Shibari, amarrações consensuais
À conversa com…
Ann Antidote, shibarista, artista pluridisciplinar, ativa nos domínios da bondage, vídeo, instalação e performance.
Como se define…
A minha obra aborda temas políticos e torna a/s diversidades visíveis e celebradas. Promovo a ideia de que várias consensualidades (poliamor, queer, kinky, bondage, DIY etc.) são opções válidas e dignas de respeito. Este aspeto político (e pessoal) é uma constante da minha produção artística, em Berlim, onde vivo correntemente. Faço workshops para todos os níveis e bondage para filmes e fotografia. As minhas performances usam a bondage como uma ferramenta para contar uma história ou endereçar um tema, e distanciam-se de representações mainstream de bondage (geralmente com papéis de género/idades/tipos de corpo petrificados).
Mais informações e contacto:
http://strangesavagelives
https://vimeo.com/antidoteann
studiesforthunder@gmail.com
https://vimeo.com/antidoteann
Data
9 de Outubro de 2017
Define-se como “shibarista”. Usa cordas e/ou as técnicas tradicionais do Shibari/Kinbaku na vida pessoal, como performer, como professora e em instalações de arte. A partir de Berlim, onde vive, a portuguesa Ann Antidote fala-nos da sua admiração e dedicação pela corda. Defende a importância de introduzir elementos queer-feministas e igualitários nas suas práticas, distanciando-se de “elementos ageistas, classistas, ableistas ou sexistas” que considera dominantes em representações mainstream de Shibari. Consenso, responsabilidade, técnica, diversidade e igualdade são conceitos que atravesssam a sua visão das “amarrações bonitas”.
Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica – Define-se como shibarista. Em que contextos e com que motivações faz Shibari?
Ann Antidote – Shibarista é uma palavra inventada por mim para introduzir algum humor, e recolocar a ênfase no “fazer” e menos no “ser”. Shibarista é uma pessoa que pratica Shibari. E que aprecia, como um sibarita. Shibari é bondage consensual japonesa, e significa literalmente “amarrações bonitas”. Insisto na palavra “consensual”.
Uso cordas e/ou as técnicas tradicionais do Shibari/Kinbaku em vários contextos: como performer, como professora de Shibari (desde 2011), na minha vida pessoal ou a fazer instalações de arte. Indiretamente, o Shibari cruza o meu caminho nos filmes (meus ou de outras pessoas), quando organizo ciclos de cinema ou publicações. Estou neste momento a preparar uma publicação sobre visões e perspetivas não normativas do Shibari/Kinbaku. Insisto em introduzir elementos queer-feministas e igualitários no Shibari, e de me distanciar claramente de muitos elementos ageistas, classistas, ableistas ou sexistas que são dominantes em representações mainstream do Shibari. A minha utopia é igualitária e democrática, entre outras coisas.
SPSC – Para si a corda é…
AA – A corda é um objeto muito simples e precisamente por isso muito belo e útil. É usada na vida quotidiana, em várias profissões. Pode ser usada para subir a uma montanha, para descer um caixão à cova, para ajudar num parto difícil, para içar uma vela, ou para amarrar outra/s pessoa/s. Aprecio a sua simplicidade sem pretensões, a sua presença democrática em todo o lado e todo o potencial que oferece. Penso que a corda ainda não começou sequer a ser explorada em todo o seu potencial. Não só no Shibari. Para mim tornou-se um modo de vida, um pouco por acaso. Dou aulas regulares mensais de Shibari em Berlim. Faço performances. E mesmo quando faço arte que não tenha nada a ver com Shibari diretamente, acaba sempre por aparecer corda (ou pelo a minha forma de pensar com corda).
SPSC – Que sensações experiencia por atar/desatar alguém?
AA – Depende do contexto e da pessoa. Nem todas as amarrações que faço são sessões pessoais em busca de ligação e/ou sensações. Muitas vezes estou a ensinar ou a aprender ou a fazer uma performance – que para mim são coisas muito recompensadoras e imprescindíveis.
As sensações dependem muito da pessoa(s) à minha frente e da pessoa que me sinto nesse momento. Posso enumerar sensações minhas e/ou descritas por outros…
Há um aspeto acerca do limitar os movimentos de uma pessoa, com tudo o que isso pode significar para diferentes pessoas (controlo? embalar?) ou todas as possibilidades que isso abre (exemplo do bondage como modo de chegar ou potenciar ações ou sensações, por exemplo, expor alguém a caricias ou para sexo, etc.). Há um aspecto de tomar conta de alguém, de levar alguém numa viagem. Há um aspeto sensual, de tocar (e eventualmente tocar de uma maneira amplificada, quase prostética) com corda. Há um aspeto estético, a apreciação quase independente de uma situação simplesmente bonita. Há um aspecto intelectual, lúdico e geeky que tem a ver com a técnica pela técnica. Há quem descreva o rope-high, ou dilatação ou contração do tempo. No geral há também a possibilidade – isto é descrito por muita gente – de regular mais claramente o nível de proximidade e intimidade. Certamente me esqueci de enumerar muita coisa.
SPSC – E que emoções?
AA – Nem sempre as sessões têm de ser super íntimas. Para mim, todas as emoções da “vida real” são possíveis e são simplesmente amplificadas pela corda. Pode-se fazer muita coisa com corda, mas sem isso, a corda não faz milagres.
SPSC – É forte, para si, a carga erótica inscrita no Shibari? Como se exprime?
