Mulheres agressoras sexuais – o mito da inocência


Mulheres agressoras sexuais – o mito da inocência

Uma reflexão de…
Joana Carvalho, Psicóloga, Investigadora em Sexologia e Sexologia Forense.

 

Percurso 
Professora Auxiliar de Psicologia e diretora do Mestrado em Psicologia Forense da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Investigadora Principal do projeto FEMOFFENCE – The myth of innocence: A mixed methods approach toward the understanding of female sexual offending behavior (Fundação para a Ciência e Tecnologia). Editora Associada do Journal of Sexual Medicine.

 

Data
28 de junho de 2018

Os crimes sexuais são talvez das formas mais hediondas de violência, e por isso alvo de grande fascínio e inquietação. Refiro-me a fascínio intelectual, e a inquietação, na medida que os crimes sexuais são considerados das piores formas de violência interpessoal. É por isso comum, mediante notícias acerca de um violador ou de um abusador sexual de menores, sermos confrontados com expressões de repugnância e espanto, quase como se não houvesse explicação para estes atos. Ora, explicações existem. Há muito que a ciência reúne evidência que permite entender e intervir nestes casos, ainda que tal seja um trabalho sempre em evolução. Mas há uma exceção para a qual a ciência, e a Sexologia Forense em particular, continuam sem respostas. Trata-se das mulheres agressoras sexuais.

Quando comparada com o homem, a mulher é vista como o ser “passivo”, “a mãe” e “a vítima”. São-lhe socialmente reconhecidas características de cuidadora/protetora, contrastando assim com a figura masculina. Já o homem, é visto recorrentemente como o “agressor”, e mesmo em caso de vitimação, assume-se que ele é vítima de outro homem, mas nunca de uma mulher. Esta ideia prototípica subsiste mesmo após décadas de evidência empírica sobre mulheres agressoras sexuais. Desengane-se quem acha que o tema é novo, pois já desde a década de 70 que os relatos nos chegam pelos meios científicos e judiciais internacionais (e.g., Denov 2003) sem, contudo, ter eco na sociedade, ou ganharem revelo no contexto científico, incluindo na Sexologia. A título de exemplo, e salvaguardando que as mulheres e crianças são as principais vítimas de crimes sexuais onde o homem é o agressor, verificou-se que as mulheres estiveram envolvidas em 12% dos crimes sexuais contra menores de 6 anos (Snyder, 2000), 20% de homens vítimas de violência sexual foram vitimizados por mulher (Allen, 1991), ou, que no contexto norte americano, é esperada a condenação de 10.000 mulheres por ano, devido a crimes sexuais com recurso a violência severa (Oliver, 2007). Creio ser nesta fase, onde muitos se perguntam, mas pode uma mulher violar ou agredir sexualmente alguém? Pode, e isso remete para a natureza dos crimes sexuais.

É de salientar na literatura, a falta de modelos conceptuais, de avaliação e intervenção nestas mulheres. É também de salientar a falta de formação sobre esta temática nos currículos académicos em áreas como a Psicologia, Sociologia, Criminologia ou Sexologia

Sobre a natureza destes crimes, importa salientar a sua apresentação heterogénea. Se nalguns crimes sexuais são utilizadas estratégias hands-on (i.e., é aplicada força física sobre a vítima deixando marcas ou ferimentos como prova), em muitos dos casos são utilizadas estratégias hands-off (i.e., coage-se a vítima verbalmente, sob ameaça, pressão/manipulação psicológica, ou fazendo-se aproveitamento quando ela não está em plena posse da sua consciência). Isto significa, que para que ocorra violência sexual, o agressor não tem de ter superioridade física sobre a vítima, mas sim poder. E são estas estratégias hands-off, as mais utilizadas pelas mulheres agressoras. Mas alguns, ainda estarão a pensar, se poderá um homem ser violado, se não quiser (i.e., no sentido de haver ereção que propicie penetração sexual). Ora, um erro muito comum é confundirmos ereção com consentimento sexual ou vontade de ter sexo. E o certo é, que um homem saudável, mediante um contexto ansiogénico ou até de ameaça, pode ter uma ereção como resposta fisiológica ao medo. É exatamente este mecanismo que é aproveitado em casos de violação de homem por mulher, ou grupo de mulheres. Já no caso de menores vítimas de abuso sexual por parte de mulher, é comum o cenário onde a mulher (geralmente mãe ou cuidadora), retira gratificação sexual pela masturbação do(a) menor, inserção de objetos nas cavidades genitais do(a) menor, de se masturbar, fazer a higiene íntima ou ter relações sexuais na presença do(a) menor.

Uma forma de organizarmos conhecimento sobre as mulheres agressoras sexuais é agrupando-as por classes, de acordo com o seu modus operandi e eventuais características sociais e psicológicas. Assim sendo, foi possível identificar quatro tipologias:

1) cuidadora, que engloba uma relação hierárquica, e onde geralmente se encontra a mãe que abusa sexualmente dos próprios filhos;

2) co-ofensora, onde a mulher assume um papel passivo, assistindo o companheiro no abuso dos filhos ou de mulheres adultas;

3) adulto-adulto, isto é, mulher adulta coage homem, geralmente quando este está intoxicado (e.g., álcool), também são conhecidos fenómenos de gang rape feminino;

4) criminal, ou seja, a mulher recruta outras mulheres e crianças para fins de prostituição (Johnson, 2007).

