Saúde perineal e sexualidade na mulher


Saúde perineal e sexualidade na mulher

À conversa com…
Soraia Coelho, Fisioterapeuta Especialista em Reabilitação Pélvica e Uroginecológica

 

Percurso 
Licenciada em Fisioterapia, pós graduada em Fisioterapia na Saúde da Mulher (Escola Superior de Saúde de Alcoitão), mestre em Sexologia (Universidade Lusófona). Diversas formações na área de Reeducação perineal e Pelviperineologia.

 

Entrevista
Isabel Freire

 

Data
27 de Setembro de 2018

 

 

Soraia Coelho é fisioterapeuta. Especializou-se em Reabilitação Pélvica e Uroginecológica. Ajuda mulheres a re/conhecer e a fortalecer a musculatura pélvica, parte do corpo essencial para a sua saúde sexual. Algumas chegam-lhe com disfunções sexuais. Outras com incontinência urinária ou fecal, muitas vezes vividas com medo e vergonha. Considera que em Portugal persiste a desvalorização social (e nalguns casos médica) dos problemas da saúde pélvica, que afetam mulheres em fases diferentes da vida. Para a fisioterapeuta a aposta na prevenção é fundamental.

Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica – Em que momentos do desenvolvimento da mulher faz sentido uma abordagem sobre a saúde perineal?

Soraia Coelho – Em qualquer fase da vida. Devemos cuidar da saúde perineal, como cuidamos de outros aspectos da nossa saúde física ou mental. Podemos abordá-la de forma preventiva, minimizando possíveis consequências do parto. Podemos prevenir lesões do pavimento pélvico, em atletas de alta competição. Em França, todas as mulheres são avaliadas no pós parto. Em caso de necessidade, realizam tratamento de reabilitação (comparticipado) para fortalecer e desenvolver a funcionalidade dos músculos pélvicos. A Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, oferece um serviço de avaliação pélvica em caso de partos traumáticos. Mas as listas de espera são enormes, e são poucos os profissionais. Em Portugal temos de olhar para as bases dos cuidados de saúde pélvicos, e melhorar a prevenção. A abordagem e intervenção sobre a saúde perineal deve ser realizada por fisioterapeutas especializados na área de reabilitação pélvica e uroginecológica.

E na menopausa…

Com a diminuição de estrogénio circulante, ocorre uma flacidez que pode levar a incontinência urinária/fecal, prolapsos e dispareunia. Podemos ajudar a evitar estas situações. Mas é preciso uma mudança no paradigma. É preciso mudar a ideia de que é normal e comum acontecerem estes problemas nesta idade. E a ideia de que não há nada a fazer. Até porque não é de todo verdade. Apesar de ainda existir um tabu em torno da saúde perineal, as mulheres estão mais conscientes do seu corpo. E exigem melhores cuidados de saúde.

[…] por vezes os profissionais não ouvem ativamente as queixas das utentes. Se uma mulher se encontra na menopausa e se queixa de dor, sim é comum, mas não significa que não possamos melhorar a qualidade de vida sexual

SPSC – Há atividades desportivas comuns que sejam particularmente benéficas para a musculatura perineal feminina?

SC – Depende sempre de diversos fatores (aptidão física, genética, paridade, tipo de partos, idade, etc.). Em geral, são benéficos os exercícios que impliquem baixo impacto e que não forcem uma hiperpressão na zona abdominal, sobre os músculos pélvicos. É famosa a fotografia da atleta francesa Emilie Le Pennec em que se revela a perda de urina durante um salto, nos jogos olímpicos. Muitas destas situações ocorrem por falta de treino desta área específica. Os desportos em que queixas de perda urinária são mais recorrentes são o Crossfit, trampolim, corrida. Exercícios como Ioga, Pilates, Tai Chi, técnica abdominal hipopressiva, revelam-se benéficos nas disfunções pélvicas. Aliás, se a mulher sofrer de disfunção sexual, o trabalho hiperpressivo (quando fazemos demasiada força com o abdómen) está completamente desaconselhado.

