Uma consulta de medicina sexual em contexto militar


Uma consulta de medicina sexual em contexto militar

À conversa com…

Artur Palmas, médico urologista, diretor do serviço de Urologia do Hospital das Forças Armadas-Polo de Lisboa, e responsável da consulta de Medicina Sexual na mesma instituição.

 

Percurso…

Licenciado em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, fez o 3º Curso de Especialização Pós-Graduada em Medicina Sexual pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa, e é doutorando em Sexualidade Humana, na Universidade do Porto, desde 2018. Integra a Direção da Sociedade Portuguesa de Andrologia, Medicina Sexual e Reprodução (SPA), desde 2014.

 

Entrevista

Isabel Freire

 

Data

28 de dezembro de 2018

Artur Palmas, responsável pela consulta de Medicina Sexual no Hospital das Forças Armadas (em Lisboa), considera que existe no contexto militar português uma aceitação generalizada de vivências não-heteronornativas, mas que na prática o tema não é ainda abertamente abordado. Pelo seu consultório passam quase exclusivamente homens. As mulheres preferem expor as suas problemáticas na ginecologia e psicologia clínica. Nesta instituição de saúde, Palmas dirige também o serviço de urologia. A sexualidade é por norma uma preocupação de peso, constante ao longo de todo o processo de tratamento do cancro da próstata. Quando há necessidade de terapêutica de privação hormonal, o doente passa por transformações corporais: aumento do volume mamário, perda da pilosidade, alteração da distribuição da gordura corporal e perda da massa muscular. Alguns aceitam estas alterações. Outros – a maioria – vivem o processo com muita angústia e sofrimento.

Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica – Que problemáticas julga que precisamos falar mais, no que respeita à saúde sexual dos homens?

Artur Palmas – Muito foi feito em termos de divulgação de informação, e em termos de conhecimento por parte dos doentes. O nível de conhecimento das patologias e suas causas, apresenta hoje um nível bastante superior, se compararmos com a situação há dez anos. Apesar de muito se falar (e saber) sobre disfunção erétil e ejaculação precoce, existem problemáticas um pouco negligenciadas. Creio que na próxima década, a agenda será dominada pelas questões associadas ao orgasmo, à diminuição do prazer. Em parte, devido ao stress, à vida cada vez mais preenchida e ocupada, com múltiplos estímulos, que nos afastam do essencial, e do nosso foco sensorial. Neste momento, nas consultas de Medicina Sexual, tenho um número crescente de pacientes com queixas associadas ao orgasmo. Outra problemática emergente será o “aborrecimento sexual” nesta geração de millennials, super estimulada, e com uma procura constante de novidade.

SPSC – A sexualidade é uma preocupação de peso para pacientes com cancro da próstata? Em que momento surgem, com que facilidade/dificuldade são expressas, e que receios envolvem?

AP – Nos doentes com cancro da próstata, as preocupações associadas à sexualidade estão presentes ao longo de todo o processo. Surgem inicialmente, após o diagnóstico da doença, quando discutimos as diferentes opções terapêuticas. Posso afirmar, claramente, que têm o mesmo peso que as questões relacionadas com o melhor controlo oncológico, e sobrevida livre de doença. Num segundo momento, após a intervenção terapêutica, quando o controlo oncológico se apresenta garantido e o peso do cancro como que desaparece, os doentes voltam a focar-se novamente na questão da sua qualidade de vida, e da sua sexualidade, enquanto elemento desta.

SPSC – Que transformações do corpo são recorrentes na sequência de uma terapêutica hormonal (bloqueio da produção de testosterona) em pacientes com cancro da próstata?

AP – A terapêutica de privação hormonal é uma opção terapêutica em doentes com cancro da próstata metastizado ou após reaparecimento da doença oncológica em doentes já submetidos a tratamento potencialmente curativo (prostatectomia radical, radioterapia). Basicamente consiste na administração semestral (através de injeção) de um tratamento que vai bloquear a produção de testosterona, e desta forma provocar uma apoptose das células oncológicas da próstata. O cancro da próstata é sensível aos níveis de testosterona produzida nos testículos. Através do seu bloqueio vamos controlar a evolução da doença. Obviamente, este tratamento apresenta grandes efeitos secundários. Provavelmente, é a terapêutica que maior impacto vai apresentar sobre a qualidade de vida global. O doente passa por uma perda dos sinais externos de masculinidade, associada a uma feminização do corpo do homem. Ocorre um aumento do volume mamário, uma perda da pilosidade, uma alteração da distribuição da gordura corporal, uma perda da massa muscular. A quebra dos níveis de testosterona resulta numa ausência de desejo sexual, com a consequente disfunção eréctil e ejaculatória. Ou seja, todos os campos da esfera sexual do homem vão ser afetados.

SPSC – Como são genericamente encaradas/vividas estas mudanças?

AP – Existe um grande espectro na forma como estas alterações são vividas. Há doentes que aceitam estas alterações como algo inevitável, a fim de permitir um controlo oncológico. Certos doentes adaptam-se de uma forma positiva a esta nova forma de viver a sua sexualidade. Mas outros – claramente a maioria – vivem este processo com uma grande angústia e sofrimento.

