Imigração e acesso aos cuidados de saúde


Imigração e acesso aos cuidados de saúde

 

Uma reflexão de…
Raquel Rodrigues, cofundadora e presidente da direção da FEMAFRO – Associação de Mulheres Negras Africanas e Afrodescendentes em Portugal.

 

Percursos…
É Licenciada em Relações Internacionais com especialização em Cultura e Sociedade da América Latina pelo ISCSP, actual mestranda em Estudos de Desenvolvimento pelo ISCTE-IUL. Feminista e ativista anti-racista. Trabalha há uma década na área da imigração.

 

Data
4 de Dezembro de 2017

Não é de todo inusitado conhecer uma mulher negra, imigrante, recém-chegada a Portugal e, por esse motivo, sem residência legal no país, mãe de dois filhos – um deles muito doente – sem assistência médica. Mas é surpreendente ouvi-la confessar que, ao recorrer a uma instituição particular de solidariedade social, a fim de pedir ajuda medicamentosa para o seu filho, esta lhe tenha sido facultada fora de prazo.

Medicamentos fora de prazo. Como assim?

Segundo os funcionários da mesma instituição, não havia motivo para reclamar. Devia aceitar pois era uma ajuda e, como tal, sentir-se agradecida uma vez que não possuía condições económicas para se dirigir a uma farmácia pública. Além disso, medicamentos fora do prazo, nunca fizeram mal a ninguém.

Quando abandonou a instituição, por medo e desconhecimento na matéria, a mulher atirou os medicamentos para o primeiro caixote de lixo que viu.

Parece surreal e completamente à margem do que defende a Constituição Portuguesa, mas situações destas multiplicam-se pelo país, afetando milhares de mulheres imigrantes indocumentadas e, consequentemente, os seus filhos.

A Organização Mundial de Saúde (OMS), definiu o conceito de “saúde” como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade. Um conjunto complexo de dimensões (física-somática, afetiva e emocional, cognitiva, comportamental, sociocultural e ecológica) que influenciam o estado de saúde dos indivíduos. Por esse motivo, não é prudente ignorar as questões de género associadas a outros fatores, como a imigração, nas políticas e atitudes dos países em relação à igualdade de oportunidades, à situação de legalidade e/ou ilegalidade, à possibilidade de retorno e reintegração, assim como o impacto que todos estes fatores podem provocar na saúde das populações migrantes.

Em 2001, o Estado português deu um passo importante na promoção do acesso universal aos serviços de saúde das populações imigrantes, com a publicação do Despacho n.o 25.360/2001 (Diário da República, II Série, nº 286, de 12 de Dezembro de 2001). De acordo com este documento, “o acesso ao Sistema Nacional de Saúde (SNS) passa a ser facultado em igual tratamento, nomeadamente no que diz respeito aos cuidados de saúde e assistência medicamentosa de cidadãs/cidadãos estrangeiras/os a residir legalmente em Portugal, portadores do cartão de utente do serviço”.

Todavia, volvidos dezasseis anos, constata-se a persistência da falta de dados sobre a acessibilidade e utilização dos serviços de saúde por parte das/os imigrantes, especialmente as/os recém-chegados e, em situação irregular, que por serem subgrupos da população imigrante, normalmente encontram maiores dificuldades no acesso à informação sobre os cuidados de saúde em Portugal.

Diversos fatores podem contribuir para isso, como por exemplo, o contexto socioeconómico traduzido numa situação laboral instável e precária, a dificuldade em obter proteção social e de suportar os custos associados aos cuidados de saúde. Para além disso, as deficientes condições de habitação, os rendimentos reduzidos, o stress psicológico associado à exclusão social e à ausência de redes de apoio, as diferenças culturais e linguísticas, o desconhecimento da legislação portuguesa, também surgem como fatores que podem dificultar o acesso à saúde por parte destas populações.

A principal diferença na utilização dos cuidados de saúde associada ao género, tem sido descrita no sentido de que os homens efetivamente apresentam uma menor utilização dos serviços relativamente às mulheres. Várias hipóteses servem para explicar este fenómeno, sendo uma delas a de que as mulheres, na sua maioria, são jovens e mais propensas a usar serviços relacionados com a saúde sexual e reprodutiva, como o pré-natal e a saúde maternoinfantil.

