Estudo sobre resposta sexual masculina e seus correlatos neuronais
Nicoletta Cera, psicóloga experimental e investigadora de pós-doutoramento no SexLab (FPCEUP)
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Doutorada em Neuroimaging Funcional na Universidade “G. d’Annunzio” de Chieti-Pescara (Itália). Apaixonada pelo Imaging funcional (em particular pela ressonância magnética funcional) e em geral por tudo o que seja imagem, expressão e cor. Os seus interesses científicos variam dos correlatos cerebrais da resposta genital ao envelhecimento cognitivo, passando pela psicometria. Ganhou em 2017, o 10 Best Communications Award no congresso da WAS. Declara-se amante de rock progressivo, girassóis, literatura latina e atletismo.
Data
25 de Maio de 2018
Entrevista
Isabel Freire
Nicoletta Cera desenvolve desde 2015, no SexLab (Faculdade de Psicologia e Ciências de Educação da Universidade do Porto), um projeto de investigação de pós doutoramento que pode ser considerado o primeiro estudo português de ressonância magnética funcional, na área da sexualidade masculina. Financiado pela FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), o estudo analisa a resposta cerebral, genital e movimentos oculares de homens com disfunção erétil (de origem psicológica) e de homens sem disfunção. A pesquisa é desenvolvida numa parceria com o instituto IBILI, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (coordenado por Miguel Castelo-Branco), contando com a colaboração de urologistas de vários hospitais públicos do pais. Para a investigadora italiana, que prefere ser chamada por Nico Cera, “não é possível ignorar o passado científico de uma ciência como a sexologia, mas é preciso uma integração entre o ‘passado’ e o ‘presente’, para conseguirmos resultados no futuro”.
Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica – Que pergunta orienta a pesquisa?
Nicoletta Cera – Quando se fala de um estudo de Brain imaging é difícil falar de uma só pergunta. O cérebro humano é um sistema muito complexo. Pode ser considerado como o “centro operativo” das nossas emoções e cognição, em conjunto com outras partes do sistema nervoso. Assim, é possível falar de uma série de perguntas que orientam a pesquisa. As nossas perguntas estão relacionadas ao modelo da resposta genital masculina (desenvolvido e criado pelo professor Pedro Nobre), que tem a ver com os pensamentos cognitivos e as emoções que influenciam a resposta sexual. Estamos interessados em perceber o papel de um conjunto de regiões cerebrais no comportamento sexual masculino, com e sem disfunção erétil. Particularmente, em perceber ao nível do envolvimento, o que acontece quando homens estão num contexto sexual, como seja o do visionamento de um clipe de vídeo sexualmente explícito. Quais são os pensamentos e as emoções envolvidas? Onde estão funcionalmente colocados no cérebro humano? E o que acontece em pessoas com disfunção erétil psicológica? Parece uma pergunta simples e um ponto de partida óbvio, mas não é.
SPSC – Que população tem por alvo?
NC – Homens com e sem disfunção erétil de origem psicológica, entre os 20 e 50 anos de idade.
SPSC – Qual a hipótese de que parte a investigação experimental?
NC – Na área da neurociência às vezes temos uma macro hipótese (i.e. comparação do funcionamento cerebral em dois grupos, doentes vs controlos) e podemos ter muitas micro hipóteses. No nosso estudo, testamos o impacto dos pensamentos cognitivos, que podem afetar a resposta genital masculina e ao mesmo tempo a resposta cerebral e os movimentos oculares. Temos hipóteses específicas sobre o papel de algumas regiões cerebrais como o córtex da insula, pré-frontal e parietal. Este conjunto de regiões parecem ter (como já foi encontrado em alguns estudos) um papel importante, seja na resposta genital, seja na disfunção erétil psicológica. O nosso interesse é também perceber o gap entre a resposta genital efetiva e a resposta subjetiva.
SPSC – Em que medida é que o recurso à Ressonância Magnética Funcional é inovador em estudos experimentais da sexualidade humana?
NC – Durante os primeiros anos da faculdade ouvimos falar de black-box, um conceito pavloviano para indicar o sistema cognitivo / emotivo, os processos entre um estimulo e uma resposta. Historicamente, o homem também sempre teve a curiosidade de ver e perceber o funcionamento de um órgão. A fMRI (Ressonância Magnética Funcional, do inglês Functional Magnetic Ressonance Imaging) é uma técnica que permite ver como o cérebro de um grupo de pessoas reage a uma estimulação. No nosso caso, há um interesse pelo comportamento sexual. É possível também testar modelos da sexologia clássica e formular hipóteses sobre o funcionamento de uma determinada região ou rede funcional de regiões. A fMRI é claramente um valor acrescentado, que pode integrar, mas não substituir a investigação clínica (quantitativa ou psicofisiológica). A fMRI diz-nos onde está um ou mais processos mas não é capaz de nos dizer “quando” ele acontece. Assim sendo, o domínio temporal é uma das limitações principais da ressonância magnética funcional.
