‘Not only for myself’ – identidade(s) e direitos LGBTI


‘Not only for myself’ – identidade(s) e direitos LGBTI

Uma reflexão de…
Eduarda Ferreira, Investigadora do CICS.NOVA (Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, na FCSH / NOVA). Os seus interesses de investigação são o género e sexualidades, a web geoespacial, as TIC na educação, a inclusão digital e igualdade de género.

 

Percurso 
Licenciada em Psicologia Educacional, mestre em Sistemas de Gestão de e-Learning e doutorada em Geografia Social e Cultural. Desenvolve uma investigação de pós-doc sobre “Gender@ICT: gaps, co-production and equity”. É membro fundador da Rede de Estudos de Geografia, Género e Sexualidade Ibero Latino-Americana (REGGSILA).

 

Data
1 de Outubro de 2018

Mulher, lésbica, psicóloga educacional, investigadora, nascida em África de pais nascidos em África, ativista dos direitos LGBTI, branca, com emprego estável, casada, feminista, mais de 50 anos de idade, residente no litoral, com muitos momentos em que me senti e sinto feliz, por vezes desiludida e sem ânimo, mas com tendência para o otimismo, e muito mais poderia dizer sobre mim.

Vou falar essencialmente de direitos LGBTI, área onde tenho desenvolvido ativismo. E não só ativismo, também investigação sobre a importância da visibilidade de sexualidades não normativas nos espaços públicos. A ausência de visibilidade de expressões públicas de afeto ainda é uma realidade dominante, trabalho numa escola com adolescentes onde abraços, beijos e carícias fazem parte do meu quotidiano, mas quase nunca são entre pessoas do mesmo sexo. Quando aparecem cenas de casais do mesmo sexo na TV ainda é notícia… já aparecem, mas ainda é um facto que merece destaque e ser mencionado. Ainda não alcançamos o direito à indiferença.

No ativismo tenho a experiência do Clube Safo, fiz parte da direção durante muitos anos e fui acérrima defensora da mudança de designação: de ‘associação de lésbicas’ para ‘associação de defesa dos direitos das lésbicas’. Pode parecer um pormenor, mas não é.

O que é uma associação de lésbicas? O que é uma lésbica? Alguém que se auto define como lésbica. Sei que, por exemplo, algumas das mulheres que faziam parte da associação questionavam se mulheres trans também poderiam ser lésbicas e fazer parte da associação. Este não era um entendimento maioritário, mas evidencia como num mesmo grupo que se une por razões identitárias podem existir importantes diferenças de opinião. Será que o facto de um grupo ser constituído por mulheres em que todas se autoidentificam como lésbicas significa que partilham a mesma visão do mundo? Ou mesmo que têm experiências de discriminação semelhantes? Uma lésbica de 50 e tal anos e uma lésbica de 20 e pouco têm as mesmas experiências de discriminação? Uma lésbica com emprego estável e uma lésbica com emprego precário? Uma lésbica que se identifica com ideais de esquerda na política e outra mais próxima da direita?

Pela minha experiência, embora o Clube Safo fosse constituído por mulheres que se auto identificavam como lésbicas, não tinham todas a mesma conceção dos direitos que queriam ver garantidos. Para algumas a invisibilidade era um espaço de conforto e a luta social e política algo desconfortável. O seu objetivo na associação era procurar espaços de convívio de lésbicas e não a intervenção social ou política. Quem pode defender os direitos das lésbicas? Só as lésbicas? Só mulheres? Mulheres heterossexuais não o podem fazer? Nem os homens? O facto de uma mulher se auto identificar como lésbica transforma-a automaticamente numa defensora dos direitos das lésbicas? E de que direitos estamos a falar? Todas querem o mesmo? Todas têm o mesmo entendimento da sociedade em que querem viver?

Em 2008 o Clube safo deixou de ter atividade social e política tendo desaparecido do panorama das associações LGBTI. Podemos refletir no facto de grupos de defesa de direitos de lésbicas em vários países do mundo terem dificuldade em manter uma intervenção social e política relevante. E será que, por exemplo, todas as mulheres se identificam com as reivindicações de associações de mulheres? Até existem associações de mulheres que defendem abordagens diferentes a muitas das áreas das nossas vidas, por exemplo, um caso recente é o relacionado com o trabalho sexual. Temos associações de mulheres a defenderem posições opostas.

Não é o facto de pertencermos a uma determinada categoria identitária que nos faz imediatamente semelhante nas características e objetivos a outras pessoas da mesma categoria. Isto porque não faz sentido que uma só única dimensão da nossa identidade seja a dominante em qualquer momento e contexto. As identidades são fluídas e dependentes dos contextos e alturas da vida, não são algo imutável e fixo. Os vários aspetos das nossas identidades têm importância relativa em função do local onde estamos, de quem estamos rodeadas, o que queremos atingir, etc. Não há um único aspeto que é sempre o mais determinante, e mais importante, não há um único aspeto que seja independente de todos os outros. Por exemplo, no meu caso ser mulher e lésbica, não está nunca desligado de outros aspetos como ter 56 anos, emprego estável, ser de esquerda e feminista, etc.

