Da autodeterminação à despatologização – o direito à saúde transgénero no quadro do direito à saúde sexual
Uma reflexão de…
Júlia Mendes Pereira, Presidente e codiretora da Ação Pela Identidade. Linkdin. Medium.
Percurso
É cogestora do projeto #ESTAÉAMINHALISBOA e está a escrever uma dissertação sobre transfeminismos no Brasil e em Portugal. Tem sido uma das vozes mais destacadas pelo direito à autodeterminação de género em Portugal. Participou em campanhas como #ANOGISBERTA ou #DIREITOASER (da responsabilidade do governo português).
Data
2 de Agosto de 2018
Autodeterminação de género como parâmetro jurídico-legal
Em Portugal, tem vindo a ser feito um debate alargado sobre “autodeterminação da identidade de género e expressão de género”, ou simplesmente “autodeterminação de género”. Este foi um debate iniciado pela sociedade civil, a partir das próprias pessoas trans, geralmente organizadas em associações ou grupos informais, como a Ação Pela Identidade, o GTP, o GRIT ou, mais recentemente, a Transmissão, e que foi acompanhado por alguns partidos, como é o caso daqueles que compõem a atual maioria parlamentar que sustenta o governo (PS, BE, PCP e PEV), além do PAN, que aprovaram no dia 12 de julho de 2018, a nova redação do Decreto 203/XIII (1) da Assembleia da República (que já tinha sido votado pelo parlamento a 13 de abril, e recebido um veto presidencial a 9 de maio), e que tem na sua base uma proposta de lei do governo e dois projetos de lei, um do BE e outro do PAN.
As reivindicações iniciais dos movimentos trans (de transgénero, ou de transexual) foram estrategicamente construídas em torno de pedidos para que a Lei 7/2011 de 15 de março, em vigor até à promulgação e posterior publicação da nova lei, que permite a pessoas com cidadania portuguesa e maiores de idade o reconhecimento jurídico do género – que é como quem diz, a alteração da menção ao género e do nome próprio nos registos e documentos de identificação – desde que apresentem um diagnóstico de “perturbação de identidade de género”. A intenção dos movimentos era que esta lei, vulgarmente chamada de “Lei da identidade de género”, fosse alterada e passasse a basear-se exclusivamente na vontade autodeterminada das pessoas requerentes.
Como foi várias vezes sinalizado (2), as alterações poderiam ser balizadas tanto por soluções legislativas assumidas noutros países (nomeadamente Argentina e depois Dinamarca, Malta, Irlanda, Noruega ou Bélgica), como por recomendações internacionais como as do Conselho da Europa ou do Parlamento Europeu, às quais Portugal está afeto enquanto estado-membro. Essas recomendações são claras e exigem que os procedimentos de reconhecimento jurídico de género sejam rápidos, transparentes e acessíveis; assim como baseados na autodeterminação – ou seja: que dispensem o parecer obrigatório de terceiros (incluindo pareceres clínicos) e que sejam encarados como meros atos de registo civil realizados unicamente pela pessoa interessada.
[…] o presente debate sobre os direitos transgénero não está a chegar ao fim. Muito pelo contrário, está a chegar ao seu momento mais decisivo, que é aquele em que o diálogo entre as pessoas trans e a comunidade clínica tem necessariamente de atingir um novo patamar
Em Portugal, o reconhecimento jurídico do género já é um mero ato de registo civil desde a entrada em vigor da Lei de 2011. No entanto, o procedimento não dispensa os ditos pareceres de terceiros – mais especificamente, de 2 profissionais de saúde (1 de medicina e 1 de psicologia). Uma das espinhas dorsais da Lei agora aprovada pelo parlamento é precisamente o despatologizar deste ato de registo civil, livrando-o de tais pareceres clínicos (a outra espinha dorsal é a proteção das características sexuais das pessoas intersexo, temática distinta e que tem sido ostensivamente ofuscada e negligenciada nos debates), mesmo que a sua redação final o faça apenas para pessoas com mais de 18 anos.
