Bissexualidade: Até quando uma sexualidade invisível?


Bissexualidade: Até quando uma sexualidade invisível?

Uma reflexão de…
Mafalda Esteves, doutoranda em Psicologia no ISCTE-IUL (Projeto de investigação: “Sexualidades invisíveis: Cidadania Intima e bem-estar psicossocial na Bissexualidade”).

 

Percurso 
Gestora de projeto no “INTIMATE — Citizenship, Care and Choice: The Micropolitics of Intimacy in Southern Europe”, no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. Mestre em Intervenção Psicossocial pela Universitat de Barcelona e Licenciada em Psicologia (Social) pela Universidade de Coimbra. Interessa-se por teorias queer, estudos de género, movimentos sociais e participação cívica e práticas artísticas promotoras de empowerment.

 

Data
5 de julho de 2018

Nas últimas décadas temos assistido em Portugal a um conjunto de desenvolvimentos em matéria jurídico-legal que têm contribuído decisivamente para impor uma noção dos Direitos Sexuais enquanto Direitos Humanos. São inquestionáveis os esforços feitos nessa direção. A prova disso é que, de acordo com os dados da ILGA-Europe, Portugal é considerado o 5º país da Europa e o 7º a nível mundial mais avançado em matéria de igualdade e respeito pelos direitos humanos. Importa aqui destacar que este sucesso foi conseguido graças aos movimentos sociais, em especial aos movimentos feminista e LGBTQ, que lutam em prol da igualdade sexual e que compuseram um marco pioneiro de batalha simbólica que avançou com a noção de que o “pessoal é, de facto, político” (Giddens, 1992).

Sem este esforço de organização e mobilização coletiva o caminho teria sido, sem dúvida, mais lento. As instituições supranacionais (Comissão Europeia e Parlamento Europeu) tiveram também um importante papel, ao recomendar a inclusão de princípios e linhas orientadoras neste sentido a todos os Estados-membros, possibilitando àqueles/as que se situam fora da norma social hegemónica de sexualidade (isto é, a heterossexualidade), que passem a ser vistos e reconhecidos como cidadãos/ãs plenos/as (Phelan, 2001; Richardson, 1998; Bell & Binnie, 2000).

Apesar da população de lésbicas, gays, bissexuais, transgénero, queer (LGBTQ) passar a ser reconhecida e legitimada (pelo menos do ponto de vista legal), numa sociedade heteronormativa (assente no pressuposto social universal, segundo o qual “somos todos heterossexuais até prova em contrário”) o heterossexismo (ou seja, a presença da ideia de casal hegemónico reprodutivo, heterossexual e monogâmico) e a discriminação com base na orientação sexual e na identidade de género continuam a ser uma realidade bastante presente em diversos países, incluindo no nosso.

Certamente que a discriminação social assumirá formas distintas de acordo com o contexto sociocultural em que se encontra mas, em todo o caso, atravessa as vidas da população LGBTQ no dia a dia, inclusive, em contextos institucionais como no sistema de saúde público.

Ao pensar nos estereótipos sociais negativos em torno das pessoas que se definem como bissexuais, vários estudos mostram que é comum estarem associadas a um conjunto de ideias: são pessoas “promíscuas”, são “sexualmente insatisfeitas”, “obcecadas sexualmente”, incapazes de se comprometer em relacionamentos, o que significa que são frequentemente vistas como uma opção de parceiro não confiável e instável, de alguém que não sabe exatamente o que quer

Apesar de existirem problemáticas que dizem respeito à população LGBTQ enquanto um todo, hoje, gostaria de vos convidar a pensar sobre uma letra do acrónimo LGBTQ. Uma letra que é referida habitualmente mas sobre a qual pouco nos detemos. Refiro-me à letra B que diz respeito à Bissexualidade.

Ao longo do tempo e até aos dias de hoje, a bissexualidade continua a ser um tema que gera alguma controvérsia. Por um lado, é objeto de questionamento e problematização junto da comunidade científica, nomeadamente em campos como a sexologia, psicologia e as ciências sociais. Como consequência tem sido altamente negligenciada, o que têm conduzido a que a produção científica sobre o tema seja ainda limitada. Por outro lado, culturalmente, enquanto sexualidade não heteronormativa, a bissexualidade tem ocupado um lugar precário, sendo percebida quer como uma sexualidade “invisível” quer como uma sexualidade “omnipresente” remetendo-a deste modo para um lugar simbólico e ideológico que dificulta a possibilidade de a imaginar.

