Redescobrir a sexualidade na deficiência física


Redescobrir a sexualidade na deficiência física

À conversa com…
Jorge Cardoso, Psicólogo Clínico com o grau de Especialista, doutorado em Ciências Biomédicas, Terapeuta Sexual e Professor Associado no Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz.


Email
jorgecardoso.psi@gmail.com

 

Data
11 de Junho de 2017

 

Entrevista

Isabel Freire

Para os cuidadores de saúde das pessoas com deficiência física, reabilitar a funcionalidade tem ainda um “estatuto” diferente de reabilitar a sexualidade. Um estatuto de maior relevância. É esta a percepção de Jorge Cardoso, psicólogo clínico e terapeuta sexual (professor no Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz), que desenvolveu uma investigação de doutoramento pioneira sobre o tema, no nosso país.

O desafio de reabilitação sexual que se coloca a estas pessoas, passa por uma redescoberta do corpo, do erotismo e da sexualidade. Mas também por uma desconstrução dos discursos dominantes que ‘hiperidealizam’ o corpo, e focam a sexualidade na genitalidade e no orgasmo.

Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica – A sexologia clínica dá hoje a devida atenção ao estudo e intervenção na doença crónica, em geral?

Jorge Cardoso – A sexologia em geral, e a clínica em particular, vão dedicando progressivamente maior atenção às sexualidades que se enquadram nas “margens” (e que incluem não só a sexualidade na doença crónica, mas também na deficiência e no envelhecimento). Todas têm como denominador comum uma percepção geral (falaciosa) de não-sexualidade, de sexualidade disfuncional ou de secundarização da mesma. Mas a realidade demonstra que estas pessoas continuam a atribuir importância à esfera sexual. Continuam a envolver-se sexualmente. E por vezes a confrontarem-se com dificuldades, para quais a sexologia tem ferramentas que podem contribuir para uma vivência mais satisfatória da sua sexualidade.

SPSC – Faz sentido continuar a falar de deficiência física? Ou há algum termo mais adequado?

JC – Quando um termo adquire um significado desgastado pela erosão do preconceito ao longo dos anos, há uma tendência para encontrar um outro que o substitua. Atualmente tem-se vindo a impor de forma crescente o termo diversidade funcional. Infelizmente a alteração da terminologia não se faz acompanhar, à mesma velocidade, de mudanças nas atitudes perante as pessoas com deficiência.

SPSC – Que estigmas desvalorizantes e discriminatórios da deficiência física sente que persistem na sociedade portuguesa?

JC – O slogan “todos diferentes, todos iguais” está muito longe da prática efetiva. Hoje, como no passado, a diferença tende a ser conotada com aquilo que se afasta da normatividade (e por vezes, da normalidade), desqualificando, inferiorizando e discriminando o seu portador. Este processo, na maior parte da ocasiões, não reflete qualquer intencionalidade maléfica. Apenas cristaliza o resultado de séculos de construção social negativa da deficiência física.

SPSC – “Quando perguntei de que forma a minha condição poderia afetar a minha vida sexual, responderam-me [num contexto de cuidados médicos]: parece impossível que você, com um problema tão grave, esteja preocupado com essas coisas.” Cita este depoimento num artigo que publicou em 2003. Que pré-conceitos estão contidos na observação deste/a profissional de saúde?

JC – Numa resposta simplificada diria que ilustra a mais elementar falta de bom senso, eventualmente acompanhada de algum tipo de constrangimento sexual de quem a proferiu. Mas é possível desconstruir o significado da afirmação. A deficiência física remete para a perda ou alteração de uma estrutura ou função corporal, estando portanto relacionada com uma maior probabilidade de problemas de saúde (dor, mal-estar, fadiga, imprevisibilidade). A sexualidade reenvia para o prazer, satisfação, partilha. As entidades deficiência/sofrimento e sexo/prazer tendem a ser percecionadas como de difícil coabitação. Esta coexistência (algo complexa e ambivalente) confronta-se com uma atitude ao nível dos profissionais de saúde que privilegia a dimensão funcional da pessoa com deficiência. Privilegia os aspectos relacionados com a maximização da autonomia. Quanto à vertente psicológica – designadamente a necessidade de reestruturar o seu projeto de vida a partir de um corpo diferente daquele que existia antes do aparecimento da deficiência física – é ainda (demasiadas vezes) um processo inteiramente individual. Na confluência destas duas dimensões – física e psicológica –, que exigem readaptações, emerge a esfera sexual. Por vezes (demasiadas vezes) é esquecida, negligenciada, secundarizada, adiada.

