O sexo e a comunidade # 2: Algumas considerações sobre um fado bicha


O sexo e a comunidade # 2: Algumas considerações sobre um fado bicha

O sexo e a comunidade é uma rubrica nova no site da SPSC. Pessoas das mais diversas áreas de especialização e intervenção são convidadas a pensar um assunto relacionado com as suas/nossas vivências da intimidade.

Fado Bicha “é um projeto musical e ativista composto por Lila Fadista (voz) e João Caçador (guitarra elétrica e outros instrumentos). Em todas as suas vertentes (temática, lírica, visual, musical) assenta sobre uma premissa de subversão da regra heteronormativa. Mais ainda quando a matriz de referência e a matéria sobre a qual trabalham é o fado, um estilo musical conservador nutrido por um meio tradicionalista. Através da alteração de poemas já cantados e da criação de novos, criam-se espaços para a experimentação de narrativas não normativas no que toca ao género e à sexualidade. É fado até ao tutano, intenso e rasgado, e é bicha porque usa a subversão como linguagem de identidades tão pouco representadas”.

Lila Fadista e João Caçador

Próximo concerto: dia 6 de abril, às 22h, na SMUP (Parede), integrado no evento “Lisboa, sê feminista”.

Fotografia: Carla Rosado

Data: 3 de Abril de 2019

Será que o conceito de tradição nos pode incluir? A nós, que temos uma sexualidade dissidente, sobre a qual a tradição doutrina não se poder falar na escola, ou não se nomear na presença de crianças? A nós, que repensamos continuamente o significado das palavras que repetimos por hábito, que tentamos resistir à tentação de desvalorizar o que perturba a nossa conceção das coisas, a nossa tranquilidade de certezas? A nós, que somos putas em voz alta, que celebramos o corpo e a eterna mutação criativa dos costumes, que nos ampare, que nos desafie, mas que não nos tolha?

Somos herdeiros de um conjunto de saberes e perspetivas, fora das quais não nos conhecemos e em que lemos, desde muito cedo, a não-pertença. Ou uma pertença condicional, que exige que deixemos de fora desse caldo um conjunto de elementos que fazem parte da nossa identidade (insinuante, devastadora) e os sacrifiquemos por um bem comum, que é a manutenção do status quo, e um bem individual, que é a ausência de violência.

Crescidos, emancipados, beneficiários de um conjunto de privilégios que nos permitiram ao longo do tempo ter a força, o discernimento e a possibilidade de sair dos vários armários em que nos fomos (des)confortavelmente instalando, chegamos a este ponto, em que olhamos de frente a necessidade de fazer confrontar a bagagem cultural que carregamos com as nossas identidades bichas, com as nossas narrativas estranhas, desarranjadas, um pouco monstras. E sabemos que este esticar da linguagem tradicional causa resistência, até para nós, que vamos experimentando, alargando a nossa própria capacidade expressiva à medida que nos permitimos dessacralizar elementos dessa linguagem e fazê-los interagir com as nossas experiências, os nossos conhecimentos, os nossos corpos insurrectos.

Curioso que, num primeiro momento, esse movimento tenha sido quase cândido e a vontade temperada de incerteza, como todas as experimentações, era a de deixar jorrar um ímpeto criativo que ainda não tinha nome nem fisicalidade. Fazer, apenas, ser, apenas. A noção perfeita do caráter subversivo desse ser e desse fazer específicos construiu-se depois, à medida que, em diálogo interno, entre os dois e com o mundo, fomos acrescentando camadas de entendimento e, necessariamente, de resistência à nossa atividade. Sabemos que a nossa premissa é repulsiva para muitos, excitante para tantos outros. É-o, também, porque as nossas histórias, os nossos corpos, os nossos sexos ainda são vistos como existências sujas, que, na melhor das hipóteses, podem ter o seu lugar de fala e pertença num universo que não seja visível para todos, onde não conspurquem a língua franca, o suave devir dos dias previstos.

Alguns dizem que noção é, precisamente, o que nos falta. Noção do ridículo, muitas vezes. O ridículo como corolário inescapável da subversão bicha, como preâmbulo para a violência. Não podemos senão aceitar esse ridículo e regozijar-nos nele, como musas na lama. Partilhamos o ringue com uma comunidade sedenta, enervada, extática, onde precisamos de referências positivas. E a luta que encetamos é também interna, mas, desta vez, é pelo Norte de sermos fiéis a nós próprias.

Lila Fadista e João Caçador