Para uma noite livre de sexismo
Cristiana Pires e Maria Carmo Carvalho
Psicólogas doutoradas em Antropologia e Psicologia, respetivamente. São também membros-fundadores da Associação Kosmicare. Juntas constituem a equipa de investigação do Projeto Sexism Free Night atualmente em curso no CEDH/Research Centre for Human Development da Universidade Católica Portuguesa.
Data
28 de fevereiro de 2019
Sair à noite e usar drogas são dois fenómenos que cresceram de forma assinalável na sociedade portuguesa nas últimas décadas, crescimento que nem mesmo o período de crise económica conseguiu travar. Disso evidência é o facto de, em pleno período da crise, o valor investido pelos portugueses/as em saídas noturnas ter crescido 5.5%, superando amplamente a despesa investida pelas famílias em educação no mesmo período (Pordata, 2014). O nosso projeto começou por considerar o significado da participação feminina nos ambientes recreativos noturnos e o contexto dos problemas e desafios que afetam, de forma específica, as mulheres que frequentam ambientes de lazer noturno.
Enquanto espaços tempo de lazer onde a diversão noturna quebra com a rotina da vida quotidiana oferecendo socialização e procura ativa de prazer (Goulding & Shankar, 2011), estes ambientes não deixam de reproduzir e por vezes hiperbolizar, porém, dinâmicas sociais transversais sobre as diferenças de género, idade ou classe (Meashow & Østergaard, 2009 citado por Gunby, 2016). Assim, e se num momento inicial, a expansão do movimento da música eletrónica de dança no início dos anos 90 foi entendida como uma oportunidade libertadora para as mulheres que permitiu a sua passagem a participantes de pleno direito nesta cena, contando com maiores liberdades do que as que gozavam noutros contextos de ócio (Romo, 2004), as desigualdades estruturais de género não se dissiparam, mas reconfiguraram-se. A massificação destes ambientes acabou por acarretar um novo arrastamento das mulheres para papéis mais tradicionais, afirmando os homens como figuras centrais enquanto empreendedores, produtores e consumidores culturais. Sinais disto mesmo foram o aumento do consumo de substâncias e sua desideologização, o aumento da violência, e o crescimento da necessidade de segurança que reforçou o protagonismo de agentes masculinos (porteiros, seguranças, promotores). Este movimento resultou numa progressiva erotização que diminuiu as vantagens da participação feminina inicial nestes ambientes (McRobbie, 1993).
Numa fase inicial este projeto procedeu ao diagnóstico da situação portuguesa no que se refere à experiência de situações de violência sexual por pessoas que frequentam ambientes de lazer noturno em Portugal. […] Alguns dos resultados preliminares […] comprovam que de facto as situações de violência sexual, principalmente as de baixa intensidade, são bastante expressivas e prevalentes nestes ambientes em Portugal
Não tendo, então, contribuído para o equilíbrio das diferenças de género de que outros significados se revestiu a participação feminina no lazer noturno? Assegurada que foi a reprodução de normas hegemónicas de masculinidade e feminilidade acentuou-se uma alarmante desigualdade entre os géneros, com as mulheres a enfrentarem inúmeras tensões e contradições potencialmente desempoderadoras: se por um lado é expectável que ajam de uma forma “não-promíscua”, por outro devem apresentar-se de uma forma sexy (Griffen e cols. (2013). Se, por um lado se mantêm algumas tensões como a procura de autonomia e o consumo recreativo e social, por outro, o receio da perda de controlo (enquanto se preserva uma atitude feminina) constitui preocupação (Lopes et al., 2008). Proliferam desigualdades de género traduzidas na divulgação de conteúdos sexistas e hiper sexualizados como a “Noite da Mulher”, a publicidade de promoção irresponsável do consumo de bebidas alcoólicas, os dress codes, e os temas musicais com conteúdos sexualmente violentos (Gunby et al., 2016). Assim, e ao mesmo tempo que se populariza a crença de que as mulheres que frequentam ambientes recreativos são mais empoderadas e têm uma maior liberdade sexual, dissemina-se uma definição redutora de liberdade sexual, a remeter unicamente para um maior consumo sexual (frequência e número de parceiros sexuais), excluindo da definição dimensões como a experimentação de outras práticas sexuais e a exploração do prazer feminino (Noctambul@s 2016). Uma maior liberdade sexual é confundida com disponibilidade sexual, acessibilidade, pelo que se justificam e legitimam formas de interação sexualizadas (com ou sem consentimento). Toques ou outros contactos sexuais de menor intensidade (por exemplo, roçar) tornam-se norma. E apesar de as mulheres aceitarem esses comportamentos como condição inevitável para a sua participação no lazer noturno, muitas vezes sentem-se zangadas e invadidas na sua privacidade (Gunby et al, 2016).
