Quando as alcunhas desnudam a sexualidade


Quando as alcunhas desnudam a sexualidade

Uma reflexão de…
José Machado Pais, sociólogo, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e diretor da Imprensa de Ciências Sociais.

 

Percurso 
Foi Professor Visitante em várias universidades europeias e sul-americanas e Professor Catedrático Convidado do ISCTE/Instituto Universitário de Lisboa. Coordenou o Observatório Permanente da Juventude Portuguesa e o Observatório das Actividades Culturais. Autor de diversos livros em torno da sexualidade: A Prostituição e a Lisboa Boémia (Lisboa, 1985); Artes de Amar da Burguesia (Lisboa, 1986); Ganchos, Tachos e Biscates. Jovens, Trabalho e Futuro (Porto, 2001); Sexualidade e Afetos Juvenis (Lisboa, 2012); Enredos Sexuais, Tradição e Mudança: as Mães, os Zecas e as Sedutoras de Além-mar (Lisboa, 2016). Em 2003, recebeu o Prémio Gulbenkian de Ciências Sociais e, em 2012, o Prémio ERICS (Prémio Estímulo e Reconhecimento da Internacionalização em Ciências Sociais).

 

Data
28 de junho de 2018

1. Muitos enigmas da sexualidade podem soltar-se quando exploramos o vínculo entre linguagem e sociedade. Aliás, a linguagem é um tesouro do conhecimento ao permitir-nos compreender a sociedade que a produz. Não espanta o envolvimento da psicanálise no desvelamento desse tesouro do conhecimento. Por mim ficaria satisfeito se conseguisse aliciar quem agora me lê para uma pequena aventura investigativa. O alvo? As alcunhas de pendor sexual que, em suas andanças, nos incitam à descoberta de tensões, simultaneamente reveladas e dissimuladas, de necessidades e desejos, normalidades e desvios. Como a viagem é curta proponho apenas dois apeadeiros de reflexão: o dos submundos da prostituição e o dos espaços escolares.

2. O meu interesse pelas alcunhas surgiu quando há tempos explorei os meandros do fado da Lisboa boémia do século XIX. Na sociedade respeitável de então, o discurso sobre a sexualidade estava fortemente filtrado pela decência e moral. Em contrapartida, nas baiucas dos bairros populares, as linguagens subversivas tinham livre-trânsito. No calão ou na gíria, o palavrão impunha-se à palavra ataviada, denunciando o avesso imoral de uma sociedade ideologicamente revestida de moralidade. Em versos improvisados, nem os padres devassos escapavam à acusação de atentar contra o pudor de virgens e mulheres casadas: “Foi proibido o casamento aos padres / Porém não lhes cortaram a minhoca / Por isso qualquer deles anda à coca / Das putas, das criadas das comadres.” A alcunha dada à cabeça pensadora (Caixa de cornos) indiciava a recorrência das infidelidades.

A diferenciação linguística acentuava clivagens de género, idade e estatuto. À amante era dado o nome de Encosto, Pechincha, Pêssega ou Pente; o idoso que assediava moças novas era Pivinha; mulher que sustentasse um amante era Marmita, Queijada a quantia desembolsada. Entre as meretrizes, de acordo com os seus atributos ou experiência, havia as Abelhas-mestras (donas de prostíbulos), as Pataqueiras (de baixa condição) e as Patrajonas (aficionadas aos soldados). Todas elas adoptavam nomes de guerra que, frequentemente, espelhavam atributos físicos (Adelaide Mamuda, Rita Bonita, Barbuda, Bela Loirinha, Adelaide Veterana). Traços comportamentais também se refletiam nas alcunhas. A Teresa do Pino adquiriu notoriedade por se desnudar com exóticos malabarismos corporais. O reboliço das ancas inspirava e excitava poetas: “Genoveva Fadistinha/ O cú abana tão bem / Que só de ver o manejo / A gente logo se vem”.

