Um dicionário sobre “um dos últimos tabus do mundo ocidental”, o adultério


Um dicionário sobre “um dos últimos tabus do mundo ocidental”, o adultério

 

À conversa com…
Filipa Melo, escritora, crítica literária e jornalista. Autora do Blog Coração Duplo.

 

Percursos…
É autora do romance Este É o Meu Corpo (2001), traduzido em sete línguas, do livro de reportagens Os Últimos Marinheiros (2015) e do Dicionário Sentimental do Adultério (2017). Trabalha há mais de ​vinte anos na divulgação da literatura nacional e clássica na imprensa e na televisão, em comunidades de leitores, em eventos de divulgação e oficinas e tutoria ​de escrita criativa. Atualmente, assina crítica literária na revista Ler e nos jornais Sol e “i”​, coordena e ministra uma pós-graduação em Escrita de Ficção, na Universidade Lusófona, em Lisboa, e dirige e modera a Comunidade de Leitores Leya Connosco (Livraria Buchholz, Lisboa).

 

Foto
João Francisco Vilhena

 

Data
12 de Janeiro de 2018

Entrevista
Isabel Freire

Filipa Melo publicou em 2016 um Dicionário Sentimental do Adultério (Editora Quetzal), “o mais criativo de todos os pecados”. O livro atravessa os tempos e os lugares. Invoca figuras e situações da história e da literatura, revela crenças e rituais prevalecentes pelo mundo, evidencia convicções do direito, da religião ou da ciência, e conta episódios da vida comum, de todos os dias, numa abordagem pessoal, carregada de fina ironia. Para a escritora e jornalista, “a verdadeira natureza humana” não é e nunca foi monogâmica. Filipa Melo acredita que no mundo ocidental do futuro o poliamor poderá vir ser o paradigma mais comum das relações amorosas.

Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica – Como foi colecionar estas histórias (reais e ficcionais) do adultério?

Filipa Melo – Parti de várias vozes, recolhidas por escrito, numa bibliografia extensa sobre o tema, ou ao vivo, pelos testemunhos de pessoas mais ou menos próximas. O que fui lendo e escutando compôs uma espécie de puzzle, não só porque a estrutura do livro é a de um dicionário ou de um almanaque, com múltiplas entradas, mas também porque o adultério se revelou uma matéria transversal, vasta e ainda muito pouco teorizada, o mais criativo de todos os pecados. O resultado foi uma abordagem pessoal, livre, com recurso à ironia e centrada numa convicção fundamental, expressa pelo psicoterapeuta e ensaísta inglês Adam Phillips: acreditar na monogamia não é muito diferente de acreditar em Deus. Na verdade, a fidelidade conjugal é um condicionamento evolutivo, destinado a garantir a transmissão genética e assente na coibição dos instintos e na obediência a normas sociais e morais. Trata-se de uma utopia transformada em imposição prosaica. ‘Nós não fomos feitos para sermos fiéis’, é isso o que, por fim, gritaram todas as vozes que escutei.

SPSC – O processo de pesquisa e reflexão trouxe-lhe evidências das interações, dos afetos e das sexualidades das pessoas através dos tempos e dos lugares?

FM – A pesquisa cobriu desde o aparecimento da monogamia como construção societal, no Neolítico, até ao estereótipo do womaniser inveterado (a personagem Don Draper) na série televisiva Mad Men. Desde a tradição polígina dos zulus, ainda praticada pelo presidente da África do Sul, Jacob Zuma, até à existência de uma empresa de extermínio de amantes na China atual. A história do adultério acompanha a história da Humanidade e está muitíssimo presente na história da literatura. Os enredos variam através dos tempos e dos lugares, mas é constante a opressão da sexualidade feminina, o domínio do homem sobre o corpo da mulher, sobretudo após a instituição do adultério como crime público, com as Lex Julia do tempo do imperador Augusto. A mulher casada foi desde sempre colocada no epicentro da transgressão. Tal como afirmo no livro, debaixo do sol e à luz das palavras dos deuses, o destinatário primordial dos avisos contra a cobiça do cônjuge alheio pode ter sido o homem, mas o culpado parece ser sempre a mulher.

SPSC – E acerca da compreensão das suas próprias representações da sexualidade?

