A sexualidade na saúde mental
À conversa com…
Ana Matos Pires é médica psiquiatra e Diretora do Serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo.
Percurso…
Assistente hospitalar graduada sénior de psiquiatria. Mestre em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Docente do Mestrado Integrado de Medicina da Universidade do Algarve.
Entrevista
Isabel Freire
Data
3 de dezembro de 2018
Ana Matos Pires, médica psiquiatra e diretora do Serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, diz-nos que continua a haver muitos e ensurdecedores silêncios no território da saúde mental. Defende que a psiquiatria equaciona hoje “mais e melhor” as questões da vivência relacional, afetiva e sexual, no acompanhamento de doentes, mas que é preciso libertar essa preocupação de juízos valorativos. Os serviços hospitalares precisam apostar na formação clínica multidisciplinar, para não “patologizar”, para “despatologizar”, para acompanhar quem precisa. Atualmente, em Portugal, não temos ainda respostas suficientes e adequadas para agressores sexuais condenados por crimes desta natureza. E menos ainda para vítimas de violência sexual, um silêncio com consequências que podem ser “devastadoras e crónicas” para os/as sobreviventes.
Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica – Há silêncios (ou discursos do silêncio) que insistem em persistir em torno da doença mental, na sociedade portuguesa dos nossos dias?
Ana Matos Pires – Há sim. Muitos. Demasiados. Silêncios que vêm de todos os sítios: dos profissionais, dos doentes, das famílias, e muitos (muitos e ensurdecedores) silêncios da tutela (Ministério da Saúde), de forma continuada, independentemente de quem são os ministros.
SPSC – O que se mantém por detrás destes silêncios?
AMP – O estigma, a ignorância, a indiferença, o medo e a falta de vontade política. O tema não dá votos.
SPSC – Tenho a impressão que ainda não escutamos muito falar os/as doentes, quando escutamos falar de doença mental. Isto faz algum sentido?
AMP – Faz muito pouco (se é que faz algum), mas tem uma razão justificativa. Parte das razões estão referidas na resposta anterior. Outras são, sem dúvida, a falta de capacidade de “associativismos” por parte dos/as doentes e das famílias (salvo raras e honrosas exceções de onde destaco a Familiarmente), com a consequente falta de capacidade de fazer lobbying, e a baixíssima literacia em Saúde Mental.
SPSC – A sexualidade está para a psiquiatria, como…
AMP – as outras áreas do comportamento humano.
SPSC – Se tivesse carta branca para criar – num centro hospitalar – respostas (clínicas, terapêuticas, outras) para problemáticas que envolvam a sexualidade e a saúde mental, o que proporia sem sombra de dúvida?
AMP – A formalização de uma equipa multidisciplinar com uma excelente formação clínica, desde logo e em primeira mão, para não “patologizar” ou para “despatologizar” muitas situações, e para acompanhar com qualidade (usando diferentes instrumentos terapêuticos) aquelas outras que de facto precisam.
SPSC – Perante quadros depressivos (ou perante outros quadros de doença mental), os/as profissionais de saúde equacionam com o/a doente as questões da vivência relacional, afetiva, sexual? Essa é hoje uma preocupação de peso ou as vivências íntimas estão ainda muito à margem?
AMP – Sim, sem dúvida que equacionamos e que é uma preocupação de peso. Quero deixar claro que, felizmente, equacionamos cada vez mais e melhor, mas importa também dizer que essa preocupação deve estar liberta de juízos valorativos.
SPSC – A partir da sua experiência clínica (ou a partir de indicadores estatísticos), que parafilias são mais recorrentes, e que ‘ferramentas’ essenciais precisamos desenvolver para acompanhar estas pessoas?
AMP – Não sendo sexologista, julgo que as parafilias mais frequentes são o fetichismo e o exibicionismo. Parece-me importante referir que as parafilias não são ipso facto doenças psiquiátricas, isto é, a parafilia, por si só, não justifica um diagnóstico nem uma intervenção terapêutica. Uma perturbação parafílica é uma parafilia que causa sofrimento ou prejuízo ao próprio ou a terceiros. Sinalizar uma parafilia – de acordo com a natureza das pulsões, fantasias ou comportamentos – não significa diagnosticar uma perturbação parafílica (assente no sofrimento e no prejuízo do próprio e/ou de terceiros). Uma parafilia será, então, uma condição necessária mas não suficiente para que se diagnostique uma perturbação parafílica. Uma vez diagnosticada uma perturbação parafílica as ferramentas mais importantes são, seguramente, as psicoterapias.
SPSC – Temos hoje respostas vocacionadas adequadas para os agressores sexuais, condenados por crimes desta natureza?
AMP – Não, francamente acho que não temos respostas nem suficientes nem adequadas. Atenção que me parece importante, num primeiro momento, perceber o que deve ser deixado no âmbito do crime e não ser desculpabilizado nem beneficiar com os efeitos dos ganhos secundários do estatuto de doença e as situações patológicas que beneficiam de uma intervenção terapêutica adequada.
SPSC – E para as vítimas?
AMP – Menos ainda. Muito menos e com consequências devastadoras e crónicas na vida dessas pessoas.
SPSC – As nossas vivências cada vez mais tecnológicas podem melhorar e/ou piorar a nossa saúde mental? Há algo que a preocupe quando foca esta dimensão das nossas rotinas?
AMP – Não sei exatamente a que chama “vivências tecnológicas”, mas se se estiver a referir ao uso cada vez mais frequente da tecnologia nas nossas vidas estou, muito provavelmente, em contra concorrente, na medida em que não olho para isso como um “mal” em si mesmo. Julgo que, como quase tudo, depende imenso do uso que lhe é dado.
SPSC – As questões da igualdade género e da diversidade de género (pessoas transgénero) são hoje apontadas como um dos centros nevrálgicos da mudança nas sociedades. Como olha para esta questão, enquanto psiquiatra?
AMP – Enquanto psiquiatra parece-me que é minha obrigação estar preparada para identificar as consequências que estas questões podem determinar, nomeadamente as reações vivenciais que tantas vezes surgem em resposta às pressões sociais negativas, à maldade e à ignorância, e que podem desencadear verdadeiros quadros psicopatológicos com consequências muito graves. Mas para lhe ser franca, olho muito mais para estas questões enquanto cidadã (que também é psiquiatra), do que enquanto clínica. Quanto muito, uso o ser psiquiatra para informar o meu exercício de cidadania.
SPSC – Nas escolas, a educação para a sexualidade inscreve-se na promoção da saúde e da cidadania. Em que medida é que as abordagens da sexualidade podem representar ganhos efetivos na saúde mental de crianças e jovens?
AMP – A educação para a saúde tem obrigatoriamente que englobar a saúde sexual e reprodutiva e os ganhos em saúde (mental e não só) estão amplamente referidos na literatura científica, só não sabe quem quer ignorar. Uma sexualidade informada é parte integrante de uma sexualidade saudável.