Dar à sexualidade “atenção plena”


Dar à sexualidade “atenção plena”

À conversa com…
Sandra Vilarinho

 

Percursos…
Presidente da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica e Membro da Comissão Executiva e coordenadora do Comité da Educação Sexual da Federação Europeia de Sexologia. Psicóloga clínica, terapeuta sexual e instrutora de mindfulness. Doutorada em Psicologia Clínica (FPCE, Universidade de Coimbra) e Investigadora do Sexlab da FPCE (Universidade do Porto).

 

Contacto
91 962 73 19

 

Data
5 de agosto de 2017

 

Entrevista

Isabel Freire

Define-se como “uma pessoa simples, focada no prazer dos momentos e das pequenas coisas (como o chocolate), e também das grandes, como as pessoas”. É presidente da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica, psicóloga clínica, terapeuta sexual e instrutora de mindfulness e autocompaixão. Sandra Vilarinho fala nesta entrevista dos benefícios terapêuticos da “atenção plena” (ou mindfulness) para a sexualidade: “Os estudos mostram melhorias significativas ao nível da satisfação sexual, resposta sexual (desejo, excitação, orgasmo) e diminuição do sofrimento associado às dificuldades (distress)”.

Em Portugal não há ainda muitos especialistas com formação sólida nas duas áreas (sexualidade e mindfulness), mas a curiosidade e o interesse são crescentes.

Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica – Em que medida o mindfulness influenciou a sua forma de ser e de estar no mundo?

Sandra Vilarinho – O mindfulness (ou atenção plena) pode ser definido como a consciência que emerge quando dirigimos intencionalmente a atenção para as coisas tal como elas são, no aqui e agora, sem julgamento. Trata-se de uma prática que nos convida sobretudo a observar com uma atitude de abertura, curiosidade e aceitação, oferecendo-nos a devolução ao momento presente, sem as preocupações do passado ou as antecipações do futuro (que tanto ocupam e pré-ocupam a nossa mente). É uma forma de estar que se cultiva (através da prática) e que nos vai permitindo responder perante determinados eventos, em vez de somente reagir.

Pessoalmente, a prática de mindfulness tem-me influenciado no sentido de convidar cada vez mais a perspetivar e relativizar as pequenas contrariedades (inevitáveis e transitórias, tal como os momentos de sucesso e alegrias). Isto ajuda-me também a ser mais grata. E a manter-me mais focada no que realmente me faz sentido, e que muitas vezes passa por momentos simples, não exigentes, de presença disponível. Sinto-me uma pessoa mais satisfeita, com maior facilidade em compreender e lidar com o sofrimento, e encarar tudo isto como um processo – o que se estende também à forma como exerço a minha prática clínica.

SPSC – O que foi mais exigente (ou difícil) no seu percurso de aprendizagem do mindfulness?

SV – Quando comecei a praticar em 2003, o que me parecia mais exigente era a disciplina e a ideia de ter que estar sentada (aparentemente sem fazer nada), durante algum tempo. Quando temos dias com muitas solicitações, torna-se difícil encontrar tempo para dedicar a nós mesmos e a aquietar a mente. Tudo parece mais importante e urgente. Este é um dos maiores desafios. Sentarmo-nos e ficarmos por algum tempo com a nossa experiência, tal como ela é.
Em termos de práticas, era-me particularmente difícil o body scan (ou exploração corporal), atenção dedicada e bondosa a várias partes do corpo, feito na posição deitada. Invariavelmente adormecia. Aconteceu num workshop com o Jon Kabat-Zin, em 2010. Tinha ido a Londres com o propósito de aprender com o “grande mestre”, e após cerca de meia hora de body scan, supostamente tranquilizador e em atenção plena, acordei, zangadíssima comigo mesma. Senti que estava a perder a formação, o que não fazia sentido nenhum. Fiquei frustrada. Mas a zanga e os pensamentos de chicote duraram pouco. Apenas até ao momento em que ouvi dizer do Kabat-Zin, na sua imensa sabedoria: “É normal adormecer. Se é o que o corpo mais precisa, damos ao corpo, e a nós mesmos, o que precisamos, e confiamos que aquilo que recebemos é o suficiente por agora”.

SPSC – Por que motivo escolheu o mindfulness como caminho de intervenção terapêutica, ao nível clínico da sexualidade?

