A saúde sexual global


A saúde sexual global

À conversa com…
Pedro Nobre, Presidente da Associação Mundial para a Saúde Sexual (WAS).

 

Percursos…
Doutorado em Psicologia Clínica, Professor e Diretor do Laboratório de Investigação em Sexualidade Humana (SexLab), na Universidade do Porto. Criou o Programa Doutoral em Sexualidade Humana, numa parceria entre a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, a A Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (que iniciará em 2018-2019). Ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica (2008-2011) e membro do Comité Científico da European Federation of Sexology.

Data
4 de Setembro de 2017, Dia Mundial da Saúde Sexual (iniciativa da WAS)

 

Entrevista

Isabel Freire

Pedro Nobre, presidente da WAS desde Maio de 2017, defende que é preciso dar mais atenção às questões da saúde e direitos sexuais em regiões como África, Médio-Oriente e Ásia-Oceânia. Noutras partes do mundo, em países ditos “desenvolvidos”, há ameaças de retrocesso a preocupar esta organização global. Os EUA são um dos exemplos em que foi aprovada legislação que “coloca em causa direitos previamente adquiridos, nomeadamente no que se refere aos direitos sexuais e reprodutivos, ou aos direitos de pessoas transgénero”. Para o presidente da mais antiga organização de defesa da saúde e direitos sexuais (criada em 1978), o recrudescimento de “ideias ultraconservadoras sobre a sexualidade” pode constituir “uma ameaça adicional à promoção da saúde e direitos sexuais de todos”.

Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica – Que desafios em matéria de direitos e de saúde sexual, destacaria como prioritários, nos nossos dias, ao nível mundial?

Pedro Nobre – A saúde sexual é uma dimensão fundamental da saúde e bem-estar globais. É uma área central na vida das pessoas. A saúde sexual está intimamente associada aos direitos sexuais. Todos têm direito a ter uma vida sexual plena e satisfatória, livre de coerção, discriminação e violência.

A Associação Mundial de Saúde Sexual na sua declaração sobre Direitos Sexuais (WAS, 2014) enfatiza a ideia de que os direitos sexuais são essenciais para a manifestação plena da saúde sexual e são baseados nos direitos humanos universais. Esta declaração elenca um conjunto fundamental de princípios, entre os quais destacaria:

  • A sexualidade é um aspecto central do ser humano e abrange sexo, identidade e papéis de género, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução.
  • A sexualidade é uma fonte de prazer e bem-estar e contribui para a satisfação e realização das pessoas.
  • A saúde sexual é um estado de bem-estar físico, emocional, mental e social e não meramente a ausência de doença, disfunção ou enfermidade.
  • Para que a saúde sexual seja atingida e mantida, os direitos sexuais de todos devem ser respeitados e protegidos.
  • A igualdade e não discriminação são fundamentais para a proteção e promoção de todos os direitos humanos incluindo os direitos sexuais (a orientação sexual, identidade de género, expressões de género e características físicas de cada indivíduo requerem a proteção dos direitos humanos).
  • Todos os tipos de violência, perseguição, discriminação, exclusão e estigma, com base na sexualidade são violações dos direitos humanos.
  • Os direitos sexuais protegem os direitos de todas as pessoas na plena realização e expressão da sua sexualidade, desde que respeitados os direitos de terceiros.

Infelizmente, e apesar do avanço positivo em diversos aspectos relacionados com a saúde e os direitos sexuais nos últimos anos, continuam a existir desafios significativos – e mesmo ameaças de retrocesso – à escala global. São conhecidas as graves violações de alguns dos direitos sexuais mais básicos em vários países, colocando em causa a igualdade de género na expressão plena da sexualidade, a livre manifestação da orientação sexual e identidade de género, ou mesmo a integridade física e genital das pessoas através do exercício de violência e tortura sobre seres humanos com base no seu género, identidade ou orientação sexual. Muitas destas situações mais gritantes estão infelizmente fortemente enraizadas em aspectos histórico-culturais, e religiosos, sendo extremamente difíceis de combater. Exigem estratégias globais (ao nível dos Direitos Humanos) e de longo prazo.

