A atração do supérfluo


A atração do supérfluo

[u

A reflexão de…

Maria João Martins, jornalista, escritora, professora de História Social da Moda na Universidade Carlos III de Madrid.

Facebook

 

Percurso…

Professora na Universidade Carlos III de Madrid. Licenciada e Mestre em História, pela Faculdade de Letras de Lisboa. Trabalhou como jornalista no Diário de Lisboa, semanário Sete, Jornal de Letras, Artes e Ideias, e teve um programa de autor na RDP-Antena 2. É autora dos ensaios: O Paraíso Triste – A Vida Quotidiana em Portugal durante a IIª Guerra Mundial; História da Criança em Portugal e Luanda; Invenção de uma Capital. Publicou os romances Escola de Validos (Teorema, 2007) e Como o Ar que Respiras (Porto Editora, 2012). Organiza cursos e workshops sobre História da Moda, em Portugal e em Espanha.

 

Data

28 de Fevereiro de 2019

Numa canção a que chamou “Les Dessous Chics”, Serge Gainsbourg evocava certa liga que “lhe estalava na cabeça como um par de bofetadas”. Provocador por natureza, o autor de “Je t’aime, moi non plus”, sabia bem do que falava – o poder simbólico de uma peça de lingerie, como o cinto de ligas, que a tecnologia do têxtil e os hábitos de consumo há muito tinham tornado desnecessária.

Popularizado pelas mulheres mais sensuais do Cinema – desde Sofia Loren a Nastassia Kinski – este acessório marcou a silhueta Belle Époque, ainda ligado ao espartilho, cumprindo a função de manter as meias bem esticadas e firmes sobre as pernas das senhoras. As burguesas usavam-no no segredo do boudoir, as cortesãs passeavam-nos nos salões onde recebiam os clientes. Para todas, e provavelmente para os seus homens, funcionava como uma antecâmara da sedução.

Com esse papel simbólico, o cinto de ligas conheceu o auge da popularidade nas décadas de 1940 e 1950, quando as novas silhuetas delineadas por Dior e Balenciaga exigiam um suporte íntimo quase arquitetónico. Marcas como a La Perla, criada por Ada Masotti em 1954, responderam com soutiens de copas pontiagudas, cintas de meia perna e, uma vez mais, cintos de ligas. Objetivo: disfarçar abdomens mais dilatados, definir busto, cintura e glúteos, sem, no entanto, retirar liberdade de movimentos a essa mulher que, em pleno pós II Guerra Mundial, conquistava terreno fora de casa. Com tal capacidade de sugestão, o cinto de ligas resistiu mesmo à revolução de costumes e hábitos de consumo da década de1960, quando o prêt-à-porter, a invenção dos collants em fibras económicas como o nylon, à mistura com as reivindicações dos movimentos hippies e feministas, o pareciam ter atirado para a gaveta das relíquias. Tornou-se o supérfluo, a fantasia, o supremo luxo. A apetecida lentidão no despir contra a velocidade imposta ao vestir pelo ritmo das manhãs.

Coube a celebridades como Madonna conferir um segundo fôlego a lingerie que associaríamos mais a objetos do fetichismo masculino do que a mulheres donas de si, do seu destino e da sua sexualidade. Empresas como a norte-americana Victoria’s Secret e a britânica Agent Provocateur cavalgaram, com total sucesso, esta nova onda. Quem usa os seus sofisticados soutiens e cintos de ligas? Quem é o público-alvo das suas caríssimas campanhas publicitárias? Uma mulher que, sob o formalismo do tailleur de cada dia, guarda em si um segredo muito especial: o de usar um par de ligas capaz de ecoar na melhor cabeça como um par de bofetadas.

Nastassia Kinski, em Maria‘s Lover

Catherine Deneuve, em Belle de Jour.