“Não Corte o Futuro!” Mutilação Genital Feminina


“Não Corte o Futuro!” Mutilação Genital Feminina

A reflexão de…

Rosa Monteiro, Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade (do XXI Governo Constitucional)

 

Percurso…

Doutorada em Sociologia do Estado, Direito e Administração, pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com a tese «Feminismo de Estado em Portugal: mecanismos, estratégias, políticas e metamorfoses». Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, no Núcleo de Políticas Sociais, Trabalho e Desigualdades, e docente do ensino superior, no Instituto Superior Miguel Torga, em Coimbra. Foi vice-presidente da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres entre 2012 e 2015.
É perita em Igualdade de Género e estudos sobre as mulheres, reconhecida pelo Instituto Europeu para a Igualdade de Género.

 

Estamos mais cientes do que nunca de que a mutilação genital feminina (MGF), ou corte, ou fanado, é uma expressão violentíssima da desigualdade, de relações de poder que determinam a subordinação da mulher ao homem – o corpo da mulher, a sua saúde e bem-estar, a sua liberdade. Esta é uma prática tradicional nefasta com implicações graves para a saúde física e psicológica de tantas meninas e mulheres. Tem crescido o conhecimento sobre a prevalência desta prática, bem como o empenho para travá-la. Saliento a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e à Violência Doméstica (Convenção de Istambul), de 2011, que trouxe um novo paradigma de abordagem à violência de género e da qual resultou, entre outras coisas, a autonomização do crime de MGF no Código Penal em Portugal.

Sempre que conhecemos ou ouvimos falar de uma menina ou mulher que foi sujeita à MGF, é impossível não pensarmos o que podemos fazer para melhor apoiá-la, mas também como podemos prevenir que o mesmo aconteça a outras meninas ou mulheres. Urge ler sinais de risco numa consulta médica ou na ausência prolongada de uma criança na escola e expor este risco a uma CPCJ. A intervenção tem forçosamente de ser local e qualificada, sob risco de cairmos num discurso de estigmatização, criminalista, que pode contribuir para ocultar ainda mais a prática e dificultar a sua prevenção. Isto mostra bem a importância da interseccionalidade no modo como trabalhamos, com atenção às desigualdades de género e àquelas com base na origem racial e étnica.

A Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não-Discriminação – Portugal + Igual assume o combate às práticas tradicionais nefastas, nomeadamente a MGF e os casamentos infantis, precoces e forçados, como um dos objetivos estratégicos do Plano de Ação de Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e Violência Doméstica, como propõe a Convenção de Istambul. Para isso temos trabalhado em várias frentes. Entre abril e outubro de 2018, empenhámo-nos na construção de um novo projeto, que designámos de “Práticas Saudáveis: Fim à Mutilação Genital Feminina”, com vista a reforçar o envolvimento dos serviços públicos na prevenção desta prática, potenciar a experiência já adquirida e assegurar uma intervenção integrada, logo mais capaz de prevenir a ocorrência da MGF. Para este fim reunimo-nos com a Secretária de Estado da Saúde e com a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT), cabendo-me destacar o apoio do Dr. Mário Durval, Diretor do Departamento de Saúde Pública da ARSLVT, bem como a disponibilidade das Direções Executivas dos Agrupamentos de Centros de Saúde a quem foi lançado o repto.

Urge ler sinais de risco numa consulta médica ou na ausência prolongada de uma criança na escola e expor este risco a uma CPCJ. A intervenção tem forçosamente de ser local e qualificada, sob risco de cairmos num discurso de estigmatização, criminalista, que pode contribuir para ocultar ainda mais a prática e dificultar a sua prevenção

Apresentado publicamente a 7 de novembro de 2018, este projeto é coordenado e monitorizado conjuntamente pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, pelo Alto Comissariado para as Migrações e pela ARSLVT, e dinamizado a nível local pelas Unidades de Saúde Pública dos cinco Agrupamentos de Centros de Saúde nas áreas de maior prevalência da MGF em Portugal: Almada-Seixal, Amadora, Arco Ribeirinho (Alcochete, Montijo, Moita, Barreiro), Loures-Odivelas e Sintra. Ancorando pela primeira vez a intervenção nos serviços de saúde mais próximos das populações, as atividades do projeto englobam a capacitação de profissionais em setores-chave (saúde, educação, justiça, forças de segurança, segurança social, entre outros) e iniciativas de intervenção comunitária para mobilizar mulheres e homens de todas as idades para o combate à MGF.

Se o envolvimento dos serviços públicos é imprescindível, não o é menos o trabalho continuado das ONG. Por isso reforçámos e reformulámos a linha de apoio financeiro específica para projetos na área da MGF, disponibilizando no total 50 mil Euros (mais 20 mil que a subvenção anterior). Este mês de março assinámos os contratos dos 8 projetos aprovados para esta subvenção e que permitirão capacitar profissionais e futuros profissionais; criar e formar um grupo de mulheres mediadoras culturais em saúde; criar uma aplicação informática dirigida a jovens, capaz de ensinar e mobilizar num formato e linguagem inovadoras; e consciencializar e capacitar para a mudança nas comunidades praticantes.

[…] promovemos o envolvimento de toda a sociedade neste desígnio coletivo. As práticas tradicionais nefastas estão integradas no novo modelo de cooperação da CIG com autarquias e fazem também parte da Estratégia Nacional da Educação para a Cidadania, que este ano se materializa através da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento em todas as escolas do país

Com o objetivo de enfatizar a mensagem de erradicação da prática, mas também convocar os vários setores (saúde, educação, associações) para participar neste trabalho, lançámos no passado dia 6 de fevereiro a campanha Não Corte o Futuro! – uma iniciativa conjunta com ACM, CIG e as ONG que tanto têm feito para combater esta prática. Esta campanha está a ser amplamente difundida quer pelos meios digitais, quer por diversos locais estratégicos (centros de saúde, escolas, associações locais, aeroportos).

Importa ainda referir que promovemos o envolvimento de toda a sociedade neste desígnio coletivo. As práticas tradicionais nefastas estão integradas no novo modelo de cooperação da CIG com autarquias e fazem também parte da Estratégia Nacional da Educação para a Cidadania, que este ano se materializa através da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento em todas as escolas do país.

No dia 13 de abril vamos reunir lideranças religiosas para um encontro sobre religião, tradição e direitos das mulheres – iniciativa organizada pelo ACM com o acolhimento entusiástico da Câmara Municipal de Sintra.

É muito o trabalho que temos pela frente, mas temos a nosso favor o ânimo de o estar a fazer todos os dias e em conjunto.