Existem também outros desafios que dizem respeito a ameaças de retrocesso em países ditos “desenvolvidos”. A este respeito destacam-se os Estados Unidos que têm aprovado legislação que coloca em causa direitos previamente adquiridos, nomeadamente no que se refere aos direitos sexuais e reprodutivos, ou aos direitos de pessoas transgénero, entre outros. Tendo em conta o papel de referência que os Estados Unidos têm a nível global, e a tendência observada em diferentes países “democráticos” para o recrudescimento de um certo populismo (muito associado por vezes a ideias ultraconservadores sobre a sexualidade) e o uso da pós-verdade (banalizando o conhecimento científico), estes exemplos constituem uma ameaça adicional à promoção da saúde e direitos sexuais de todos.

Por último, e mesmo em países “amigos da saúde e dos direitos sexuais” a um nível mais global, creio que um dos desafios mais importantes tem a ver com a promoção da ideia de que a saúde sexual é uma dimensão fundamental da saúde, e não apenas a ausência de doença (como por exemplo o HIV), e que a sexualidade constitui uma fonte de prazer e bem-estar a que todos têm direito (desde que não ponham em causa direitos de terceiros) e que contribui para a satisfação e realização das pessoas.

SPSC – E em Portugal?

PN – Em termos legislativos, o nível de proteção dos direitos sexuais é bastante assinalável e isso tem sido evidente quando se comparam as legislações de diversos países ditos “desenvolvidos”. Mas existe ainda muito a fazer no que se refere à transposição destes princípios legais para a vida das pessoas e para a plena vivência da sexualidade sem discriminação. A recente entrevista da Secretária de Estado Graça Fonseca, assumindo a sua orientação sexual, é um bom exemplo do que pode ser feito para “normalizar” o direito à diferença, neste caso em termos de orientação sexual. A Educação Sexual formal ou informal e o debate público e mediático de temas relacionados com a sexualidade com base no conhecimento científico (e não em mitos) é outro importante meio que pode e deve ser usado para promover a saúde sexual e os direitos sexuais.

SPSC – Que prioridades estabeleceu para este mandato enquanto presidente da WAS?

PN – Foi uma grande honra ter sido eleito presidente da WAS no último congresso mundial realizado em Praga no final de Maio. A WAS é a maior a e mais antiga Associação Mundial na área da sexualidade (criada em 1978). Representa 110 organizações nacionais e milhares de profissionais e investigadores dos cinco continentes. É uma missão de grande responsabilidade.

Vejo a WAS como uma instituição guarda-chuva de todas as organizações à escala global, e por isso deve assumir uma posição de liderança mundial. É uma organização verdadeiramente multidisciplinar. Inclui especialistas com as mais diversas formações académicas: médicos e outros profissionais de saúde, psicólogos, cientistas sociais, educadores, advogados de direitos humanos, etc..

Durante o meu mandato a WAS procurará mobilizar todas as outras sociedades regionais (África, América do Norte, América Latina, Ásia/Oceânia e Europa) e nacionais a fim de desenvolver estratégias comuns de promoção da saúde e direitos sexuais. É particularmente importante o reforço das parcerias estratégicas Organização das Nações Unidas e a Organização Mundial de Saúde, com as quais a WAS tem relações formais. Além disso, procurarei que a WAS aumente a sua representação global principalmente nas áreas e regiões menos representadas – África, Médio-Oriente e Ásia-Oceânia – onde as questões da Saúde e Direitos Sexuais assumem um papel ainda mais premente.

Desenvolveremos igualmente uma estratégia para aumentar a visibilidade e reconhecimento global dos temas relacionados com a saúde e os direitos sexuais. Iniciativas como o dia Mundial da Saúde Sexual e uma estratégia de comunicação e visibilidade mediática forte desempenham um papel central na divulgação da missão e objetivo da WAS.

Saliento algumas atividades e tomadas de posição da WAS sobre um conjunto de importantes temas de saúde e direitos sexuais, a maioria já no meu mandato: a tomada de posição sobre o Abuso de Homens Gays na Chechénia; a posição conjunta com a WPATH, sobre a nova Classificação Internacional de Doenças (ICD-11, Organização Mundial de Saúde); a tomada de posição sobre a rejeição dos EUA da resolução da ONU relativa à saúde sexual e reprodutiva e à violência contra as mulheres; celebração do Dia Mundial da Sáude Sexual.