AA – Para muitas pessoas o Shibari é uma prática usada para erotismo (como prática para chegar a uma situação erótica ou para despertar esse interesse). Para outras, ou para as mesmas pessoas em diferentes situações, o Shibari pode ser uma prática auto-contida, que se basta a si própria, sem necessidade de outros estímulos. É talvez interessante referir que as cordas podem ser usadas numa sessão para tentar aumentar, manter ou reduzir correntes eróticas, conforme o que se deseja. Nem sempre o que é bom para uma pessoa é bom para outra, nem sempre o que é bom para uma pessoa num dia é bom no outro.
SPSC – No Shibari o seu papel é sempre de quem amarra/solta ou também o de quem é preso/libertado?
AA – Não gosto de me meter em gavetinhas, e dizer que faço isto e faço aquilo e que gosto sempre. Mas para responder inequivocamente, o meu primeiro contacto com o Shibari como coisa que se pode aprender e desenvolver com outros foi como modelo no Studio 6 em Berlim (já não existe), se não me engano em 2008.
SPSC – Imagino que seja preciso muita técnica, concentração, sangue frio e confiança, para imobilizar, e pendurar uma pessoa de cabeça para baixo. Que saberes e cuidados são fundamentais? Ou se preferir… que riscos estão associados?
AA – Em toda a bondage (não só Shibari, não só suspensões) há riscos físicos diretos, como quedas, danos nas articulações e ligamentos em caso de movimentações não adequadas (não só para o modelo). Em caso de suspensões (nem todo o Shibari orbita em torno de suspensões, mas é uma prática muito corrente) há o risco de danos de nervos em sessões prolongadas e/ou com cordas mal colocadas. Há riscos indiretos se outros acontecimentos (ex. ataque de pânico, epilepsia, queda de tensão) ocorrerem em cordas. Por isso costumo dizer nos meus workshops que “nem toda a gente aqui tem 18 anos e é campeão olímpico de ginástica”. Não somos todos super flexíveis, com corpos normativos e/ou isentos de doença (não só física). Distancio-me de uma abordagem muito ableista e ageista que se vê no Shibari mais mainstream. Muitos de nós temos condicionantes físicos e/ou mentais e isso não tem necessariamente impedimento para praticar Shibari, simplesmente é preciso adaptar o que se faz à pessoa que somos e à pessoa à nossa frente. Por isso, e resumindo, digo que é preciso saber o que se faz, mas que o saber mais importante é o saber quando parar. Se não consigo desfazer o que fiz em menos de um/dois minutos, estou a correr riscos e a fazer o meu modelo correr riscos. Dito isto, uma tesoura de emergência é boa ideia, e um bom conhecimento das técnicas utilizadas é fundamental. Mas é preciso saber avaliar a situação e reagir com rapidez e segurança. Fazer Shibari implica estar preparada para tomar conta e assumir responsabilidade pela segurança e bem-estar de outra pessoa durante uma sessão e algum tempo depois.
SPSC – Como vê (entende) a entrega da pessoa que se dispõe aos nós das suas cordas?
AA – Há que não esquecer a palavra consentimento subjacente ao Shibari. A entrega, ou ausência dela, é consensual. Dentro disto, tudo é possível.
SPSC – Quanto tempo pode durar uma sessão/performance de Shibari?
AA – Esta pergunta é-me feita muitas vezes. Continuo sem saber qual seria o recorde Guiness de duração. Na verdade interessa-me pouco, mas vou tentar responder. Há limitantes físicos, articulações que doem, membros que arrefecem, caímbras (nem sei o quê mais) que decidem por nós. E há a saciedade, quando ambxs xs participantes estão satisfeitxs, ou simplesmente é preciso parar para se poder dizer que se parou num bom momento. Tenho visto sessões muito longas, falamos de horas. O facto de ser possível não quer dizer que seja para toda a gente. E há sessões de minutos que são tão gratificantes como outras muito longas. Felizmente não há uma receita, por que isso o Shibari nos fala da diversidade. Temos de procurar e desenvolver o que funciona para nós e para os nossos.
SPSC – Quando sabe que chegou o momento de desfazer os nós?
AA – Por vezes há condicionantes externos, de segurança ou de conforto (o modelo arrefeceu muito ou tem dores não planeadas). Sem estes condicionantes externos, geralmente sabe-se (e se não se sabe, diz-se ou pergunta-se) quando ambxs participantes estão satisfeitos com a experiência. Pode sempre haver uma próxima vez.
SPSC – Mitsu Mark, uma dominadora profissional nova iorquina, diz que é possível tirar a rapariga da masmorra, mas não a masmorra da rapariga. Quer comentar?
AA – Uma pergunta acerca de BDSM e de como o viver. Há pessoas que trazem o modo de vida consigo o tempo todo, independentemente da regularidade e intensidade das sessões e de como o vivem. Em concreto, constroem o seu tempo e a sua vida para fazer espaço para o BDSM (tal como todos fazemos com as coisas que nos são importantes). Outros – diria eu – entram e saem conforme lhes é dado a apetecer, muitas vezes durante anos. Esticando a metáfora, há pessoas que trazem a masmorra consigo o tempo todo ou pelo menos muitas vezes, e há outros que trazem a masmorra (juntamente com outros quartos, como a cozinha, o jardim ou mesmo a garagem de bricolagem) consigo apenas alguns dias. Há uma diversidade enorme no modo de viver a coisa. Há muita gente que fica com a sua masmorra, porque fizeram dela a sua única casa. E com isto, as masmorras são um estilo de vida menos corrente, o que torna raro e precioso encontrar outras pessoas. Ou simplesmente porque o estilo de vida pode ter consequências discriminantes. Há toda uma comunidade e suas interpretações de comunidade à volta do estilo de vida. Há pessoas de todas as origens e escolhas familiares e orientações.