Há já evidência sobre a extensão destes problemas. Os resultados do Eurobarómetro da violência com base no género (TNS Opinion and Social, 2016) revelam que em determinadas situações a violência ainda é legitimada e justificável por uma franja significativa da população – cerca de 1 em 5 respondentes (22% a nível Europeu e 19% em Portugal) tendem a culpabilizar a vítima de exagerar nas suas acusações e consideram que a violência contra as mulheres é frequentemente provocada pela vítima (17% a nível Europeu, 11% em Portugal). Mais do que um quarto dos respondentes consideram que as relações sexuais não-consentidas podem ser justificáveis quando a vitima está embriagada ou sob o efeito de drogas (12% a nível Europeu, 19% em Portugal), quando vai para casa com alguém voluntariamente a seguir a uma festa ou encontro (11% EU, 15% Portugal), quando veste roupa reveladora (10% EU, 12% Portugal), quando não diz não claramente ou não resiste fisicamente (10% EU, 10% Portugal), quando anda sozinha à noite na rua (7% EU; 15% Portugal), ou quando tem múltiplos parceiros sexuais (7% EU, 13% Portugal).
Neste processo afastamo-nos da abordagem tradicional que toma as mulheres como alvo das intervenções dirigidas a esta problemática e que acabam por reproduzir dinâmicas sexistas com a apologia de uma certa “moralidade de precaução” […], e que assim se arriscam a promover a culpabilização da vítima, a promover a re-vitimização de quem já viveu a violência sexual, e que excluem sistematicamente a figura do agressor […] – o único responsável pelas situações de violência sexual
Complementarmente à naturalização da mulher frequentadora de ambientes recreativos enquanto potencial vítima de várias situações no espectro de violência sexual assiste-se à normalização do comportamento do agressor. O seu comportamento é frequentemente desculpabilizado por via do escrutínio do comportamento da vítima e sob pretexto de uma hipersensibilidade masculina que se traduz numa menor capacidade de resistir aos impulsos sexuais (Noctambul@s, 2017). Em caso de agressão sexual esta desigualdade traduz-se também na culpabilização da vítima que “se pôs a jeito” ou não se protegeu o suficiente.
É neste contexto de normalização da violência sexual e do assédio sobre as mulheres que frequentam ambientes recreativos noturnos que o projeto Sexism Free Night encontra a sua motivação. O projeto é levado a cabo pelo CEDH – Research Centre for Human Development da Universidade Católica Portuguesa , é financiado pelo programa POISE, Portugal 2020 e Fundo Social Europeu (POISE-03-4437-FSE-000127) e tem a parceria estratégica da Associação Kosmicare, do Observatório Noct@mbulas e da Câmara Municipal do Porto. Este projeto surge com o objetivo produzir conhecimento sobre as intersecções entre a violência sexual, a frequência de ambientes recreativos noturnos e o consumo de substâncias psicoativas entre pessoas que saem à noite em Portugal, intervindo com o objetivo de promover a criação de um roteiro de lazer noturno mais seguro e igualitário na cidade do Porto. Numa fase inicial este projeto procedeu ao diagnóstico da situação portuguesa no que se refere à experiência de situações de violência sexual por pessoas que frequentam ambientes de lazer noturno em Portugal. O questionário online utilizado foi traduzido e adaptado a partir do questionário originalmente concebido pelo projeto catalão Observatório Noctambul@s. Este instrumento permitiu a recolha de dados de uma amostra de n=550 participantes que partilharam connosco as suas experiências de vitimação, testemunho e agressão sexual em ambientes recreativos noturnos. Os resultados constituem não só um esforço pioneiro na caracterização deste fenómeno no nosso pais, como tornarão possível uma análise comparada com aquele outro contexto geográfico. Alguns dos resultados preliminares resultantes do instrumento estão já disponíveis através da criação de uma factsheet concebida especialmente para a disseminação de evidência mais saliente (imagem 1, ver no final do artigo), e comprovam que de facto as situações de violência sexual, principalmente as de baixa intensidade, são bastante expressivas e prevalentes nestes ambientes em Portugal.
