenção dos psicólogos, enquanto profissionais privilegiados neste contexto, seja com vítimas ou com agressores.

 

Referências bibliográficas

Barroso, R. (2016). Violência Sexual. In R. L. Maia, L. M. Nunes, S. Caridade, A. I. Sani, R. Estrada, C. Nogueira, H. Fernandes, & L. Afonso (Coords.) Dicionário Crime, Justiça e Sociedade. Lisboa: Edições Sílabo.

 

Barroso, R. (2012). Características e especificidades de jovens agressores sexuais. (Tese de doutoramento não publicada). Universidade de Aveiro, Portugal.

 

Martins, S. (2013). Vitimização e perpetração sexual em jovens adultos: da caracterização da prevalência às atitudes. Tese de Doutoramento (Tese de doutoramento não publicada). Universidade do Minho, Portugal.

 

Barroso, R. & Oliveira, S. (em preparação). Prevalence of sexual violence within the portuguese context.