[…] em Portugal, poucas instituições recolhem dados sobre imigração e saúde, especialmente sobre mulheres imigrantes. Por isso, é fundamental a promoção de mais estudos qualitativos e quantitativos, identificando padrões de procura e de uso dos serviços de saúde, assim como a avaliação da qualidade dos mesmos

Chegamos ao ponto focal. A saúde sexual e reprodutiva das mulheres imigrantes em Portugal, especificamente das mulheres africanas.

Muitos dos problemas da sexualidade e da reprodução, surgem em contextos socialmente desfavorecidos. Estudos europeus apontam no sentido de que as mulheres imigrantes possuem piores indicadores de saúde comparativamente às mulheres autóctones, em especial no que concerne à mortalidade materna, perinatal e infantil, prematuridade, baixo peso à nascença, maior exposição a doenças sexualmente transmissíveis e violência baseada no género.

A falta de conhecimento acerca das doenças sexualmente transmissíveis, coloca as mulheres imigrantes africanas numa situação de maior vulnerabilidade. A responsabilidade pela prevenção ainda se encontra bastante focada no comportamento sexual do parceiro, contribuindo assim, para a dificuldade de adoção de comportamentos de prevenção em contexto de uma relação conjugal.

A tradição e a existência de várias crenças relativas ao uso de métodos contracetivos, em especial do preservativo e da pílula, associada à sua pouca eficácia e à prejudicialidade à saúde, determinam a sua não utilização ou utilização irregular. Grande parte das mulheres africanas opta por métodos alternativos, como por exemplo, a laqueação de trompas, quando já teve um número considerável de filhos.

Ora, isto levanta uma outra questão. A maternidade e as dificuldades inerentes à responsabilidade parental, provocadas por uma gravidez não desejada. O medo de despedimento por se encontrarem em situação laboral precária, as dificuldades encontradas no país de acolhimento e o assumir sozinhas o cuidado dos filhos, leva a que seja repensada a decisão de engravidar ou tomada uma decisão mais drástica, como a decisão de abortar.

No que se refere à utilização dos serviços de planeamento familiar, é percetível a pouca frequência com que as mulheres imigrantes africanas recorrem a estes serviços. O planeamento familiar surge principalmente associado à maternidade e contraceção, onde as mulheres africanas apresentam muitas dúvidas e/ou desconhecimento. A falta de informação sobre saúde sexual e reprodutiva, voltada especificamente para as populações imigrantes residentes em Portugal, tende a afastar as mulheres imigrantes do Sistema Nacional de Saúde. Por outro lado, quando procuram os serviços, as queixas vão no sentido de não serem dadas respostas às necessidades sentidas.

Num estudo realizado por Dias et al. (2010), no qual foi avaliado o acesso e utilização dos serviços de saúde por mulheres imigrantes africanas e brasileiras em Portugal, a maioria das inquiridas apontou como barreiras de acesso à utilização de serviços, as questões legais, as restrições económicas e as atitudes dos profissionais de saúde, especialmente no que concerne à dificuldade de comunicação e a existência de comportamentos discriminatórios e atitudes hostis face às/aos imigrantes.

Não obstante, em 2015, um estudo avaliativo da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) sobre o acesso ao sistema de saúde dos imigrantes em Portugal, registou outras situações reveladoras

de limitação ao acesso das mulheres imigrantes ao SNS português, especialmente quando estas não possuem autorização de residência, ainda que necessitem de assistência médica e medicamentosa.

Vemos, por isso, que o estatuto legal ainda continua a ser um fator determinante no acesso aos serviços de saúde. Segundo inúmeras mulheres imigrantes, são frequentes as situações de impedimento de acesso aos serviços quando não possuem a documentação requerida.

A título exemplificativo, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARS), evidenciou a dificuldade da inscrição e da prescrição eletrónica no SNS de imigrantes em situação irregular e requerentes de asilo, uma vez que os mesmos não têm número de utente. Com efeito, a possibilidade de, através das diferentes plataformas informáticas, registar alguns direitos no acesso à saúde previstos na legislação em vigor, está dependente da atribuição ou não de um número de utente.