Uma maior liberdade sexual é confundida com disponibilidade sexual, acessibilidade, pelo que se justificam e legitimam formas de interação sexualizadas (com ou sem consentimento). Toques ou outros contactos sexuais de menor intensidade (por exemplo, roçar) tornam-se norma. E apesar de as mulheres aceitarem esses comportamentos como condição inevitável para a sua participação no lazer noturno, muitas vezes sentem-se zangadas e invadidas na sua privacidade
O este projeto uma proposta multicomponente que procura apoiar a transição para ambientes de lazer noturno mais seguros e igualitários com o objetivo de dar visibilidade aos/às empresários/as e produtores/as culturais que se apresentam comprometidos com a oferta de um lazer mais seguro e igualitário na noite da invicta. Neste processo afastamo-nos da abordagem tradicional que toma as mulheres como alvo das intervenções dirigidas a esta problemática e que acabam por reproduzir dinâmicas sexistas com a apologia de uma certa “moralidade de precaução” (Burges et al, 2009 citado por Gunby et al., 2016), e que assim se arriscam a promover a culpabilização da vítima, a promover a re-vitimização de quem já viveu a violência sexual, e que excluem sistematicamente a figura do agressor (Andric, 2012; Warren, 2015; Gunby et al., 2016) – o único responsável pelas situações de violência sexual. As metodologias selecionadas neste processo são todas elas de cariz participativo incluindo a educação informal, a educação não-formal e a prevenção ambiental (ou seja, a orientação para estratégias que visam a modificação dos ambientes culturais, sociais, físicos e económicos que podem influenciar os comportamentos individuais) (OEDT, 2011; Carvalho, 2016). Para oferecer ambientes de lazer noturno mais seguros e igualitários apostamos no envolvimento de empresários/as, trabalhadores/as, Dj e produtores/as culturais à ligados/as à diversão noturna com este objetivo de promover a transição para uma noite não-sexista. Nesse sentido vai ser feito um trabalho conjunto com os/as proprietários/as ou gerentes dos estabelecimentos de lazer noturno que aderiram a esta iniciativa de forma a que contemplem a igualdade de género e a prevenção da violência sexual nas suas políticas da casa, evitando o uso de conteúdos sexistas para a promoção dos seus eventos ou produtos. Paralelamente estão previstas ações de formação específicas, inspiradas em metodologias de intervenção bystander, que pretendem capacitar os/as profissionais (bartenders, seguranças, etc.) que trabalham nos estabelecimentos aderentes, para sinalizarem e intervirem/interromperem de forma não-violenta situações de assédio ou abuso sexual ou outros tipos de violência de género, promovendo-se também a implementação de um atendimento não-discriminatório.
Como forma de reconhecer e dar visibilidade ao comprometimento com a promoção de um ambiente noturno mais seguro e igualitário, os estabelecimentos aderentes irão receber a sinalética “Livre de Sexismo” (Imagem 2), com o objetivo de criar um roteiro de noite igualitária na cidade do Porto. No esforço de envolver os/as vários/as intervenientes no lazer noturno, Dj’s e produtores/as de vários géneros e estilos musicais estão também a aderir a esta iniciativa disponibilizando um conteúdo musical e uma mensagem igualitária para serem partilhadas nas redes sociais (#ZonaFunParaTodxs). Adicionalmente, sendo que os principais produtos comercializados em ambientes são bebidas alcoólicas e tendo em conta que a literatura relaciona o consumo excessivo desta substância psicoativa a várias formas de violência de género, foi proposto um workshop com as equipas de comunicação a trabalhar para empresas de produção e distribuição e bebidas alcoólicas em Portugal. O principal objetivo desta ação é discutir o papel da publicidade na perpetuação de normas hegemónicas de género que dão substrato a formas de violência que afetam desproporcionalmente as mulheres, enquanto se discute e pensa nos requisitos necessários para a criação de conteúdos publicitários não sexistas.