FM – Fiquei ainda mais convicta de que o amor romântico tal como foi concebido no século XIX é uma insanidade. Viver com alguém para sempre e ser-lhe eternamente fiel é uma autoimposição cada vez mais impraticável. A efabulação da fidelidade conjugal baseia-se na idealização de um paraíso perdido e, nesse sentido, assemelha-se à efabulação do amor incondicional, imparcial e incontestável dos pais pelos filhos. O adultério é, desde sempre, a face oculta do casamento. É o outro lado da lua e, muitas vezes, de nós mesmos. Pode suscitar uma importante reordenação de si mesmo, um renascimento. Porque quando traímos não é necessariamente o outro que traímos, mas, sim, aquilo em que nos tornámos ao seu lado. Não vamos à procura de alguém, vamos à procura de um reajuste com nós próprios. A prática do adultério permanece a principal causa de divórcio em todo o mundo e traduz o balanço entre o instinto e a convenção nas relações amorosas.

SPSC – Os casamentos “celebram-se”. Os divórcios nem tanto. E os adultérios?

FM – Haverá quem os celebre, mas é com certeza muito maior a percentagem daqueles que o lamentam. Por detrás de todos os casos de adultério que investiguei, encontrei muita dor, não só por parte de quem é traído, mas também de quem trai. A quebra do compromisso com o outro — que pressupôs também um compromisso consigo mesmo —, pode provocar euforia e significar uma afirmação importante de desejo de mudança e liberdade. Mas a ressaca obriga, genericamente, a um processo de luto extremamente difícil para ambas as partes. Por um lado, o adultério revelado (e é preciso notar que só muito raramente um adúltero confessa sê-lo) abre uma ferida narcísica muito dolorosa em quem é traído. Por outro, o próprio adúltero inicia, na generalidade dos casos, um processo de autoculpabilização que se tornará determinante para o sucesso ou insucesso das relações amorosas futuras. Creio que não há adultérios felizes, tal como não existem divórcios felizes.

SPSC – Numa das entradas do Dicionário Sentimental do Adultério, apresenta uma listagem breve de 26 situações reais de adultério. Qual destas histórias vividas lhe parece mais extraordinária e porquê?

FM – O caso mais hilariante é o do padre, tão devoto quanto precavido, que virava para a parede as faces de todos os santinhos dependurados, antes de receber a amante no seu quarto.

Aquele que mais me impressionou foi o de uma mulher que, após 22 anos de relação com um homem casado, foi impedida pela esposa de o visitar no hospital (onde estava em estado de doença terminal) e até mesmo de assistir ao velório e ao funeral. Encontrei-a em frente do cemitério, escondida atrás de um carro, a chorar compulsivamente. O adultério implica, em maior ou menor grau, mas acredito que sempre, um desejo de vingança de alguma das partes do triângulo. Os efeitos são devastadores.

SPSC – Assistiu em adolescente à Festa dos cornos (que acontecia algures no Faial e no Pico), como nos conta no livro. Chama-lhe a celebração mais insólita do mundo. Neste cortejo uma coroa com um corno na ponta, depois de abençoada, juntava numa espécie de irmandade de cornudos os homens casados das redondezas, que tivessem ‘sofrido’ o adultério. Este cortejo tinha mais de humilhação ou de partilha? E o que pensa de ambas a propósito do tema?

FM – Na altura, a minha reação foi de estranheza perante a insólita exibição pública do estatuto de cornudo. O cortejo, que avançava entre gritos e toques de búzios e campainhas, celebrava uma humilhação, o que obviamente me pareceu um contrassenso. As vítimas colaboravam, é certo, mas havia ali algo primitivo, a mesma afirmação de virilidade máscula, potencialmente selvática, que eu pressentia na escola, quando os rapazes se juntavam para baterem em algum deles, ou, por vezes, no público masculino dos jogos de futebol e das touradas ou, de forma mais intimidatória, nas propostas de teor sexual (vulgo piropos) que desde muito cedo escutei na rua. Embora o ambiente parecesse de brincadeira e folia, era especialmente enérgico o modo como os membros da irmandade corriam atrás e arrastavam os homens que iam caçando e os obrigavam a beijar o corno e bastante humilhantes os dichotes lançados pelo povo que assistia. Por detrás da festa, estava a censura evidente de um determinado comportamento ou condição, o desprezo pelo chamado corno manso.