SV – Não sei se fui eu que escolhi esta abordagem ou se foi esta forma de estar (que comecei a cultivar por razões pessoais) que fez com que não fizesse muito sentido ser de outro modo. Na altura em que iniciei a minha prática estava longe de imaginar que a Psicologia pudesse ser tão integrativa, ao ponto de abraçar as abordagens baseadas no mindfulness, enquanto “terapias de terceira geração” (na tradição cognitivo-comportamental). Só mais tarde, em 2007, viria a percebê-lo. A integração das práticas que nos colocam no presente, na experiência, no corpo, nas emoções, pareceu e continua a parecer-me um caminho natural para uma intimidade sexual mais consciente e prazerosa. Era uma “escolha” quase inevitável, sobretudo quando vivemos numa cultura de consumismo e urgências que facilmente nos aliena também na nossa sexualidade. Reforçaram também esta escolha as crescentes evidências empíricas e clínicas, que mostram os benefícios de dar atenção à nossa experiência sexual de um outro modo, mais consciente e focado.

SPSC – Quais são os prejuízos mais recorrentes (ou mais lesivos) de uma sexualidade vivida de forma rotineira, automatizada, desfocada?

SV – As vidas em correria, os imediatismos, as pressões em tempo real, são altamente valorizados nos nossos padrões atuais de interação com o mundo. Encontramo-nos frequentemente imersos em preocupações, que se sucedem a mais preocupações. Também as exigências, de que deveríamos ser desta ou daquela forma, de que deveríamos comportar-nos desta ou daquela maneira, de que as coisas deveriam ser diferentes do que são no momento presente, constituem fonte de mal-estar. Sabemos bem como é fácil deixarmo-nos levar por responsabilidades e pressões (também sexuais), assim como perdermo-nos na tempestade dos nossos próprios pensamentos e sentimentos. Muito frequentemente entramos em “piloto automático”. Entramos em exigências multitarefa. E isso reforça a ausência de mindfulness. Agimos sem pensar. E nem sempre o resultado é o mais eficaz. Há que fazer muito (se possível em simultâneo) e ainda ter disponibilidade para a família, os amigos, as redes sociais e todo um conjunto de atividades consideradas saudáveis que “temos de” não esquecer: alimentarmo-nos de uma certa forma (evitando isto e aquilo), fazer desporto, passear o cão… e ainda… encontrar tempo para aquilo a que chamo de “sexualidade preguiçosa”. Uma espécie de intimidade sexual rapidinha, uma sexualidade que dê pouco trabalho, e pouca atenção. Com truques eficazes anunciados em revistas ou simplesmente automatizados e que depressa nos coloquem no prémio final do orgasmo (de preferência mais do que um). Com tanta pressa e automatismo, é de esperar que haja assim tanta disponibilidade (emocional, mental, física) para desfrutar daquilo que a intimidade sexual pode permitir? Haverá assim tanto tempo para ver – ver mesmo! – a outra pessoa, para sintonizar com o corpo, com o prazer, com o momento único e irrepetível de estar intimamente com alguém?

Na minha prática clínica tenho encontrado melhorias ao nível do desejo sexual feminino e da perturbação da dor (aquilo que antes se designava como vaginismo e dispareunia), mas tenho também integrado estas abordagens no trabalho com homens com disfunção erétil e ejaculação prematura, e estou animada com os resultados

SPSC – O que é essencial para que a sexualidade possa ser vivida aqui e agora?

SV – Creio que são a maioria das atitudes fundamentais sugeridas por Kabat-Zin: disponibilidade, abertura, não julgamento, aceitação, mente de principiante (olhar para a experiência com frescura, como se fosse a primeira vez)… É importante estarmos dispostos a “arriscar” mais sermos quem somos (e não tanto o ter que fazer isto ou aquilo). Aceitar o que vem do encontro (sem ter que ser desta ou daquela forma). Menos expectativas. Maior atenção ao corpo, às sensações, aos sentidos. Explorar e desfrutar mais do que surge e não do que não surge.

SPSC – Uma sexualidade que tem por base os princípios do mindfulness precisa de ambos os elementos do casal sintonizados para esta ideia?

SV Se ambos estiverem alinhados na mesma atitude e na mesma disponibilidade para abraçar o momento tal como ele acontece, é naturalmente mais fácil. Mas não é obrigatório. Nem todas as pessoas se identificam com as práticas meditativas. Muitas vezes a integração das experiências e atitudes subjacentes ao mindfulness é um processo, e acontece frequentemente que uma das pessoas começa, e depois a outra “vai atrás”. Se notamos que a pessoa com quem partilhamos a nossa intimidade está ou vai ficando mais tranquila e disponível para o prazer (sem exigências ou condições), normalmente ajustamo-nos a isso – o inverso também é verdadeiro (quando um dos elementos do casal tende para o conflito e discussão, normalmente há também um ajustamento a isso, em escalada).

SPSC – Que papel (ou papéis) pode ter a respiração na relação sexual?

