Autodeterminação do género legal: consagrar o direito a existir


Autodeterminação do género legal: consagrar o direito a existir

 

Uma reflexão de…
Daniela Filipe Bento, mulher trans, não binária, transfeminista e actual membro da direcção da Associação ILGA Portugal e coordenadora do GRIT (Grupo de Reflexão e Intervenção Trans).

 

Percurso 
A sua área de activismo centra-se numa perspectiva transfeminista radical e interseccional. Começou o seu percurso através da criação de comunidades trans e a escrever em diversos projectos sobre temática feminista/LGBTI+. Participa activamente na formação sobre identidade de género, orientação sexual e orientação relacional. Faz parte, também, de outros movimentos associativos e colectivos que procuram a auto-reflexão sobre diversas áreas sociais.

 

Data
8 de Maio de 2018

No dia 13 de Abril foi a votação geral uma proposta de lei que consagra a autodeterminação de género legal para pessoas trans. A proposta foi aprovada e seguiu para decisão do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. Esperamos assim, com a promulgação desta lei, trazer enormes benefícios para uma população que sofre de um estigma social enorme. Um estigma que resulta, em parte, da falta de reconhecimento legal de quem são estas pessoas.

É preciso, em primeiro lugar, entender o que é autodeterminação de género legal. Quando falamos em autodeterminação referimo-nos à autonomia que pessoas de género não congruente com o seu género assignado à nascença (pessoas trans) têm para se autodeterminarem enquanto – ainda num sistema binário – homens ou mulheres, sem qualquer parecer de uma entidade externa como, por exemplo, um médico. A premissa é simples: não há maneira de avaliar uma identidade, dado que esta é uma experiência profunda e subjetiva que só a própria pessoa pode sentir e viver em plenitude. Apenas é possível avaliar o sofrimento que essa não conformidade pode trazer para a pessoa. No entanto, a autodeterminação é um direito essencial para a vivência destas pessoas.

A história tem-nos mostrado enormes mudanças no conhecimento sobre identidades trans. Há um século não existia o conceito de género e o entendimento sobre a própria sexualidade ainda estava num estado embrionário. A revolução científica e o esforço de mover as questões da sexualidade do campo moral e religioso para uma ciência positivista trouxe a construção de conhecimento muito primário sobre a complexidade da existência identitária. Na ausência de um conceito como género, o sexo era determinado à nascença pela observação directa dos órgãos genitais do bebé (ainda hoje é prática). Neste sentido, existiriam pessoas que teriam uma discordância entre a sua alma e o seu sexo biológico. Foi nesta perspectiva que nasceu o termo transexual: pessoas que queriam mudar o seu sexo. É preciso notar que durante um período de tempo apenas eram considerados casos de pessoas do sexo masculino que queriam transicionar para o sexo feminino. Com o começo das cirurgias de reatribuição sexual abriu-se uma nova era no acompanhamento de pessoas trans (transexuais, termo usado nesse tempo). Porém, alguns anos depois, nasce o conceito de género que está associado à experiência pessoal e subjetiva em relação à identidade com que a pessoa se reconhece. Nesta época haviam critérios muito específicos para avaliar clinicamente pessoas trans e, simultaneamente, nasciam movimentos sociais (movimentos transfeministas) e teorias de género, como a de Judith Butler, que procuraram desconstruir todas estas formas de avaliar identidades. Durante muitos anos estas identidades foram consideradas perturbações. Só em 2013 foi extinto do DSM o diagnóstico de Perturbação de Identidade de Género. O mesmo diagnóstico que a lei portuguesa ainda exige para a mudança de nome e género legal. Este diagnóstico, na sua essência, patologiza identidades afirmando que são uma perturbação. Porém, no novo DSM este diagnóstico foi removido e foi introduzido o diagnóstico de Disforia de Género, que deixa de ter foco na identidade, mas tenta diagnosticar sofrimento relevante na pessoa, que advém da sua não conformidade de género. Fica claro que há um reconhecimento que nem todas as pessoas trans sofrem de Disforia de Género.

[…] nos últimos anos, o entendimento sobre identidade tem mudado drasticamente e muitos países começaram a legislar no sentido da autodeterminação. O mesmo princípio que queremos agora seguir. Será outra nova mudança de paradigma porque dá às pessoas a real autonomia para se auto determinarem perante o Estado sem a exigência de qualquer relatório clínico

Em 2011 assistimos a uma grande mudança de paradigma no modo como o Estado permitia o reconhecimento legal da identidade de pessoas trans: removemos a obrigatoriedade de qualquer tratamento clínico (farmacológico e/ou cirúrgico) – ainda hoje muitos países requerem esterilização compulsória – requerendo apenas uma relatório clínico que confirmasse Perturbação de Identidade de Género. No entanto, nos últimos anos, o entendimento sobre identidade tem mudado drasticamente e muitos países começaram a legislar no sentido da autodeterminação. O mesmo princípio que queremos agora seguir. Será outra nova mudança de paradigma porque dá às pessoas a real autonomia para se auto determinarem perante o Estado sem a exigência de qualquer relatório clínico. A autodeterminação não está vinculada a tratamentos médicos, mas apenas à mudança de nome e género legal. Este processo vai de encontro às mais variadas posições de organismos internacionais que operam neste campo.