Alguns jovens ganham tamanha identificação com as alcunhas que acabam por usá-las nas redes sociais da Internet. Outros inventam nicknames que permitem a vindicação de um valor simbólico, exibido como atrativo sensual, erótico ou sexual: Garota Rebelde (porque acho legal e muito rebelde); Xoxoteiro (por gostar de aventuras sexuais); African queen (sou cabo-verdiana e escurita); Big Cock (por ter uma pénis grande); Tah Gatinha (por ser bonitinha); Miss Sorriso (por estar sempre a sorrir)

Entre os homens, as alcunhas identificavam valentões, fanfarrões, galantes e maricões. Gatunos, faquistas e meliantes tinham alcunhas como Mão de Ferro, Gato Assanhado, Rei das Cabeçadas, Facada, Mão Fatal, Carrasco e Fila-Todos. Fanfarrões afamados ganhavam alcunhas como Pimpão, Cabeça Falante, Papa-Fina ou Dr. Piroca. Nos galantes, também chamados pãezinhos, destacavam-se o Finório, o Catita, o Gatuno Elegante, o Bonitinho, o Avô dos Janotas ou o João das Pegas. Os mais expostos às alcunhas, alvos favoritos de escárnio social, eram os maricões, entre os quais o Luisinha Cocote, a Espanhola, a Chica dos Marujos, a Mariquinhas Saloia, a Marquesinha do Intendente, o Perpétua Cheirosa, a Vaidosa e muitos/as mais.

Os órgãos sexuais não escapavam às alcunhas. No caso do pénis, a virilidade pautava a categorização: de um lado, Abre-alas, Bilharda, Chicote da barriga ou Mangalho; de outro lado, Minhoca ou Piegas. No caso da vagina, tendo inventariado mais de meio milhar de registos, sobressaiu uma categoria reveladora dos poderes ocultos de quem é designada por Superpoderosa, Deusa, Milagrosa, mas também Libidinosa, Sinistra, ou Tentação do Diabo. Esses poderes não passaram despercebidos ao Tribunal do Santo Ofício quando, no Brasil seiscentista, identificou mezinhas feitas a partir das segregações do “vaso da mulher”. Numa pesquisa que realizei sobre o movimento das Mães de Bragança constatei que as prostitutas brasileiras também eram acusadas de seduzir os homens com um “chá de amarração” dessa mesma espécie.

3. Sendo artefactos de subjetividade, as palavras criam mundos de significado ao serem tricotadas nas interações quotidianas. Disso mesmo me dei conta numa pesquisa recente sobre o significado simbólico das alcunhas em escolas do ensino secundário de Portugal e Brasil (Estado do Ceará). No espaço escolar, a sexualidade aparece significativamente vinculada à imagem corporal. Dos pés à cabeça o corpo é uma fonte metonímica. Um jovem é apelidado Cabeção por ter cabeça grande; outro é Capuchinho Vermelho por corar com facilidade. Dentes de Mula recorreu a serviços odontológicos para corrigir as saliências dentais, pois a alcunha causava-lhe complexos. O tratamento resultou mas a alcunha não o abandonou. O corpo é investido como instrumento de sedução, num clima de disputas e conquistas. As moças são as mais penalizadas com as ousadias. Foi identificada uma Amiga fura olho (por roubar namorados) e uma Chiclete (por grudar nos meninos). Ainda no universo feminino, enquanto no Brasil a bunda aparece como referente mais invocado (dependendo do volume, Bunda Seca ou Mulher Melancia), em Portugal as alcunhas são mais estimuladas pelas mamas (Happy Boobs, Sweet Boobs ou Maxi Boobs). Circunstâncias acidentais podem também originar alcunhas. Uma jovem é Vaquinha porque dançou imitando uma vaca; outro é Braguilhas por uma vez se ter esquecido de apertar o fecho das calças. Alcunhas deste género cumprem uma função integrativa. Ao punirem comportamentos ridículos geram risos que apelam à ordem social.

Os órgãos sexuais não escapavam às alcunhas. No caso do pénis, a virilidade pautava a categorização: de um lado, Abre-alas, Bilharda, Chicote da barriga ou Mangalho; de outro lado, Minhoca ou Piegas. No caso da vagina, tendo inventariado mais de meio milhar de registos, sobressaiu uma categoria reveladora dos poderes ocultos de quem é designada por Superpoderosa, Deusa, Milagrosa, mas também Libidinosa, Sinistra, ou Tentação do Diabo

As orientações sexuais são também sinalizadas pelas alcunhas. As mais recorrentes retratam o sucesso ou a gabarolice dos rapazes, como o Kido delas (querido das meninas) ou o Playboy americano (come bué [muita] gaja e fala muito bem inglês). Alguns jovens portugueses dizem conviver bem com alcunhas de índole sexual potencialmente ofensivas, como Pilas (cara de pila [pênis]), Sexopata ou Frango (gay). Todavia, não sabemos se a aceitação verbalizada é real. O mesmo acontece no Brasil, com alcunhas como Laleska (veado, gay), Farofa (todo mundo mete a linguiça) ou Gilete (corta dos dois lados; bissexual). Uma Chichola Pilada (vagina depilada) diz não se importar com a alcunha que porta, nem uma Crica (considerada tarada sexual). Contudo, há alcunhas que não são bem aceites. É o caso de um jovem apelidado de Cocks (apanhado várias vezes a masturbar-se numa sala de aula).