SV – A respiração é vital e nutritiva. Está sempre presente na nossa vida. Acompanha as nossas emoções. Resulta da sabedoria do nosso corpo e, como tal, pode constituir-se como âncora para a nossa mente dispersa. Num encontro sexual, é frequente e relativamente fácil para muitas pessoas distraírem-se com preocupações acerca do corpo ou outras (expectativas, antecipações, atribuições). Ora, a respiração está sempre presente, podemos sempre convidar-nos a voltar a ela, ao corpo, e assim fica também mais fácil voltar novamente a focar o prazer.

SPSC – Um dos aspectos sobre que o mindfulness assenta é a ideia da aceitação e a de não julgamento. Do ponto de vista da sexualidade, o que é bom aprendermos a aceitar sem julgamentos?

SV – A nossa tendência automática para julgar a experiência, e o querer que as coisas sejam diferentes daquilo que são, impedem-nos de estarmos totalmente presentes em cada momento. Pensar que algo não deve ser assim, que algo não está certo ou que não é suficientemente bom, pode conduzir a sequências de pensamentos envoltos em culpabilidade e ansiedade ou outras emoções negativas. Tais pensamentos conduzem-nos muitas vezes a caminhos mentais que, embora familiares, são “viciados”. Os produtos da nossa mente estão frequentemente relacionados com a análise repetitiva, ruminações, pensamento catastrófico, ou projeções futuras, o que gera angústia e sofrimento.

É fácil perdermos as valiosas e significativas experiências do presente. Nos casos em que queremos estar presentes (como é o do cenário sexual), torna-se muitas vezes difícil, se não impossível, desligarmo-nos do ruído mental. Um resultado possível e frequente é a diminuição do desejo e excitação, tornando a experiência sexual menos gratificante e prazerosa. Ora, pensamentos são apenas pensamentos (a grande maioria deles, repetitivos e inúteis). Produtos da mente. Não são necessariamente representações precisas da realidade. É importante cultivarmos o hábito de observar mais, de ver mais as coisas como elas são – momento a momento – e aceitar que “por agora” possam ser assim. Seria bom estarmos mais no corpo, nas sensações e menos na mente dispersa.

SPSC – Em que problemáticas sexuais a intervenção baseada no mindfulness apresenta evidências de melhores resultados terapêuticos?

SV – De modo geral, os estudos mostram melhorias significativas ao nível da satisfação sexual, resposta sexual (desejo, excitação, orgasmo) e diminuição do sofrimento associado às dificuldades (distress). A inclusão das práticas meditativas na abordagem da sexualidade e das problemáticas sexuais tem revelado grande potencial e resultados promissores em amostras de mulheres com dificuldades ao nível do desejo e excitação, queixas sexuais secundárias a cancro ginecológico, abuso sexual e ao nível da dor sexual. Há ainda estudos que associam as práticas meditativas a benefícios nas dinâmicas de casal, satisfação sexual e consistência do orgasmo. Na minha prática clínica tenho encontrado melhorias ao nível do desejo sexual feminino e da perturbação da dor (aquilo que antes se designava como vaginismo e dispareunia), mas tenho também integrado estas abordagens no trabalho com homens com disfunção erétil e ejaculação prematura, e estou animada com os resultados. De modo geral, o que mais noto é a melhoria da consciência e satisfação sexual e um aumento da aceitação pessoal.

No que respeita à investigação da eficácia clínica, há ainda um importante caminho a percorrer, sobretudo a dois níveis. Ao nível da metodologia, no sentido de haver estudos mais controlados e que permitam melhor explicar os processos e mecanismos da eficácia que vem sendo encontrada. E ao nível da aplicação a outros grupos (não apenas mulheres), nomeadamente homens com diferentes problemáticas sexuais, pessoas a caminhar para a grande idade, pessoas com deficiência, ou pessoas com orientação sexual e identidade de género diversa. Este é mesmo um caminho a iniciar-se agora.

A comunidade clínica e científica tem vindo a incorporar com entusiasmo as intervenções baseadas no mindfulness sobretudo porque os resultados são encorajadores. Creio que está ainda longe de ser amplamente praticada porque a sua incorporação implica que os terapeutas sexuais conheçam bem as abordagens […], as atitudes […] e, sobretudo, que sejam praticantes regulares (provavelmente o mais importante). […] não basta ler uns livros e/ou selecionar duas ou três estratégias como quem aplica soluções mágicas.

SPSC – A terapia sexual baseada no mindfulness é hoje amplamente praticada no mundo?