Mas o que significa então “despatologizar”? Muitas pessoas perguntam: “despatologizar o ato civil não irá comprometer o acesso das pessoas trans aos tratamentos clínicos (terapias hormonais, intervenções cirúrgicas, etc.) que muitas vezes têm requerido?” A resposta simples é: não. Não, porque a proposta legislativa que temos em cima da mesa não interfere em quaisquer critérios de diagnóstico existentes, ou que possam vir a existir, respeitantes à identidade e expressão de género. Nesse quesito, a única coisa que faz é remeter para a Direção-Geral de Saúde (DGS), que é quem gere o Serviço Nacional de Saúde, a elaboração de um «modelo de intervenção na área da saúde definido através de orientações e normas técnicas em matéria de identidade e expressão de género, e características sexuais», que poderá esclarecer o acesso a tais tratamentos clínicos, que o Estado deverá garantir a partir de “serviços de referência ou unidades especializadas”.
A aplicabilidade destas orientações e normas técnicas irá estender-se às características sexuais e às pessoas intersexo, mas aí o debate ainda está quase por se fazer, não sendo clara a intenção do legislador. Espera-se, no entanto, que resulte em modelos de intervenção totalmente distintos. Já no que toca às pessoas trans, embora esta medida seja louvável, no sentido em que irá garantir uma maior transparência no acesso a cuidados de saúde e a procedimentos de afirmação do género, esta medida falha completamente na resposta aos pedidos dos movimentos trans por uma despatologização do acesso aos cuidados de saúde. Ou, no mínimo, por uma despsicopatologização.
O acesso aos cuidados de saúde e procedimentos de afirmação do género deixarão, portanto, de ser baseados num diagnóstico de psiquiatria (saúde mental), para passarem a ser baseados num diagnóstico de saúde sexual. Embora o termo “incongruência de género” se mantenha vastamente estigmatizante (haverão, portanto, géneros congruentes e géneros incongruentes), o estigma de perturbação mental é eliminado, assim como o equívoco que tem colocado as pessoas trans numa espécie de limbo patológico
A prioridade da despsicopatologização da saúde (trans)sexual
O debate pela despatologização do acesso a cuidados de saúde e procedimentos de afirmação do género – que, como já entendemos, é diferente da despatologização do procedimento de alteração da menção ao género e do nome próprio no registo civil – tem sido feito sobretudo ao nível internacional. Isto é bastante compreensível se tivermos em conta que as categorias de diagnóstico são definidas internacionalmente por autoridades como a Organização Mundial de Saúde (OMS) ou a Associação Americana de Psiquiatria (APA, que extrapola em muito o seu âmbito geográfico, constante na sua denominação). Mais uma vez, este é um debate iniciado na sociedade civil, a partir das próprias pessoas trans – organizadas internacionalmente com estruturas como a campanha STP – Stop trans pathologization ou o grupo de pressão Global action for trans equality (GATE) – e que tem sido acompanhado por organizações tão relevantes quanto o Parlamento Europeu, ou a própria OMS; além de governos nacionais como os da Argentina (2012), Dinamarca (2014) ou Malta (2016).
O acesso a cuidados de saúde e procedimentos de afirmação do género tem sido feito, sobretudo, a partir de duas categorias de diagnóstico: a chamada “perturbação de identidade de género” (até 2013) ou “disforia de género” (desde 2013), constante no Manual de Estatísticas e Doenças Mentais (DSM) da APA, e a chamada “transexualismo” ou “transexualidade”, constante no capítulo de doenças mentais da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da OMS. Mais do que patologização, estamos a falar de psico-patologização. Embora as pessoas trans que procuram cuidados de saúde e procedimentos de afirmação de género tenham vindo a ser classificadas com um diagnóstico de doença mental, o único critério que se tem mostrado universalmente aceite para a elaboração deste diagnóstico é que as pessoas trans garantam possuir uma plena saúde mental. Isso mesmo, para que seja atribuído um diagnóstico de “perturbação de identidade de género” ou de “transexualidade” a uma pessoa trans, ela tem de provar que não padece de nenhuma doença mental ou, padecendo, que a mesma se encontra clinicamente controlada e não deturpa a perceção que a pessoa tem da sua própria identidade.