É importante entender porque esta é uma mudança importante e urgente. O princípio base está no auto reconhecimento de quem se é. Nenhuma pessoa cisgénero (chamamos cisgénero a pessoas que estão em conformidade com o seu género atribuído à nascença) precisa de um parecer técnico que ateste a sua identidade. Do mesmo modo, para pessoas trans, o processo é idêntico. Estas pessoas sabem quem são desde sempre. A identidade de género é um direito fundamental que deve ser respeitado e por isso o Estado deve ser a primeira entidade a reconhecer em pleno a identidade de uma pessoa. Por outro lado, é importante questionar sobre como se pode avaliar uma identidade – a conclusão é simples: não se pode. A identidade, como experiência profunda e subjetiva, está associada à própria vivência interior da pessoa e deste modo os critérios para a sua avaliação não são realistas. É deste modo que podemos levantar a pergunta sobre o que é ser mulher ou sobre o que é ser homem e, entenderemos que todas as pessoas terão uma resposta diferente para esta pergunta. Neste sentido, a identidade está no campo pessoal, subjetivo e não no campo da avaliação por critérios. É muito importante ter este entendimento em mente quando se discute este processo de autodeterminação. Historicamente sabemos que as condições para autorização de mudança de nome e género legal estavam relacionados com construções sociais sobre o género. Estavam intrinsecamente associados a percepções e ideias pré-concebidas sobre o que é ser-se homem ou mulher: seja de uma perspectiva de performance social ou de corporalidade.

Os recentes critérios de Disforia de Género incluem mau estar físico em relação ao corpo, o desejo de remoção de caracteres sexuais primários ou secundários, o desejo de ter caracteres sexuais ou primários do outro género e, também, a necessidade do tratamento por pronomes e reconhecimento social pelo outro género. A experiência diz-nos que nem todas as pessoas trans querem ou desejam alterações corporais como primeira etapa da sua transição, mas sim querem no seu tempo próprio (ou até podem não querer), assumindo o reconhecimento do género legal uma importância enorme para a sua vivência diária. Neste sentido, e para além do que já foi referido em relação à avaliação de identidades e ao direito à identidade, muitas destas pessoas ficam excluídas deste diagnóstico não lhes sendo autorizado o reconhecimento legal da sua identidade.

Historicamente sabemos que as condições para autorização de mudança de nome e género legal estavam relacionados com construções sociais sobre o género. Estavam intrinsecamente associados a percepções e ideias pré-concebidas sobre o que é ser-se homem ou mulher: seja de uma perspectiva de performance social ou de corporalidade

Uma vez que não é possível avaliar identidades, o que tem acontecido frequentemente na prática clínica é que existe uma projeção das próprias ideias do médico e/ou do psicólogo sobre o que é ser-se mulher ou homem. Muitas vezes, as pessoas que procuram o seu reconhecimento legal veem-se compelidas a demonstrar que cumprem padrões sociais associados a estereótipos masculinos e femininos. A expressão de género que apresentam, a sua orientação sexual, preferências de prática sexual, performance social, entre outros pontos são usados como pontos de avaliação para corroborar o diagnóstico e a possibilidade de mudar o nome. Sabemos, no entanto, que todos estes pontos estão associados a uma construção social que se sustenta nas expectativas sociais atribuídas a cada género. E, independentemente da identidade de género, a construção da expressão de género, corporalidade, orientação sexual, etc., são pessoais e subjetivas. Não existe uma forma correta de se ser mulher/homem, existem formas diversas que resultam da pluralidade humana. Entende-se assim que há um exercício que deverá ser feito nesta área. A identidade não pode estar associada ao estereótipo, mas sim há vivência pessoal.

Quando defendemos a autodeterminação, não defendemos que as pessoas não devem ter acompanhamento, mas sim que as pessoas o devem ter se assim sentirem necessidade e que esse acompanhamento não pode ser enviesado pela dependência de um relatório médico. Torna-se frequente as pessoas omitirem partes da sua vida ou seguirem com um discurso que vai de encontro à expectativa de género (que é pretendida para que o relatório seja obtido), ou seja, não há um verdadeiro acompanhamento. A experiência diz-nos claramente que há um reconhecimento da identidade muito precoce e estas pessoas apenas, em primeiro lugar, querem poder seguir a sua vida com a sua identidade reconhecida. Deste modo, conclui-se que qualquer tentativa de avaliar identidades resulta num claro processo de normatização e normalização de pessoas, perpetuando estereótipos de género e fomentando os papéis tradicionais de género – não sendo um processo crítico de quebra com estes padrões que em muitas situações são prejudiciais, resultando em níveis de violência altos.

Com a evolução do conhecimento que se tem sobre pessoas trans e com o contributo destas mesmas é necessário assumir uma posição mais crítica em relação aos métodos tradicionais da prática clínica. Por exemplo, o reconhecimento assumido de que o género vai para além de uma realidade binária, o entendimento da diversidade e pluralidade de género e corporalidade, de expressão, prática e vivência. Será importante, deste modo, ouvir as pessoas e os seus próprios testemunhos, as suas vivências e compreender as suas necessidades. É importante que, neste sentido, a medicina assuma um papel construtivo, de acompanhamento e entendimento e que não seja representativa de um sistema autoritário e normalizador. Este processo deverá ser feito em conjunto e em crescimento mútuo.

[…] estas pessoas sabem quem são, sempre souberam

A autodeterminação é um processo pessoal e que deve ser respeitado na sua plenitude. O que se exige é que se consagre o direito a existir. É necessário e urgente que este caminho seja feito, permitindo a muitas pessoas verem-se reconhecidas pela entidade máxima legal. Porque estas pessoas sabem quem são, sempre souberam. Não existe e não pode existir uma entidade externa que me diga quem sou.