SPSC – Dirige o Serviço de Urologia do Hospital das Forças Armadas. Para as pessoas que fazem parte deste contexto profissional, as transformações do corpo na sequência da terapêutica hormonal são vividas com maior pressão?

AP – Por norma, a necessidade da utilização desta terapêutica ocorre em doentes acima dos 75 anos, que já não estão no ativo. No entanto, estes doentes fazem parte de uma geração, onde as crenças da masculinidade eram mais acentuadas, e provavelmente o facto de serem oriundos de um meio militar, acentua ainda mais estas crenças, o que vai resultar numa maior angústia e sofrimento.

SPSC – A homossexualidade foi durante muito tempo ‘tabuizada’, discriminada e banida do contexto militar. As vivências não-heteronormativas da sexualidade surgem na consulta de Medicina Sexual que dirige no Hospital das Forças Armadas? Como lhe parece que são hoje vividas?

AP – Apenas recentemente, nos Estados Unidos da América, durante a administração Obama, foi aceite de forma explícita a existência no meio militar de vivências não-heteronormativas da sexualidade. Antes disso, vigorava a prática da política don’t ask, don’t tell, isto é, não se excluíam estas pessoas, mas elas também não podiam exprimir abertamente a sua sexualidade. No contexto português, penso que é o que se passa atualmente. Existem militares que todos sabemos terem uma vivência não-heteronormativa, alguns legalmente casados com pessoas do mesmo sexo, desde a aprovação da lei [9/2010, de 31 de Maio]. Na verdade não são discriminados. Existe uma aceitação generalizada, mas na prática o tema não é abertamente abordado.

SPSC – Homens e mulheres procuram a sua consulta de Medicina Sexual no Hospital das Forças Armadas, de forma equilibrada? Que problemáticas trazem mais recorrentemente?

AP – Em teoria, esta consulta destina-se a homens e mulheres. Na prática é quase exclusivamente procurada por homens. Penso que as mulheres com problemáticas associadas à sua sexualidade procuram ajuda essencialmente na consulta de Ginecologia ou na consulta de Psicologia Clínica. Em termos de problemáticas, são casos de disfunção eréctil (cerca de 70 por cento), o que penso ser transversal a outras consultas de Medicina Sexual, desenvolvidas por outros Serviços de Urologia.

SPSC – Integra a Direção da Sociedade Portuguesa de Andrologia (SPA) e recentemente esteve envolvido na definição de linhas de orientação médica relativamente ao HPV nos homens. Que questões se colocavam a este grupo de trabalho?

AP – Na origem da criação deste grupo de trabalho, esteve a noção partilhada por vários elementos da SPA, da existência de uma grande variabilidade na forma como abordamos os homens com papillomavírus. A não existência de linhas orientadoras leva a que cada médico proceda de acordo com os seus critérios individuais. Existe um número muito grande de homens, cuja parceira foi diagnosticada com HPV, e que é referenciado para avaliação em consulta de urologia. Pareceu-nos de importância extrema a criação de consensos orientadores, na forma como abordamos estes doentes. Foram criados grupos de trabalho: Diagnóstico; Tratamento; Prevenção e Tratamento. Foi um processo que demorou aproximadamente 2 anos. Depois da criação dos grupos de trabalho, cada grupo convidou elementos de diferentes áreas da medicina (Ginecologia, Infecciologia, Dermatologia, Anatomia-Patológica, Urologia, etc.), que elaboraram um documento que foi disponibilizado para consulta pública no site da SPA, a fim de recolher críticas e opiniões. Este processo terminou no dia 8 de Dezembro. Após avaliação das críticas feitas, elaborou-se o documento final dos Consensos em HPV masculino.

SPSC – Quais os principais riscos do HPV para a saúde do homem?

AP – O vírus do papiloma humano é um vírus de transmissão sexual, com que aproximadamente 70% da população mundial sexualmente ativa já contactou. Na história natural da infecção, o sistema imunitário do hospedeiro expulsa o vírus entre 2 a 4 semanas. No entanto, o contacto repetido com o vírus aumenta a probabilidade de não ser expulso, e de ficar instalado ao nível celular cutâneo. O vírus pode permanecer inativo por longos períodos, daí não ser possível identificar quem o transmitiu. No caso do homem, a principal consequência clínica é a presença de verrugas genitais, mas sem graves consequências. A importância do seu tratamento passa, essencialmente, por evitar a transmissão a parceiros sexuais.

SPSC – Em que contextos sociais é fundamental trabalhar na prevenção? E que mensagens é preciso passar?

AP – A prevenção deve ser trabalhada em toda a população, sendo o método mais eficaz a vacinação de homens e mulheres, mesmo que estes já tenham tido contacto com o vírus. A grande mais valia apresenta-se quando a vacinação ocorre antes do início da atividade sexual, no entanto, contrariamente ao que foi vinculado noutros tempos, existe sempre vantagem na vacinação. Outra forma de prevenção, é o uso correto do preservativo, a fim de evitar a transmissão.