Fora do mundo ocidental, a institucionalização da violência masculina ainda é a realidade mais comum e a penalização por adultério continua a atingir de forma bárbara sobretudo as mulheres, em especial nesse imenso vale de lágrimas que é o mundo islâmico (note-se que, em vários países, ainda é comum que os violadores sejam libertados e as vítimas condenadas por terem tido sexo fora do matrimónio). Na China, as adúlteras são comummente espancadas em público. Em Israel, os filhos de uma relação adúltera são considerados bastardos e é-lhes interdito (a eles e à sua descendência) o casamento judeu (o único reconhecido pelo Estado). No Ocidente, o adultério feminino ainda é muitíssimo mais censurado publicamente do que o masculino; por outro lado, é mais secreto e, di-lo José Santos, o detective privado que consultei, bem mais eficaz. Persiste o segredo e a discriminação de género (inclusive a ideia de que um homossexual que trai com um parceiro homossexual, não trai verdadeiramente). Persiste a ideia de que os homens traem mais do que as mulheres. Mas, pergunto-me, traem-nas com quem?

SPSC – Há uns anos, numa sala de espera de um terminal rodoviário, uma desconhecida de 60 anos contou-me que descobrira na véspera do casamento (quando tinha 20), que o noivo tinha uma amante com 180 quilos, que mal saia da cama por causa do peso. A revelação foi traumática, mas casaram-se à mesma. Quando me contou a história, o problema parecia ser, não o facto de o noivo ter outra mulher, mas a obesidade dela. O/a amante do/da companheiro/a é fonte de enaltecimento ou de depreciação de quem é traído?

FM – Não encontrei dados sobre a avaliação qualitativa do(a) amante por parte do cônjuge traído. Creio que ela é largamente superada, primeiro, pela curiosidade, depois por um instinto de rejeição e, eventualmente, de vingança.

SPSC – Cita um excerto do livro Uma Campanha Alegre de Eça de Queirós, em que ele diz que para a mulher, viver um caso de adultério é essencialmente ter a “doce ocasião” de “pequeninos afazeres” transgressivos, sigilosos (escrever cartas, “tremer e ter susto”, “fazer toilette com intenção”). Esta dimensão do risco e do segredo é essencial? Um adultério desmascarado perde a graça?

FM – Um adultério desmascarado deixa de o ser. O adultério alimenta-se da mentira, que se alimenta da fantasia. Fantasiar com o adultério é também fantasiar com o risco e a transgressão. Todos nos imaginamos alguma vez como traidores ou traídos. O adultério é um dos últimos tabus no mundo ocidental, sobre o qual nem sequer é possível elaborar estatísticas credíveis. A sua essência é a excitação provocada pelo segredo e pelo desconhecido ou, tão só, a verdadeira natureza humana, que nunca foi monogâmica. Tal como afirmo no livro: num adultério, mentir é descobrir opções, e encontrar liberdades inimagináveis. O segredo faz o resto. No adultério, as variações de nós mesmos são infinitas.

SPSC – “Três é o número de lados do triângulo que, nestas coisas de adultério, parece ser sempre isósceles, ou seja, ter um lado diminuído”. O lado diminuído é sempre evidente?

FM – De todo. O adultério é uma competição de forças, um diálogo surdo-mudo entre três pessoas, uma soma sempre errada (2+2=3), em que ninguém ganha e todos perdem. Não se trata de uma afirmação moral da minha parte, nada disso, trata-se de uma constatação. Acredito que uma peça-chave do jogo é o desejo de afirmação individual. Outra, é a capacidade de autoestima. E ainda outra, a pulsão sexual. A conjugação entre os três fatores, inconsciente na maioria dos casos, define cada um dos contendores.

SPSC – Diz no seu Dicionário que a monogamia pode ser coroada “como o maior desmancha-prazeres de sempre, anti-erótico e a-romântico”. E que a fidelidade conjugal não é a nossa “inclinação natural”. O que acha do poliamor?

FM – Num futuro ainda distante, talvez o poliamor venha a ser a realidade mais comum no mundo ocidental, afirmando-se como novo paradigma das relações amorosas. Para tal, seria necessária uma reformulação tão profunda quanto a influência inabalável do casamento como cimento social o foi até agora.