SPSC – Podemos evitar problemas dos órgãos pélvicos com exercícios simples, realizados em casa?

SC – Imaginemos que o nosso tronco é um cilindro. O diafragma é a parte de cima. A musculatura pélvica é a parte inferior. A bexiga, o útero e o intestino encontram-se acima da/apoiados na camada muscular do pavimento pélvico. Ter estes músculos fortes dá-nos controle sobre estes órgãos e sobre a nossa sexualidade. Se apresentamos fraqueza dos músculos do pavimento pélvico, significa que os órgãos internos não estão a ser totalmente suportados e poderá haver dificuldade em controlar a urina, fezes e/ou flatulência. Além disso, os orgasmos não serão tão intensos.

Os exercícios de Kegel fortalecem os músculos do pavimento pélvico. Podem ser realizados a qualquer hora e em qualquer lugar. No entanto, nem todas as mulheres os podem fazer. As que sofrem de dor durante o ato sexual, possivelmente terão uma hipercontractibilidade (hiperatividade) dos músculos do pavimento pélvico, e estes exercícios podem exacerbar a sintomatologia. Aconselho sempre a procurar um profissional de saúde especializado se quiser aprender a contrair corretamente os músculos. No entanto, poderá realizar 2 séries de 8 a 10 contrações (mantidas por um período máximo de 8 segundos), e duas séries de 8 a 10 contrações (rápidas), duas a três vezes por semana (alguns sites listados no final da entrevista possuem dicas de exercícios).

[…] perdas urinárias ou fecais no pós parto imediato são comuns, mas se passados 3 a 4 meses o problema persiste, é importante avaliar e perceber a sua origem

SPSC – Que situações/circunstâncias são potencialmente lesivas da saúde dos órgãos pélvicos femininos?

SC – Algumas pessoas correm mais risco de desenvolver problemas no pavimento pélvico. Os fatores de risco incluem: gravidez ou pós parto; partos instrumentalizados ou traumáticos; mulheres que estão ou já passaram pela menopausa; mulheres que fizeram cirurgia ginecológica (por exemplo, histerectomia), atletas de elite e alta competição (por exemplo ginastas). Entre os fatores que podem aumentar o risco de uma mulher desenvolver problemas no pavimento pélvico estão: história de dor nas costas; trauma anterior na região pélvica, como queda ou radioterapia pélvica; obstipação crónica; tosse ou espirro crónicos (devido a asma, tabagismo ou alergias); estar acima do peso recomendado, ou ter um índice de massa corporal acima de 25; levantamento de pesos regular.

SPSC – Sabemos quais são as problemáticas pélvicas mais recorrentes na mulher, em Portugal?

SC – A Associação Portuguesa de Urologia indica que a incontinência urinária afeta 1 em cada 5 portugueses com mais de 40 anos, sendo que apenas 10% recorre ao médico. Na disfunção sexual, a sua prevalência é elevada (25% a 63%) e está associada a diversos fatores. No entanto, apenas 11% a 30% das mulheres procuram ajuda profissional e 68% revelam-se satisfeitas com o seu relacionamento sexual global. A grande maioria não se sente ouvida pelos profissionais. Relembro que persistem crenças sociais que é tudo normal. Se as nossas mães e avós passaram pelo mesmo, porque não haveríamos nós de passar? Esta é uma ideia errada.

SPSC – Quando lhe chegam mulheres com dificuldades pélvicas, para fazer reabilitação, que emoções e sentimentos revelam frequentemente?

SC – Um dos maiores sentimentos é a vergonha e o desespero. Muitas levam anos até pedir ajuda. Em muitos casos foi-lhes dito que é normal. No caso das disfunções sexuais, também encontro muita culpabilização. Porque sentem que não conseguem manter uma vida sexual ativa e prazerosa. Porque sentem pressão dos companheiros. Porque são mal informadas por profissionais de saúde. Em muitos casos existe uma total ausência de avaliação física, para se realizar um diagnóstico correto.