SPSC – Como é feita a experiência, ou seja, como se desenvolve o processo de monitorização em cada voluntário?
NC – As experiências de fMRI são experiências de equipa, e são muito complexas. Podemos contactar um voluntário ou receber um email a pedir a participação. No email de resposta explicamos todos os pormenores. Todos os dados recolhidos são anonimizados e protegidos segundo a lei da privacidade e tratamento dos dados pessoais. Depois, o participante é convidado a responder a uma triagem com uma sexóloga especialista (somos quase todas mulheres, no SexLab) e a responder a uns questionários. No dia do exame de ressonância o participante é acolhido por mim e pelos técnicos de ressonância. Explico novamente todo o processo. Respondo a perguntas e dúvidas. Dou informações sobre o procedimento de limpeza dos instrumentos. Tranquilizo o participante sobre a privacidade e sobre o exame, que não tem qualquer risco para a saúde. O participante aceita, assina o consentimento informado, e depois de uma anamnese radiológica, começa a experiência. Durante a recolha dos dados, é mostrado um clipe com conteúdo sexual e um clipe neutro, tendo o participante de responder a algumas perguntas carregando num botão. Registamos movimentos oculares e resposta genital. A resposta genital é recolhida com um esfigmomanómetro colocado em volta do pénis, que tem de ser protegido com um preservativo. Todo o equipamento é compatível com o campo magnético. Quando ouvimos o primeiro scanner da ressonância é uma felicidade na sala de controlo. Significa que tudo está a correr bem. Depois da experiência, pedimos um feedback e no dia seguinte começa a análise dos dados.
[…] não é só o cérebro, mas todo o sistema nervoso central e periférico, que se pode considerar o “principal órgão da sexualidade”
SPSC – O cérebro é frequentemente identificado como uma zona erógena. Esta ideia tem alguma relação com o trabalho de pesquisa que desenvolve ou esta pergunta não faz sentido nenhum?
NC – Acho que não se pode falar de “alguma relação”, mas sim da chave de leitura de toda a investigação, no âmbito da sexualidade humana. Em sexologia foram criados modelos de estudos, aplicados também na prática clínica, que tem como base vários aspectos da cognição humana (como a atenção, decision making, memória autobiográfica, etc.). Estas funções têm claramente como base o sistema nervoso. O sistema nervoso é muito mais do que o cérebro. Não se pode cair no erro de identificar uma região cerebral como responsável por uma função cognitiva (como o caso de Paul Broca, que encontrou a região responsável pela produção linguística), porque o cérebro é um sistema complexo que faz parte do sistema nervoso. A resposta genital, que parece ser um mecanismo muito simples, é uma resposta conjunta do sistema vascular, neuro endócrino e autonómica. Por isso, não é só o cérebro, mas todo o sistema nervoso central e periférico, que se pode considerar o “principal órgão da sexualidade”.
SPSC – Por que motivo investigam a disfunção sexual masculina (e não a feminina)?
NC – É uma pergunta justa. Acho que pode ser considerado um dos próximos estudos da equipa do SexLab. Atualmente, o interesse está mais na resposta genital masculina.
SPSC – Poder-se-ia aplicar o mesmo desenho de pesquisa ao caso feminino?
NC – Em teoria sim. Já foi objeto de estudo por outros grupos de investigação. Janniko Georgiadis, por exemplo, publicou interessantes investigações sobre os correlatos cerebrais da sexualidade feminina e no orgasmo. Claramente, do ponto de vista técnico, é preciso adaptar o protocolo experimental a uma população de mulheres. Encontrar estímulos eróticos (i.e. clipes de vídeo) que sejam mais específicos para as mulheres, adaptar as técnicas de registo da resposta genital feminina, conforme o ambiente da ressonância magnética e no respeito pela privacidade das participantes.
SPSC – As evidências em sexologia clínica continuam a apontar para uma sexualidade masculina mais reativa a estímulos visuais eróticos?
NC – Não sou especialista em sexualidade feminina e por isso não posso dar-lhe uma resposta satisfatória. É redutivo falar de mais re-atividade a um estimulo sexual. A resposta sexual de tipo genital, a excitação subjetiva são processos muito complexos.
SPSC – Foi fácil escolher os clipes de vídeo com material sexual explícito ou houve dilemas envolvidos nessa definição?