[…] violência ainda é legitimada e justificável por uma franja significativa da população – cerca de 1 em 5 respondentes (22% a nível Europeu e 19% em Portugal) tendem a culpabilizar a vítima de exagerar nas suas acusações e consideram que a violência contra as mulheres é frequentemente provocada pela vítima (17% a nível Europeu, 11% em Portugal)
Finalmente, tendo em conta que as principais intervenientes nas situações de violência sexual em ambientes de lazer noturno são as pessoas que a frequentam, o projeto prevê também a implementação de uma campanha de sensibilização que prevê a disponibilização de 3 tipos diferentes de materiais informativos – um dirigido a potenciais vitimas (Imagem 3), outro a potenciais agressores (imagem 4) e outro a espetadores/as (imagem 5). Estes materiais disponibilizam conteúdos informativos que pretendem empoderar potenciais vítimas, desincentivar ou reprovar o comportamento de potenciais agressores e motivar as pessoas que assistem a situações de violência a reagirem e interromper a situação de forma não-violenta.
Finalmente, para além de outras ações de educação não-formal, vai ser construído e proposto à Câmara Municipal do Porto um protocolo de Atuação em Violências Sexistas associadas ao lazer noturno da cidade, de forma a envolver o município no esforço aumentar o alcance e garantir a sustentabilidade do trabalho implementado.
Sublinhamos, por fim, que este é um projeto-piloto e o primeiro em Portugal que trabalha de forma consertada sobre a violência sexual intercecionada com a frequência de ambientes de lazer noturno e o consumo de substâncias psicoativas. Nesta medida o projeto junta-se aos esforços já implementado por várias organizações da sociedade civil que, em Portugal, têm vindo a trabalhar para desconstruir desigualdades de género estruturais que ainda persistem em todas as esferas da vida humana e contribuir para a construção de uma sociedade mais igualitária e segura para todos/as.
Imagem 1
Imagem 2
Imagem 3
Imagem 4
Imagem 5
Referências Bibliográficas
Andric, A. (2012). When anti-drinking campaigns become victim blaming campaigns, Lip Magazine. Disponível online em: http://lipmag.com/culture/when-anti-drinking-campaigns-become-victim-blaming- campaigns/
Goulding, C. & Shankar, A. (2011). Club culture, neotribalism and ritualised behaviour. Annals of Tourism Research, 38(4): 1435-1453.
Gunby, C., Carline, A. & Taylor, S. (2016). Location, Libation and Leisure: An examination of the use of licensed venues to help challenge sexual violence. SAGE Publications. Disponível no endereço: https://lra.le.ac.uk/handle/2381/37256 . [Consultado em: 17/04/2017]
Lopes, J.T. (coord.), Boia, P., Ferro, L. & Guerra, P. (2010). Género e Música de Dança. Experiências, Percursos e “Retratos” de Mulheres Clubbers. Lisboa: Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.
McRobbie, A. (1993). Shut up and dance: youth culture and changing modes of femininity. Young, (1)13, 13-31.
Noctambul@s (2016), Informe 2014/2015. Fundácion Salud y Comunidad. Disponível no endereço: http://www.drogasgenero.info/noctambulas/informes/#fb1=1. [Consultado em: 04/04/2017].
Noctambul@s (2017), Tercer Informe Anual 2015/2016. Disponível online em: http://www.drogasgenero.info/noctambulas/informes/#fb1=1. [Consultado em: 10/04/2017].
Observatório Europeu das Drogas e Dependências [OEDT](2011) European drug prevention quality standards. Luxembourg: Publications Office of the European Union.
Pordata (2014). Conhecer a crise. Obtido de: http://www.pordata.pt/Pesquisa/Lazer.
Romo, N. (2001). Género y etnografía entre personas usuarias de drogas: el caso del “extásis” en la “cultura del baile”. Trabajo social y salud, 39, 321-332.
TNS Opinion & Social (2016) Special Eurobarometer Report 449: Gender-based violence, Directorate-General for Communication of European Commission. Disponível no endereço: http://ec.europa.eu/COMMFrontOffice/publicopinion/index.cfm/Survey/getSurveyDetail/instruments/SPE CIAL/surveyKy/2115. [Consultado em: 12/03/2017]
Warren, R. (2015). We asked an expert what was wrong with these anti rape posters, BuzzFeedNews. Disponível no endereço: https://www.buzzfeed.com/rossalynwarren/we-asked-an-expert-what-was- wrong-with-these-anti-rape-poste?utm_term=.ocvNPq1Pj#.moGG8w98k. [Consultado em: 15/04/2017].