Tratam-se de tipologias com pouca validade, devido ao parco investimento científico na área. Aliás, este parco investimento, quiçá fruto dos próprios mitos de investigadores e académicos, resulta na falta de enquadramentos conceptuais adequados à compreensão deste fenómeno. E se não compreendemos um fenómeno, então também não estamos aptos a intervir no mesmo. É de salientar na literatura, a falta de modelos conceptuais, de avaliação e intervenção nestas mulheres. É também de salientar a falta de formação sobre esta temática nos currículos académicos em áreas como a Psicologia, Sociologia, Criminologia ou Sexologia. Ora, a ignorância tem custos. Os crimes sexuais são aqueles que apresentam das mais altas taxas de atrito. Ou seja, a percentagem de casos que se perde no sistema de justiça, entre uma queixa ou denúncia, e uma condenação, pode chegar aos 90%. Isto significa, que apenas cerca de 10% dos casos é julgado, e poderá resultar numa condenação (Kelly, Lovett, & Regan, 2005). Logo, a maior parte dos agressores sexuais não chega sequer a passar pelo sistema de justiça, e isto poderá ser tanto maior para o caso das mulheres agressoras sexuais.

[…] um erro muito comum é confundirmos ereção com consentimento sexual ou vontade de ter sexo. E o certo é, que um homem saudável, mediante um contexto ansiogénico ou até de ameaça, pode ter uma ereção como resposta fisiológica ao medo. É exatamente este mecanismo que é aproveitado em casos de violação de homem por mulher, ou grupo de mulheres

Mas os custos não são apenas “legais”. Os custos são sobretudo humanos. Ao contrário daquilo que as pessoas possam pensar, vítimas de mulheres agressoras sexuais, também evidenciam sequelas emocionais e potencialmente traumáticas. Porém, ao contrário das vítimas de homens agressores, as vítimas de mulheres agressoras sexuais deparam-se com um sistema de profissionais (seja de saúde, seja judiciais), que não se encontram preparados para lidar mediante estas situações. Aliás, existe evidência de homens, vítimas de mulheres agressoras sexuais, que foram humilhados aquando a solicitação de ajuda ou queixa judicial (e.g., King, & Woolett, 1997). Ilustro este ponto com dados de alguns estudos experimentais sobre perceções sociais acerca da violência sexual perpetrada por mulheres. Nestes, os participantes eram confrontados com cenários (geralmente, narrativas) onde era descrito um episódio de coação sexual, variando o género do agressor e da vítima (i.e., num cenário a vítima era mulher e o agressor homem, no outro sucedia o contrário). Verificou-se que nos cenários onde o homem era o agressor, este era conotado como “violador”, “agressor”, enquanto as mulheres, no mesmo papel, eram conotadas como “promíscuas”, ou como estando “apaixonadas pelo homem” (e.g., Oswald & Russel, 2006; Struckman-Johnson, D. & Struckman-Johnson, C., 1991). Existe, portanto, um duplo padrão na forma como julgamos estas situações, bastante alinhado com os estereótipos de género. É neste sentido que urge, não só compreender os fatores psicossociais que motivam as mulheres agressoras sexuais, como também as dinâmicas sociais que, por este duplo padrão, fazem desta realidade, um mito.

Os scripts sociais e sexuais sobre o papel da mulher e da sua sexualidade, bem como as lacunas científicas sobre a caracterização das mulheres agressores sexuais e respetivos fatores de risco, mascaram este fenómeno criminal, contribuindo para emergência de novas vítimas – e vítimas desprotegidas pelo sistema – ou ainda para a ausência de diretrizes que permitam avaliar e reabilitar mulheres agressoras sexuais. Afinal, se a criminalidade sexual existe, não é só devido aos agressores, é também devido à forma como os nossos estereótipos sociais legitimam esta forma de violência.

 

Referências bibliográficas

Allen, C. (1991). Women and men who sexually abuse children: A comparative analysis. Orwell, VT: The Safer Society Press.

Denov, S. (2003). Sexual scripts and the recognition of child sexual abuse by female perpetrators. Journal of Sex Research, 40, 303-314.

Johnson, S.A. (2007). Physical abusers and sexual offenders: Forensic and clinical strategies. New York: Taylor & Francis Group.

Kelly, L., Lovett, J., & Regan, L. (2005). A gap or a chasm. Attrition in reported rape cases. Retrived from: http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.131.8325&rep=rep1&type=pdf.

King, M, & Woolett, E. (1997). Sexually assaulted males: 115 men consulting a counseling service. Archives of Sexual Behavior, 26, 579-583.

Oliver, B. (2007). Preventing female-perpetrated sexual abuse. Trauma, Violence, and Abuse, 8, 19-32.

Oswald, D.L., & Russel, B. L. (2006). Perceptions of sexual coercion in heterosexual dating relationships: The role of aggressor gender and tactics. The Journal of Sex Research, 43, 87-95.

Snyder, H. N. (2000). Sexual assault of young children as reported to law enforcement: Victim, incident, and offender characteristics. Washington, DC: U.S. Department of Justice, Bureau of Justice Statistics.

Struckman-Johnson, D., & Struckman-Johnson, C. (1991). Men and women’s acceptance of coercive sexual strategies varied by initiator gender and couple intimacy. Sex Roles, 25, 661- 676.