NC – A escolha dos vídeos é um processo bastante estandardizado. Existem guidelines. Tentamos escolher clipes sexualmente explícitos com várias fases (petting, coito vaginal, oral) e no nosso caso tem uma duração de três minutos. Depois de editados pedimos a uma amostra (independente da que vai participar no estudo), para avaliar os vídeos, em função de vários critérios (qualidade do vídeo, excitação percebida, etc.), com uma escala tipo likert. A posteriori são escolhidos os vídeos com valores mais elevados. Assim, o investigador não pode influenciar a experiência desde o início.
SPSC – Para muitas pessoas, um filme de terror perde parte da sua dimensão aterrorizante, quando se lhe retira o som. Ver um filme erótico ou pornográfico sem som poderá também retirar-lhe parte da sua dimensão erótica?
NC – É uma pergunta muito interessante. Na experiência de vida, e também na neurociência das emoções, sabemos quanto um ruído, uma música ou outras experiências auditivas podem afetar a resposta emocional. Às vezes, somos capazes de gostar de um filme só por causa da banda sonora. Numa experiência anterior que desenvolvi em Itália e foi publicada no Journal of sexual medicine (em 2012), os estímulos eróticos e neutros eram clipes sem áudio. Isso pode claramente afetar parte da resposta cerebral, uma vez que a imaginação pode ter um papel relevante. Os participantes podem imaginar sons ou diálogos entre os atores ou imaginar música, e isso não é uma variável que seja possível controlar. Para além da imaginação, as respostas genitais que observei não foram alteradas pela falta de áudio e nenhum dos participantes referiu dificuldades em atingir a ereção por essa ausência. Na área da sexologia experimental costuma-se usar clipes audiovisuais para ter também envolvimento maior dos participantes. São muito mais “naturais” do que os clipes de vídeo sem áudio. Este pormenor técnico foi ultrapassado no estudo que estamos a desenvolver aqui, com a colaboração da equipa do IBILI. Garantir uma experiência o mais agradável possível aos participantes e o mais ecológica possível, pode ajudar a minimizar o impacto das variáveis de confundimento.
Queríamos chegar a uma mostra de 20 homens sem disfunção e 20 homens com disfunção erétil. Todos os participantes podem ter o benefício de ajudar a ciência e colaborar numa experiência que não é algo comum. Os homens com disfunção erétil psicológica, caso queiram, podem […] receber tratamento farmacológico ou terapia cognitivo-comportamental
SPSC – De que forma este estudo pode vir a contribuir para compreender e ajudar a tratar uma disfunção eréctil de natureza psicológica?
NC – O nosso estudo pode fornecer novos insights sobre os processos que são afetados na disfunção erétil. Ou seja, as regiões cerebrais envolvidas no processamento de estímulos eróticos são diferentes entre os dois grupos. Já temos resultados preliminares que foram apresentados em congressos nacionais e internacionais. Durante a recolha dos dados fMRI recolhemos também os movimentos oculares que podem dar informações sobre os processos atencionais e sobre as partes do clipe erótico que os dois grupos veem/olham. Todo o conjunto de informações derivadas desse estudo poderiam ser operacionalizadas e usadas na avaliação e no tratamento psicoterapêutico da disfunção erétil psicológica.
SPSC – Quantos casos pretendem auscultar e que benefícios têm os voluntários na sua participação?
NC – Queríamos chegar a uma mostra de 20 homens sem disfunção e 20 homens com disfunção erétil. Todos os participantes podem ter o benefício de ajudar a ciência e colaborar numa experiência que não é algo comum. Recebem também 30€ em vales como agradecimento pela participação. Os homens com disfunção erétil psicológica, caso queiram, podem ser envolvidos num randomized control trial (que tem com responsável a investigadora Cátia Oliveira) e gratuitamente receber tratamento farmacológico ou terapia cognitivo-comportamental.
SPSC – Enquanto investigadora da sexualidade humana, e condutora desta pesquisa, o que é mais intrigante para si nas realidades agora que pretende compreender?
NC – Enquanto condutora da presente pesquisa, é intrigante perceber o que acontece no sistema nervoso central dos participantes, quando estão numa situação sexual. O meu interesse principal é integrar os modelos existentes na área da sexologia, a maioria dos quais criados antes da possibilidade de investigação com técnicas de neuroimaging funcional. Os modelos de interpretação do comportamento sexual tinham como base o contacto direto com pessoas com disfunções ou com outras problemáticas. Atualmente, não é possível ignorar o passado científico de uma ciência como a sexologia, mas é preciso uma integração entre o “passado” e o “presente”, para conseguirmos resultados no futuro. Por isso queria mencionar que estamos a recolher dados, e procuramos voluntários.
Mais informações sobre como participar no estudo de Nicoletta Cera, aqui.
Equipa do SexLab (Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa), coordenada por Pedro Nobre, que tem vários projetos de investigação a decorrer.