Tanto implica, desde logo, que os menores e as mulheres grávidas imigrantes não possam, por exemplo, beneficiar da emissão de cheques dentista e da inscrição no programa de saúde oral, na plataforma CISO a crianças e grávidas, tal como da isenção da taxa moderadora do ato de enfermagem da vacinação no caso das vacinas que constam do Plano Nacional de Vacinação. Além disso, verifica-se a recusa dos convencionados em aceitar a referência ao Despacho nº 25 360/2001 no campo “entidade financeira responsável” nas credenciais para meios complementares de diagnóstico prescritos, que obriga ao pagamento do valor total dos exames (o que não é suportável do ponto de vista económico para a maioria destas pessoas) e a impossibilidade de isentar do pagamento de taxas moderadoras pessoas em situação de exclusão social e carência económica, dado que a mesma é hoje solicitada no portal da saúde, obrigando ao preenchimento do campo referente ao número do SNS.

No que se refere à utilização dos serviços de planeamento familiar, é percetível a pouca frequência com que as mulheres imigrantes africanas recorrem a estes serviços. […] A falta de informação sobre saúde sexual e reprodutiva, voltada especificamente para as populações imigrantes residentes em Portugal, tende a afastar as mulheres imigrantes do Sistema Nacional de Saúde. Por outro lado, quando procuram os serviços, as queixas vão no sentido de não serem dadas respostas às necessidades sentidas.

Segundo a Declaração de Amesterdão, de 2004, onde foram feitas recomendações para uma política de saúde de acolhimento às populações migrantes, constatou-se que a nível europeu, as/os imigrantes não recebiam os mesmos cuidados de saúde da média da população, tanto em termos de diagnóstico, tratamento e serviços preventivos. Chegou-se igualmente à conclusão que os serviços de saúde não eram suficientemente recetivos às necessidades específicas das minorias pela inexistência de uma colaboração interdisciplinar entre ciências médicas e sociais. Além disso, o uso da categoria “imigrante”, proposta em diversos programas terapêuticos, tendia a homogeneizar as experiências e vivências totalmente diferentes (por exemplo, entre migrantes laborais, ilegais, refugiados, menores não acompanhados, imigrantes de primeira geração ou seus descendentes, e ainda diferenças de género e de idade, etc.).

Constata-se, assim, a falta de uma reflexão aprofundada sobre a especificidade e necessidades de certos grupos sociais, particularmente na área da saúde mental e na área da saúde em geral, onde continuam a ser reproduzidas atitudes universalistas, organicistas e biomédicas.

Lamentavelmente, em Portugal, poucas instituições recolhem dados sobre imigração e saúde, especialmente sobre mulheres imigrantes. Por isso, é fundamental a promoção de mais estudos qualitativos e quantitativos, identificando padrões de procura e de uso dos serviços de saúde, assim como a avaliação da qualidade dos mesmos.

As questões da saúde sexual e reprodutiva das mulheres imigrantes, em especial das mulheres africanas, não podem dissociar-se do respetivo nível socioeconómico e do seu estatuto legal, tal como não devem, de maneira nenhuma, dissociar-se do género e da etnia da pessoa em causa.

Somente desta forma, num contexto do desenvolvimento de políticas de inclusão social, será possível criar novas campanhas de saúde direcionadas às populações imigrantes, melhorar o atual acesso ao SNS e capacitar os profissionais de saúde para lidar com as diferenças culturais e étnicas, que muitas vezes impedem o planeamento de intervenções eficientes – algo fundamental para a melhoria das condições de saúde, em especial, das mulheres imigrantes africanas e das suas famílias.

Notas bibliográficas:


DIAS, S., Ana Gama e Cristianne Rocha, 2010, “Immigrant women’s perceptions and experiences of health care services: Insights from a focus group study”, J Public Health, 18, pp. 489-496.

Entidade Reguladora Da Saúde – Acesso a Cuidados de Saúde por Imigrantes, Junho 2015

TOPA, Jona; Nogueira, Conceição; Neves, Sofia, Repositório Científico do ISMAI UNIDADES ORGÂNICAS DE INVESTIGAÇÃO UNIDEP – Unidade de Investigação em Desenvolvimento Humano e Psicologia Artigos em revistas indexadas Inclusão/exclusão das mulheres imigrantes na saúde em Portugal: reflexão à luz do feminismo crítico, 2010.

RAMOS, N. Psicologia clínica e da saúde. Lisboa: Universidade Aberta, “Migração, aculturação, stresse e saúde. Perspectivas de investigação e de intervenção”, 2004.

WHO. The Amsterdam Declaration: Towards Migrant Friendly Hospitals in An Ethnoculturally Diverse Europe. MFH, Task Force, 2004.