No que toca à saúde pélvica, por vezes os profissionais não ouvem ativamente as queixas das utentes. Se uma mulher se encontra na menopausa e se queixa de dor, sim é comum, mas não significa que não possamos melhorar a qualidade de vida sexual.

Outro dos grandes tabus da nossa sociedade é a incontinência fecal. Na grande maioria das vezes é vivida em total segredo.

Apesar de ainda existir um tabu em torno da saúde perineal, as mulheres estão mais conscientes do seu corpo. E exigem melhores cuidados de saúde

SPSC – Na reabilitação perineal, entre terapeuta e paciente, há questões particularmente delicadas, cuidados acrescidos, preocupações deontológicas, que é preciso ter em conta?

SC – Acima de tudo temos que respeitar o corpo da mulher que se apresenta à consulta. A avaliação ginecológica é importante, mas se a mulher nesse dia não se sente capaz, não devemos forçar. É fundamental manter a utente tapada, sempre que possível, e expô-la apenas o necessário. É importante explicar cada toque, cada movimento. Informá-la de todos os passos do tratamento, sem nunca esquecer o consentimento informado. Por vezes, é difícil manter um distanciamento profissional. O terapeuta é visto como confidente, porque as sessões são muito intimas e intimistas. Daí a importância de se trabalhar sempre em conjunto com um sexólogo e nunca de forma individual.

SPSC – Que problemáticas perineais femininas prejudicam a vivência da sexualidade, e em que medida?

SC – Todas as que já foram referidas. Se a mulher tiver tido um parto vaginal que envolveu episiotomia ou laceração, a cicatriz pode desencadear dor durante a penetração, assim como alterações significativas na funcionalidade dos músculos pélvicos. Na incontinência, a vergonha sentida pelas perdas urinárias pode levar a que a mulher se torne ‘reclusa’ de si mesma, não se envolvendo intimamente. Há medo de perdas ou do odor da urina. No caso da incontinência fecal também. A envolvência sexual pode ser acompanhada de medo de não se conseguir suster a perda.

SPSC – O orgasmo feminino pode ser muito afetado pela falta de saúde pélvica?

SC – As contrações que sentimos aquando do orgasmo são produzidas pela musculatura pélvica. Se estes músculos são saudáveis e fortes, o orgasmo também poderá ser. Músculos fortes, orgasmos intensos. O fortalecimento da musculatura pélvica permite-nos controlar o nosso orgasmo. Sempre que contraímos os músculos durante a relação sexual, potencializamos o orgasmo, quando relaxamos, minimizamos a sensação. Quando o tónus da musculatura pélvica melhora, o canal vaginal torna-se mais estreito, conduzindo a uma relação sexual mais satisfatória. Mas o orgasmo também pode ser alterado por uma hipertonia da musculatura pélvica. O importante é perceber que o músculo tem de ser funcional, isto é, contrair e relaxar na sua amplitude total de movimento.

Músculos fortes, orgasmos intensos

SPSC – É complexo ajudar a paciente a ter consciência desta musculatura e trabalhá-la?

SC – A nossa prática clínica e a evidência científica dizem-nos que sim. São músculos que não vemos, e por vezes vem daí a falta de consciência corporal. Os estudos dizem-nos que mais de 30% das mulheres não são capazes de contrair os músculos pélvicos, 49% conseguem aumentar a pressão uretral durante a contração, e que 25% simulam o movimento de evacuação em vez de contração.

SPSC – Há instrumentos usados na reabilitação pélvica que sejam também vendidos como ‘brinquedos sexuais’?