SPSC – Hoje em dia, esta visão ainda é frequente?

JC – Quero acreditar que mesmo quando a referida afirmação foi verbalizada, não veiculava a postura dominante. Nos últimos 10/15 anos evoluiu-se de forma significativa. Na formação em sexologia. Na disponibilidade para “olhar” a saúde sexual como parte integrante da saúde global – ainda mais depois de inúmeras investigações terem demonstrado a sua forte associação ao bem-estar psicológico e à qualidade de vida.

Apesar da sexualidade das pessoas com deficiência física marcar uma cada vez maior presença na “agenda” dos cuidadores de saúde, ainda existe um longo caminho a percorrer até que a reabilitação sexual tenha o mesmo “estatuto” da reabilitação funcional.

SPSC – As barreiras afetivo-sexuais que sentem – homens e mulheres – com o surgimento de deficiência física, é muito diferente? Há aspectos recorrentes nas preocupações deles e delas?

Aparentemente as mulheres revelam menores dificuldades no processo de reajustamento sexual. Uma das explicações poderá advir do facto de frequentemente terem uma visão mais flexível da sexualidade, o que lhes permite um maior território readaptativo. O reducionismo, por parte de alguns homens, da sexualidade ao aparecimento de ereção e à sua utilização no decurso do coito, poderá levar à conclusão de que se “acabou para a sexualidade”, quando ocorrerem circunstâncias de alterações neurofisiológicas perturbadoras da resposta erétil. Esta visão em “banda curta” encontra-se muito menos presente no género feminino. Facilita uma postura que ultrapasse as fronteiras da sexualidade funcional.

Por outro lado, as questões em torno da imagem corporal no pós-deficiência tendem a ter um impacto mais negativo nas mulheres. Manifestam-se através de auto-desvalorização e de expectativas de baixa atratividade e de inadequação sexual.

SPSC – Como se pode trabalhar a auto-percepção das pessoas com deficiência física, numa sociedade em que predominam na esfera pública e mediática os discursos do corpo sem imperfeições?

JC – Muitos dos obstáculos que as pessoas com deficiência encontram na sua readaptação sexual resultam de estigmas, estereótipos negativos e atitudes preconceituosas e discriminativas construídas socialmente.

Para além de desafiarem as barreiras sociais, físicas, políticas e atitudinais, estas pessoas necessitam igualmente de se auto-desafiarem nas suas representações, desenvolvidas e consolidadas durante a não-deficiência. Do ponto de vista terapêutico trabalha-se a redescoberta do corpo, do erotismo e da sexualidade, fundamentada numa base que contrarie a aceitação passiva e conformada dos discursos dominantes sobre a corporalidade e a sexualidade.

O alargamento do leque de interesses eróticos e de iniciativas sexuais, poderá contemplar a (re)valorização das zonas erógenas ditas secundárias e da sexualidade extra-genital, a adoção de posições compatíveis com as aptidões físicas, o uso de novas técnicas sexuais, a amplificação sensorial, entre outras

SPSC – Defende que a reabilitação sexual destes pessoas deve alicerçar-se numa matriz alargada, que ultrapasse as fronteiras de uma sexualidade genital e orgásmica. Em que consiste este alargamento?

JC – Esse alargamento passa por tudo aquilo que faça sentido ao par sexual. A reabilitação sexual estrutura-se através de duas linhas mestras: avaliação das competências sexuais que persistem após a instalação da deficiência física e potencialização dessas competências, que obviamente não se reduzem à “mecânica sexual”. A sexualidade pós-deficiência física pode variar numa amplitude que vai desde o retorno às praticas que vigoravam antes da deficiência, até um conjunto de readaptações sexuais compatíveis com as exigências da nova condição. O alargamento do leque de interesses eróticos e de iniciativas sexuais, poderá contemplar a (re)valorização das zonas erógenas ditas secundárias e da sexualidade extra-genital, a adoção de posições compatíveis com as aptidões físicas, o uso de novas técnicas sexuais, a amplificação sensorial, entre outras.

Se atentarmos na definição de Saúde Sexual proposta pela OMS, deparamo-nos com uma conceitualização extremamente flexível, que nos permite entender a sexualidade à luz de uma matriz muito diversificada de comportamentos capazes de proporcionar afetividade, intimidade e satisfação sexual.

SPSC – Esse trabalho não poderia ter vantagens se alargado às pessoas em geral, com mais ou menos eficiência física?