Alguns jovens ganham tamanha identificação com as alcunhas que acabam por usá-las nas redes sociais da Internet. Outros inventam nicknames que permitem a vindicação de um valor simbólico, exibido como atrativo sensual, erótico ou sexual: Garota Rebelde (porque acho legal e muito rebelde); Xoxoteiro (por gostar de aventuras sexuais); African queen (sou cabo-verdiana e escurita); Big Cock (por ter uma pénis grande); Tah Gatinha (por ser bonitinha); Miss Sorriso (por estar sempre a sorrir). Por aqui vemos que a imagem corporal se inscreve numa produção discursiva onde as alcunhas cintilam códigos semânticos que descriminam distintas classes de identidades simbólicas.

Os professores também não fogem às alcunhas de cunho sexual. No Brasil temos, por exemplo, um Sexy (diz que tem excesso de gostosura), um Espermatozoide (tem uma cabeçona e é bem magrinho) e um Robocope Gay (é gay). Em Portugal, surgem também vários perfis: Toda Boa (professora boa e sexy), Borracho (o stor é um borracho), Gostosão (tem um corpo lindíssimo), Tusas (estava de pau feito nas aulas), Lésbica (tem um site a admitir que é lésbica), Piroca (olha muito para os meninos), Pedófilo (tem atos de pedófilo) ou Putinha (vem para a escola muito produzida e anda em cima dos rapazes).

[…] as alcunhas são preciosos instrumentos de aferição do modo como as identidades juvenis são construídas em contexto escolar. Elas sinalizam também tensões quanto à aceitação de diferentes orientações sexuais, para além de revelarem faces ocultas da realidade escolar, como o uso de salas de aula para práticas de masturbação, manifestações subtis de assédio e bullying sexual

4. Concluindo, vimos que as alcunhas são preciosos instrumentos de aferição do modo como as identidades juvenis são construídas em contexto escolar. Elas sinalizam também tensões quanto à aceitação de diferentes orientações sexuais, para além de revelarem faces ocultas da realidade escolar, como o uso de salas de aula para práticas de masturbação, manifestações subtis de assédio e bullying sexual.

No seu conjunto, e tendo também em conta as incursões realizadas pela Lisboa boémia do século XIX, as alcunhas de teor sexual exploram importantes conexões entre linguagem, sexualidade e sociedade. Sendo emanações da vida social, as alcunhas não integram um sistema arbitrário. Produzem-se no mundo de que fazem parte. Escondem e revelam enigmas que deslizam dos atos de nomeação para as coisas nomeadas, e vice-versa. Por isso mesmo, constituem um tesouro de conhecimento por explorar.

Bibliografia

Autor Anónimo, Dicionário das Alcunhas Alfacinhas. Lisboa, Livros Horizonte, 2001.

Pais, José Machado, A Prostituição e a Lisboa Boémia do séc. XIX aos Inícios do séc. XX. Lisboa, Editorial Querco, 1985 (Porto, Âmbar, 2008).

Pais, José Machado, “Mães de Bragança e feitiços: enredos luso-brasileiros em torno da sexualidade”, Revista de Ciências Sociais, Universidade Federal do Ceará, volume 41, número 2, 2010, pp. 9-23.

Pais, José Machado, Sexualidade e Afectos Juvenis. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2012.

Pais, José Machado, “Das nomeações às representações: os palavrões numa interpretação inspirada por H. Lefebvre”, Etnográfica, vol. 19 (2), 2015, pp. 267-289.

Pais, José Machado, Enredos sexuais, Tradição e Mudança: as mães, os zecas e as sedutoras de além-mar. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais. 2016.

Pais, José Machado, “A simbologia dos apelidos na vida cotidiana escolar”, Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 43, n. 3, jul./set. 2018, pp. 909-928.