Falamos, portanto, de um equívoco – há quem defenda que foi bem-intencionado, visto ter sido a única forma de criar um diagnóstico que permitisse o acesso à afirmação de género de forma concordante com a ética médica – que, no entanto, começa a resolver-se, nomeadamente através da nova edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) da OMS (3), publicada a 18 de junho de 2018, e que eliminou a categoria de diagnóstico de “transexualidade”, e criou uma nova, de “incongruência de género”, que consta no novo capítulo dedicado às “condições de saúde sexual”.
Muitas pessoas perguntam: “despatologizar o ato civil não irá comprometer o acesso das pessoas trans aos tratamentos clínicos (terapias hormonais, intervenções cirúrgicas, etc.) que muitas vezes têm requerido?” A resposta simples é: não. Não, porque a proposta legislativa que temos em cima da mesa não interfere em quaisquer critérios de diagnóstico existentes, ou que possam vir a existir, respeitantes à identidade e expressão de género
O acesso aos cuidados de saúde e procedimentos de afirmação do género deixarão, portanto, de ser baseados num diagnóstico de psiquiatria (saúde mental), para passarem a ser baseados num diagnóstico de saúde sexual. Embora o termo “incongruência de género” se mantenha vastamente estigmatizante (haverão, portanto, géneros congruentes e géneros incongruentes), o estigma de perturbação mental é eliminado, assim como o equívoco que tem colocado as pessoas trans numa espécie de limbo patológico.
Em Portugal, quando a lei de “direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção às características sexuais” entrar em vigor, a DGS terá de elaborar um modelo que corresponda ao novo enquadramento criado pela OMS, e que garanta que o acesso aos cuidados de saúde e procedimentos de afirmação de género não fiquem dependentes de avaliação psiquiátrica – o que não significa, obviamente, que o apoio psicológico para as pessoas trans que o necessitem fique comprometido.
Sobre os cuidados de saúde e procedimentos de afirmação de género, há ainda uma reflexão que deverá ser feita. Afinal, para que o acesso a esses cuidados possa ser eficiente, é indispensável que esses cuidados possuam uma existência de facto (e não apenas de jure). Em 2011, após a já referida “Lei de identidade de género”, foi criada a Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual (URGUS), em Coimbra, com o objetivo de responder às necessidades clínicas das populações trans (e também intersexo), que tem enfrentado algumas críticas – entre as quais, a necessidade de aumentar a oferta no sul do país. O modelo de intervenção da Direção-Geral de Saúde deverá, além de clarificar o acesso, clarificar a oferta disponível, e ainda definir as formas de monitorização da qualidade da mesma – monitorização essa que deve ser periodicamente tornada pública, assim como envolver direta e ativamente o seu público-alvo (por exemplo, através das associações em torno das quais as pessoas trans se têm organizado).
Em jeito de conclusão, pode dizer-se que o presente debate sobre os direitos transgénero não está a chegar ao fim. Muito pelo contrário, está a chegar ao seu momento mais decisivo, que é aquele em que o diálogo entre as pessoas trans e a comunidade clínica tem necessariamente de atingir um novo patamar. Em tempos recentes (que é como quem diz, pós-projetos de lei sobre autodeterminação), a Ordem dos Médicos deu um passo importante ao organizar uma “reunião de consenso sobre diversidade de género” (a 9 de outubro de 2017), onde fui a única pessoa transgénero presente – estava presente também um único representante das pessoas intersexo, Santiago M’banda Lima. É necessário ir mais longe. É necessário ouvir e construir modelos abertos à participação das próprias pessoas que serão afetadas por essas orientações e normas técnicas. A autodeterminação deve também servir de base a um avanço científico e tecnológico na área da saúde.
NOTAS
(1) A discussão parlamentar em torno da autodeterminação de género e da proteção das características sexuais, incluindo as audições em sede de especialidade da Ação Pela Identidade (representada por mim) e do Santiago M’banda Lima (em representação das pessoas intersexo), além de outras entidades e especialistas, pode ser encontrada em http://parlamento.pt
(2) A Ação Pela Identidade sistematizou as suas posições relativas à autodeterminação de género num dossier intitulado Este é o meu género. Pelo direito à autodeterminação de género, que pode ser consultado em http://apidentidade.pt
(3) A CID-11 será apresentada em maio de 2019 perante a Assembleia Mundial de Saúde, para ser adotada pelos estados-membro e entrar em vigor em janeiro de 2022. A edição agora publicada está disponível em http://icd.who.int/