E por isso se fala e se reconhece a importância da intersecionalidade. O reconhecimento da intersecionalidade permite nomear, dar voz e visibilidade a novas configurações identitárias. Têm surgido novos coletivos e discursos, outras reivindicações. Esta diversidade de configurações identitárias possíveis aproxima a luta da realidade. Se falarmos das questões LGBTI, área que conheço melhor, temos mais diversidade do que existia quando se falava só das lutas LGBT, temos intersexo, e muito mais categorias, assexuais, pansexuais, não binários, poliamorosos,… estamos mais próximas da realidade que existe, rompendo as caixinhas das categorias identitárias estanques e mutuamente exclusivas.

E todas estas configurações se cruzam e multiplicam noutras configurações; no limite podemos chegar a tantas configurações quantas pessoas, i.e., cada pessoa constitui uma configuração única em que só se cruza com outras configurações identitárias em algumas características ou em alguns momentos, sendo praticamente impossível uma identidade coletiva homogénea. É importante dar voz e visibilidade a toda a diversidade, mas como ter uma luta comum?

Entre uma categoria identitária dominante irrealisticamente homogénea e a dispersão de configurações identitárias tão diversas quanto as pessoas que existem, como organizar a luta por direitos? Se não existe homogeneidade nas categorias identitárias? Se as identidades são complexas, variadas, fluídas e intersecionais? Se o focar na diversidade e nas múltiplas configurações identitárias limita a possibilidade de uma identidade coletiva? Como organizar a luta por direitos?

Um caminho possível é focar não nas identidades, mas nos direitos que queremos ver reconhecidos. Debater, discutir e negociar que direitos queremos. Promover a reflexão. O que nos une? O que nos separa? Estabelecer alianças com quem se identifica com determinadas lutas. Estas alianças serão sempre enquadradas em determinado contexto, em determinada época. Teremos de passar do discurso ‘eu sou’ para um discurso ‘eu quero’, e esta mudança implica reflexão, discussão, pensamento crítico. Que tipo de sociedade eu quero ajudar a criar? Que direitos devem ser garantidos a todas as pessoas? Como poderemos promover mais igualdade e justiça social? Como entendo a igualdade e justiça social?

Um exemplo das lutas LGBTI da importância de nos unirmos por objetivos e não por categorias identitárias é o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Nem todas as pessoas que se auto identificam como LGBTI se reconhecem na luta pelo direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Muitas pessoas consideram que é o prolongar de um modelo patriarcal, outras consideram que é um patamar importante para a igualdade.

Não existem só respostas certas ou erradas, existem múltiplas possibilidades. Até existe a possibilidade de mudarmos de opinião.

O que nos deve unir são objetivos, causas, ação coletiva e não apenas algumas características. É importante assumir uma perspetiva situada, a nossa própria posicionalidade, mas o mais importante é envolvermo-nos nos debates, questionarmos, duvidarmos, construirmos, lutarmos, não só por nós próprias, mas por todas e todos que sofrem de discriminação que não têm igualdade de oportunidades. Por isso escolhi o título ‘Not only for myself’ inspirado no livro de Martha Minow (1997). (1)

Definir objetivos, fazer alianças. Promover a mudança. Mudar de ‘eu sou’ para o que ‘nós queremos’. A minha luta não tem de ser só sobre o que me diz diretamente respeito. Não são só as pessoas que se sentem discriminadas pela cor da pele que podem lutar contra o racismo, não são só as mulheres que podem lutar pela igualdade de direitos entre mulheres e homens, não são só as pessoas que se autoidentificam como LGBTI que podem lutar pelos direitos LGBTI. Por exemplo, por ser lésbica não sou automaticamente uma maior e melhor defensora dos direitos das lésbicas. Qualquer pessoa, mulher ou homem, heterossexual ou homossexual, bissexual, transgénero, pode envolver-se na luta pelos direitos das lésbicas. E isso não é retirar voz e espaço de intervenção às mulheres lésbicas, é alargar a sua base de apoio. É preciso ter em consideração a experiência na primeira pessoa de mulheres lésbicas nesta luta, mas também é igualmente importante refletir sobre que direitos queremos, e como lutar para os alcançar.

A luta por direitos iguais deve ser feita ‘Not only for myself’ mas com sentido de cidadania e participação na vida social e política de todas e todos. Não porque somos iguais ou nos reconhecemos como iguais, mas porque queremos ser iguais em direitos.

 

(1) Minow, Martha (1997). Not only for myself: Identity, Politics, and the Law. New York: The New Press.