Nas sociedades ocidentais, o termo “bissexual “aplica-se com frequência a qualquer pessoa que sinta atração sexual, emocional e/ou romântica por pessoas de mais do que um género ou cuja atração se baseie em características para além do género (Monro, 2005; 2015). É, contudo, habitual ouvir que a palavra “bissexual” implica a existência de unicamente 2 géneros/sexos e que pode contribuir para perpetuar uma lógica binária, não obstante, a verdade é que, desde o ativismo bissexual se têm recolhido todas as realidades de género e sexo e o termo é utilizado como um termo guarda-chuva para incluir diferentes formas de viver a atração por pessoas de mais do que um género/sexo. Ainda assim, não há consenso, existindo debate sobre este assunto e a utilização da palavra “pansexual”. No entanto, deixarei esse debate para um outro momento (mais informação: Hemmings, 2002).

Enquanto sexualidade não heteronormativa, a bissexualidade convida-nos a pensar sobre as expectativas sociais dirigidas ao género, sexualidades e à orientação sexual, que marcam o modo como concebemos e organizamos a sexualidade contemporânea. De igual modo, ao romper com a ideia de que as identidades sexuais são estáveis, fixas e que o desejo e a atração sexual ou emocional se dirigem a pessoas de um único género, mas nunca a ambos géneros, a bissexualidade permite-nos questionar a ideia da “monossexualidade obrigatória” (James,1996) enquanto um “regime de verdade”, que dita o modo como concebemos a noção de sexualidade. Nesse sentido, ao romper com a lógica binária e dicotómica que caracteriza as noções culturais modernas da sexualidade, possibilita a desconstrução dos binarismos – mesmo género/género oposto (Angelides, 2001; Firestein, 1996; Storr, 1999) e – heterossexual/homossexual – revelando, deste modo, a capacidade de incluir a experiência de desejo fluído ou de múltiplos desejos.

Para aqueles/as que se definem como bissexuais, é consensual que a bissexualidade, enquanto identidade, é algo legítimo e representa uma atração genuína por um conjunto diverso de indivíduos. Quero contudo salientar, que em termos identitários, existe uma grande diversidade dentro do grupo de pessoas que abraçam a “etiqueta” de bissexualidade. Logo, não estamos a sugerir que existe unicamente uma experiência de bissexualidade: algumas pessoas que se definem como bissexuais experimentam-na enquanto identidade mutável e fluída, outras enquanto identidade fixa, e outras, inclusive, resistem a uma clara definição de bissexualidade.

A maior parte da investigação na área LGBTQ tem explorado sobretudo os efeitos nefastos da opressão e discriminação ou negação das intimidades lésbicas e de homens gays (Carrington, 1999; DeCecco, 1988; Weeks, Donovan, & Heaphy, 1996; Weeks, Heaphy, & Donovan, 2001). A bissexualidade ora é ignorada, ora é simplesmente assimilada nessas categorias (Rust, 2000), como se a população LGBTQ correspondesse a uma categoria homogénea.

[…] a bifobia tem recebido menos atenção do que a homofobia (termo regularmente usado de forma abrangente para denominar e capturar todas as formas de preconceito social contra a população LGBTQ), apesar de não conseguir captar de forma adequada as expressões em que a discriminação social é experimentada pelas pessoas bissexuais, uma vez que diferem daquilo que é experimentado pela população lésbica e gay. As pessoas bissexuais experimentam bifobia e homofobia

Sabemos que as pessoas geralmente “pagam um preço” quando publicamente assumem uma identidade não heterossexual. Quero, por isso, centrar-me nos principais desafios e obstáculos que as pessoas que se definem como bissexuais experimentam no dia-a-dia, muitas vezes em silêncio. Grande parte dos problemas enfrentados pela população LGBTQ devem-se a um conjunto de ideias estereotipadas e preconceitos enraizados na sociedade. No entanto, podemos certamente afirmar que a comunidade bissexual se depara com uma situação particular.

Ao pensar nos estereótipos sociais negativos em torno das pessoas que se definem como bissexuais, vários estudos (Barker et al.,2008; Klesse, 2011; Rust, 2000) mostram que é comum estas estarem associadas a um conjunto de ideias: são pessoas “promíscuas”, “sexualmente insatisfeitas”, “obcecadas sexualmente”, incapazes de se comprometer em relacionamentos, o que significa que são frequentemente vistas como uma opção de parceiro não confiável e instável, alguém que não sabe exatamente o que quer. Por outro lado, a ideia de que a bissexualidade é apenas uma “fase” e que não existe enquanto identidade (Zinik, 1985) encontra-se associada à experiência da população bissexual. Em simultâneo esta população também experimenta invisibilização e apagamento que os ativistas bissexuais percebem como falta de legitimação e reconhecimento e que impede o exercício de uma cidadania íntima plena.