SC – Quando dou alta às minhas utentes, aconselho a comprarem o biofeedback kehel. Para além de se ligar ao telemóvel e funcionar como treino para a musculatura do pavimento pélvico (permitindo-nos observar no ecrã as contrações), também pode ser usado como vibrador (atenção que não substitui tratamento quando existe necessidade para tal). Outro objeto é o dildo, que podemos usar como dilatador vaginal. Há diferentes tamanhos e texturas de forma a melhorar a sensibilidade e permitir um alongamento da musculatura.

SPSC – Que disfunções sexuais femininas são regularmente encaminhadas para a reabilitação pélvica? Estas pacientes chegam-lhe referenciadas por sexólogos clínicos ou por referenciação de outros especialistas?

SC – Temos um misto de situações. No caso das disfunções sexuais, a grande maioria vem encaminhada por um sexólogo. Outras por auto-referenciação, sendo que neste caso, peço sempre para serem seguidas também por um sexólogo. No caso da dor pélvica não sexual e da incontinência, podem vir por auto-referenciação, ou por urologistas ou ginecologistas. Em cidades do interior, por desconhecimento ou falta de informação entre profissionais, muitas vezes as pessoas não são referenciadas para a reabilitação pélvica, não se oferecendo assim a possibilidade de tratamento.

Em muitos hospitais e clínicas realizam-se rastreios e eventos informativos sobre opções não cirúrgicas. Maioritariamente os rastreios ocorrem em instituições privadas. Este tipo de eventos deveriam ter lugar mais recorrente em centros de saúde

SPSC – Na preparação para o parto ou na assistência pós-parto, as questões da saúde pélvica são suficientemente abordadas?

SC – Não. Nos cursos de preparação para o nascimento e parentalidade fala-se um pouco sobre a temática, mas não se focam os cuidados necessários durante a gravidez e no pós parto. É importante explicar que durante a gravidez a mulher deve manter os músculos fortes e flexíveis, tal como uma bailarina. Logo não nos podemos só focar em fazer os exercícios de kegel, mas também realizar a massagem perineal, a fim de minimizar as lacerações. A preparação pélvica para o parto é bem distinta da preparação para a parentalidade. Nestas sessões deve ajudar-se a melhorar a funcionalidade muscular pélvica, seja por fortalecimento, seja por alongamento. Mas não só. É importante ajudar a melhorar a qualidade da flexibilidade da anca, a minimizar as consequências normais do parto (como desconfortos ao nível da coluna, edemas, etc.). No caso do pós parto, a maioria das mulheres queixa-se que não lhes foi ensinado a massajar a cicatriz da episiotomia ou cesariana, nem como estas podem ter um impacto negativo na vida sexual, se não forem tratadas e mobilizadas. Não lhes é ensinado como lidar com a incontinência: perdas urinárias ou fecais no pós parto imediato são comuns, mas se passados 3 a 4 meses o problema persiste, é importante avaliar e perceber a sua origem. Esperar não leva à cura.

SPSC – Conhece ações de prevenção das dificuldades/problemas perineais, realizadas por entidades de saúde, em Portugal ou no mundo, e que sejam dignas de destaque?

SC – O dia internacional da incontinência urinária, a 14 de Março. Em muitos hospitais e clínicas realizam-se rastreios e eventos informativos sobre opções não cirúrgicas. Maioritariamente os rastreios ocorrem em instituições privadas. Este tipo de eventos deveriam ter lugar mais recorrente em centros de saúde.

 

Sites, portugueses e não só, relacionados com a saúde pélvica:

-“Na bexiga mando eu” – informação sobre a bexiga hiperativa;

-“Centrada em si”, de Tena – informação sobre incontinência urinária;

Continence Foundation of Australia – informação sobre incontinência urinária;

Continence in confidence – informação para jovens;

Pelvic floor first – informação sobre o pavimento pélvico;

International Pelvic Pain Society – informação sobre dor pélvica;

International society for sexual medicine – informação sobre disfunção sexual;

Tightly wound – informação sobre a temática do vaginismo.

-Comediante que desenvolve stand-up comedy sobre a temática:

Laugh without leaking

Gusset Grippers