JC – Sim, sim e sim! Mas, como diz o ditado popular, “a necessidade aguça o engenho”. O falocentrismo (embora mais atenuado do que no passado) continua a ser dominante, realçando a sexualidade funcional, centrada no desempenho. Não obstante o reconhecimento do continuum de práticas sexuais, das quais o sexo penetrativo representa apenas uma parte, persiste a falácia de que a verdadeira sexualidade é genital e orgásmica. Os próprios media transmitem-nos um modelo fantasioso da sexualidade, caracterizado por múltiplas hiperidealizações e sustentado em corpos perfeitos, saudáveis, jovens, dotados das melhores técnicas sexuais… e de preferência bonitos. De facto, a desconstrução destes guiões hegemónicos que a sexualidade no pós-deficiência pode exigir, tenderia a ser uma mais-valia em muitas outras sexualidades marcadas pela rigidez dos padrões reducionistas e repetitivos.

SPSC – É mais fácil ajudar a pessoa a lidar positivamente com a sua sexualidade, se a deficiência física for congénita (do que se for adquirida)?

JC – As situações de deficiência congénita em princípio são mais lineares. Em grande medida por não existir um referencial prévio comparativo. A pessoa sempre se “conheceu” assim. Desenvolveu-se, despertou, experimentou-se e adaptou-se sexualmente sempre a partir de um “corpo alterado”. Na deficiência adquirida existe um histórico sexual que tende a conduzir a uma (excessiva) otimização do passado – dantes corria tudo muito bem – e a uma (excessiva) ‘pessimização’ do presente – agora tudo corre mal.

[…] a desconstrução destes guiões hegemónicos que a sexualidade no pós-deficiência pode exigir, tenderia a ser uma mais-valia em muitas outras sexualidades marcadas pela rigidez dos padrões reducionistas e repetitivos

SPSC – Defende que a reabilitação sexual deve ser realizada por equipas multidisciplinares com formação específica em sexologia. Avançámos pouco, avançámos o suficiente ou avançámos muito na formação e implementação destas equipas nos serviços públicos e privados no nosso país?

JC – Avançamos lentamente, com a certeza de que ainda há muito caminho a fazer. Considero que a reabilitação sexual pode ser realizada por qualquer membro da equipa multidisciplinar, desde que possua formação em sexologia e esteja inteirado das especificidades associadas a cada tipo de deficiência.

A intervenção poderá apresentar duas dimensões complementares e simultâneas. Uma dimensão perspectivada sintomaticamente e visando um alargamento criativo dos interesses, iniciativas e práticas sexuais. Outra dimensão conducente à criação de uma nova atitude em relação à sexualidade, no sentido de ajudar a pessoa com deficiência a sentir-se realizada nesta área e no sentido de auxiliar o par sexual a melhorar a qualidade da relação afetivo-sexual.

Não esqueçamos contudo que pessoa portadora de deficiência (tal como a de corpo são) tem o direito de determinar se se quer expressar sexualmente ou não. Deste modo, o aconselhamento sexual deverá orientar-se no sentido de promover a capacidade das pessoas tomarem decisões em todos os aspectos da sua vida, incluindo a dimensão sexual.

Publicações de Jorge Cardoso em torno do tema:

Cardoso, J. (2016). Educação sexual na deficiência física e mental: Estratégias de intervenção. Educação Inclusiva, 7(2), X-XIII.

Cardoso J. (2014). Doença, imagem corporal e sexualidade. In: N. Monteiro Pereira (coord.). Sexologia Médica (pp. 453-470). Lisboa: Lidel.

Cardoso, J. (2010). Corporalidade e sexualidade – Discursos e práticas. Acta Portuguesa de Sexologia, V(1), 21-31.

Cardoso J. (2006). Sexualidade e Deficiência. Coimbra: Quarteto.

Cardoso J. (2006). (In)capacidade, género e sexualidade. In: I. Leal (coord.). Perspectivas em Psicologia da Saúde. (pp.169-185). Coimbra: Quarteto.

Cardoso, J. (2004). Sexualidade na doença crónica e na deficiência física. Revista Portuguesa de Clínica Geral, 20(3), 383-394.

Cardoso, J. (2003). Reabilitação sexual pós-deficiência física: Um modelo multidimensional. Sexualidade e Planeamento Familiar, 37, 5-10.

Cardoso J. (2003). Sexualidade e deficiência física. In: L. Fonseca, C. Soares & J. Machado Vaz (coord.). A sexologia – Perspectiva multidisciplinar (Volume I, pp. 499-511). Coimbra: Quarteto.