SV – A nível mundial, foi sobretudo a partir do trabalho pioneiro de Lory Brotto (investigadora canadiana), em 2007, que o recurso a abordagens baseadas no mindfulness começou a ter visibilidade e a ser investigado de modo mais sistemático. Antes desta, uma outra investigadora (Mayland) tinha feito em 2005 um trabalho de doutoramento em que descrevia qualitativamente as vidas sexuais de mulheres praticantes de mindfulness (média de 20 anos de prática) e com idade média de 50 anos, em relações estáveis e duradouras. Esta investigadora verificou que todas as mulheres associavam à prática da meditação uma maior consciência, quer das emoções, quer das sensações corporais no contexto sexual, bem como da maior capacidade para lidar com a ansiedade e expetativas face ao próprio comportamento e desempenho sexual.
Recuando até à década de 70, podemos encontrar algum paralelismo entre as atuais intervenções baseadas no mindfulness e o foco sensorial proposto por Masters e Johnson, uma das estratégias clínicas mais investigadas e que melhores resultados tem demonstrado na prática clínica.
A comunidade clínica e científica tem vindo a incorporar com entusiasmo as intervenções baseadas no mindfulness, sobretudo porque os resultados são encorajadores. Creio que está ainda longe de ser amplamente praticada, porque a sua incorporação implica que os terapeutas sexuais conheçam bem as abordagens baseadas no mindfulness, as atitudes fundamentais subjacentes às práticas e, sobretudo, que sejam praticantes regulares (provavelmente o mais importante). Diria que não basta ler uns livros e/ou selecionar duas ou três estratégias, como quem aplica soluções mágicas. O mindfulness, assim entendido, estaria condenado a ser apenas mais uma técnica e, como tal, com benefícios muito limitados. Não há muitos investigadores e há ainda menos clínicos a nível internacional, com preparação adequada para usar as abordagens baseadas no mindfulness na terapia sexual, mas o interesse tem vindo a crescer. Creio que representa um dos mais recentes avanços na terapia sexual e um avanço bastante promissor.

SPSC – E em Portugal?

SV – Em Portugal, o caminho é ainda mais lento, porque só há pouco tempo o mindfulness começa a ser conhecido e aceite. Há 10 anos, quando comecei a fazer workshops de introdução ao mindfulness, havia colegas que olhavam com alguma estranheza, como se se tratasse de uma prática esotérica… Encontrava na altura (e por vezes ainda hoje) algumas ideias equívocas, associando a meditação a uma “técnica de relaxamento”, a uma forma de esvaziar a mente ou a um tipo de religião. Não se trata disso, naturalmente. Trata-se sobretudo de cultivar uma atitude diferente em relação à nossa experiência, ao nosso sofrimento e às suas causas. Enquanto prática, trata-se sobretudo de observar a experiência, notar sensações corporais, pensamentos e/ou emoções presentes (aceitação, não julgamento). Não chamar nem suprimir o que vem. Apenas tomar consciência. Mesmo que seja desagradável ou indesejado. Trata-se de treinar a mente nesta prática de observação particular do presente, de modo a que o músculo da mente fique menos disperso em preocupações e ruminações, e a vaguear entre o passado e o futuro. Em Portugal não há ainda muitos colegas com formação sólida em ambas as áreas (sexualidade e atenção plena), mas existe muita curiosidade e um interesse crescente.

SPSC – Que impressão tem da forma como é atualmente reconhecida por psiquiatras e psicólogos, no nosso país e no mundo?

SV – Desde que começou a ser introduzida no Ocidente, tem vindo a ser crescentemente reconhecida. É uma prática com tradição milenar no oriente, inserida na filosofia budista, tendo sido integrada em programas de tratamento dirigidos a pessoas com dor crónica e outras condições médicas, por Jon Kabat-Zin (1990). Em Portugal, vejo de ano para ano (sobretudo desde 2014), cada vez mais livros dedicados ao tema nas prateleiras das livrarias. E cada vez mais psicólogos e psiquiatras interessados em conhecer e aprofundar esta abordagem. Vários colegas fazem-me encaminhamentos para uso combinado com medicação, ou porque nalguns casos a psicoterapia mais clássica não resulta tão bem, ou ainda como forma de assegurar manutenção dos ganhos terapêuticos a longo prazo. Não só diria que há aceitação desta abordagem, como até que parece ser moda… com todas as vantagens e consequências que isso tem. Entre as vantagens encontro o facto de haver uma sensibilização crescente para a importância de desacelerar exigências e de viver mais, de modo mais consciente e com maior qualidade de vida. Quanto aos perigos, alerto para o “MacMindfulness”: a tentação de encontrar uma solução mágica e rápida, que nos “resolva a vida”, enfim, mais uma receita, a juntar ao caderno de dicas para ser feliz.
Gostava mais que pudesse ser uma prática a integrar, se fizer sentido, e um convite a ver a nossa existência como uma casa de hóspedes:

“This being human is a guest house.

Every morning a new arrival.

A joy, a depression, a meanness,

some momentary awareness comes

as an unexpected visitor.

Welcome and entertain them all!”

(excerto do poema Guest House, de Rumi)