Podemos então, utilizar o termo bifobia (Ochs, 1996) ou bi-negatividade como outros autores preferem apelidar, quando nos referimos ao conjunto de atitudes, comportamentos e estruturas negativas relativamente a pessoas bissexuais (Monro, 2015). Enquanto fenómeno estrutural de opressão, a bifobia tem recebido menos atenção do que a homofobia (termo regularmente usado de forma abrangente para denominar e capturar todas as formas de preconceito social contra a população LGBTQ), apesar de não conseguir captar de forma adequada as expressões em que a discriminação social é experimentada pelas pessoas bissexuais, uma vez que diferem daquilo que é experimentado pela população lésbica e gay. As pessoas bissexuais experimentam bifobia e homofobia. Se pensarmos no ambiente hostil que envolve esta população compreenderemos facilmente porque se relata nalgumas ocasiões dificuldade em fazer o coming out como bissexual optando por manter a sua identidade sexual escondida por medo do estigma e da marginalização social.

Em resumo, na maioria das sociedades, a diversidade de género não é tolerada e as estruturas sociais perpetuam o apagamento da fluidez de género e das identidades não masculinas/femininas (Monro, 2005), mas se pensarmos na realidade das pessoas que se definem como bissexuais e na bissexualidade enquanto identidade legítima e permanente, torna-se essencial e urgente destapar as experiências de estigma e de marginalização social desta população, de maneira a que a qualidade de vida e bem-estar da mesma esteja assegurada, sendo tarefas de todos/as que a cidadania íntima plena, assente em visibilização e legitimação social, se consiga.

 

Referências bibliográficas

  • Angelides, S. (2001). A history of [bi]sexuality. Chicago, IL: University of Chicago Press.
  • Barker, M., Bowes-Catton, H., Iantaffi, A., Cassidy, A., & Brewer, L. (2008). British bisexuality: A snapshot of bisexual identities in the UK, Journal of Bisexuality, 8 (1&2): 141-162.
  • Bell, D. and J. Binnie. (2000). The Sexual Citizen: Queer Politics and Beyond. Oxford: Polity.
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  • DeCecco, J. (Ed.). (1988). Gay relationships. London, UK: Harrington Park Press.
  • Donovan Heaphy & Weeks (2001). Same Sex Intimacies: Families of Choice and Other Life Experiments. London: Routledge.
  • Firestein, B. (1996). Bisexuality: The psychology and politics of an invisible minority. London: Sage Publications Ltd.
  • Giddens, A. (1992). The transformation of intimacy. Cambridge: Polity Press.
  • Hemmings, C. (2002). Bisexual spaces: a geography of gender and sexuality. London: Routledge.
  • Klesse, C. (2011). Shady characters, untrustworthy partners, and promiscuous sluts: Creating bisexual intimacies in the face of heteronormativity and biphobia. Journal of Bisexuality (11), pp. 227-244. doi: 10.1080/15299716.2011.571987.
  • Monro, S. (2005). Gender Politics. London: Pluto Press.
  • Monro, S. (2015). Bisexuality: Identities, Politics, and Theories. Basingstoke: Palgrave Macmillan.
  • Ochs, R. (1996). Biphobia. In B. A. Firestein (Ed.) Bisexuality: The psychology and politics of an invisible minority (pp. 217-139). London: Sage.
  • Phelan, S. (2001). Sexual Strangers: Gays, Lesbians, And Dilemmas of Citizenship. Philadelphia: Temple University Press.
  • Richardson, D. (1998). Sexuality and Citizenship. Sociology 32(1): 83-100; doi: 10.1177/0038038598032001006.
  • Rust, P.C. (2000). Bisexuality in the United States: A Social Sciences Reader. New York: Columbia University Press.
  • Storr, M. (Ed.) (1999). Bisexuality: A critical reader. London: Routledge.
  • Weeks, J., Donovan, C., & Heaphy, B. (1996). Families of choice: Patterns of non- heterosexual relationships. A literature review (Social Science Research Papers No. 2). London, UK: Southbank University, School of Education and Social Science.
  • Zinik, G. A. (1985). Identity conflict or adaptive flexibility? Bisexuality reconsidered. Journal of Homosexuality, 11(1/2): 7–19.