“Ter cancro não significa o fim da vida sexual”
Graça Santos, psiquiatra, psicooncologista, terapeuta sexual e coordenadora da histórica consulta de sexologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (criada em 1975) dedica-se à compreensão e intervenção terapêutica da sexualidade junto do doente oncológico. Fomentar a comunicação do casal, desmistificar crenças erradas, promover a não dessexualização do doente e da relação, e valorizar formas menos genitalizadas de realização sexual são algumas estratégias recomendadas por esta especialista, que é também membro da Direção da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica.
Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica: Muito genericamente, o que retiram as doenças graves à nossa conjuntura pessoal sexual?
Graça Santos: As doenças graves, como o cancro, ameaçam a perspetiva de futuro antecipado. Trazem consigo o sofrimento, quer físico quer psicológico. Diminuem o indivíduo, conferem-lhe o estatuto de doente, privando-o de se sentir como um ser sexual, desejável. A forma como a pessoa se vê a si própria ou como vivencia o seu corpo, bem como a relação com o parceiro/a modificam-se significativamente.
SPSC: As doenças oncológicas são particularmente lesivas da sexualidade? Porquê?
GS: A maioria dos doentes com cancro sente dificuldades ou apresenta disfunções sexuais em consequência da doença e seus tratamentos. Desde logo porque o processo patológico pode atingir órgãos ou estruturas importantes para a resposta sexual. Os efeitos dos tratamentos sobre a sexualidade não são menores. A autoimagem é afetada pelas cirurgias mutilantes, pela aparência e alopécia resultantes da quimioterapia. As alterações hormonais resultantes de algumas terapêuticas comprometem o desejo, a ereção no homem e a lubrificação vaginal na mulher. A tudo isto, somam-se as reações emocionais de ansiedade e humor depressivo que adquirem maior intensidade em determinados períodos da doença. Habitualmente, esses estados de sofrimento psicológico são inibidores do desejo sexual.
SPSC: Em termos gerais, em que fase da doença pode e deve o médico abordar a questão da sexualidade? Diagnóstico, tratamento, recuperação ou vigilância?
GS: A questão da sexualidade deve ser abordada numa fase inicial. É provável que para algumas pessoas, perante o choque do diagnóstico, a sexualidade não seja uma preocupação relevante. Porém, para outras, estas questões tornam-se muito prementes desde o diagnóstico. É necessário que, no espaço terapêutico, o doente ou o casal sintam que podem falar deste assunto, colocar as suas questões e obter respostas esclarecedoras. Os prestadores de cuidados não devem partir do pressuposto que alguém que está a enfrentar uma doença oncológica não vai preocupar-se com a sexualidade. Na grande maioria dos casos, essa suposição é errada. Ao longo do curso da doença surgirão questões e dificuldades diferentes que devem merecer resposta à medida que vão sendo colocadas. Seguramente a problemática sexual do sobrevivente será diferente na fase dos tratamentos.
SPSC: Imagino que dentro do largo espetro das doenças oncológicas, haja algumas que sejam especialmente nocivas para a saúde sexual feminina e masculina. Estou a pensar por exemplo no cancro de mama ou cólo do útero (para a mulher) e no cancro da próstata (para o homem). Isto faz sentido ou não?
GS: Faz todo o sentido. Se o órgão ou parte do corpo atingido é essencial para a resposta sexual e desempenho da atividade sexual, terá seguramente um impacto muito maior. Também psicologicamente o caráter dessas mesmas partes do corpo associadas à masculinidade/feminilidade, ou fertilidade, tornam mais dramáticos os efeitos nefastos na sexualidade. É o caso do cancro da próstata no homem e dos cancros da mama e ginecológico na mulher. Na sociedade ocidental a mama reveste-se de um forte significado e simbolismo de feminilidade e erotismo. A mastectomia é uma cirurgia mutiladora que faz a mulher sentir-se desvalorizada, afetando a sua autoimagem e autoestima, impedindo-a, muitas vezes, de se ver como um ser sexualmente desejável.
SPSC: Intervém-se sobretudo quando estamos perante pacientes jovens, ou a medicina e a psicologia não fazem esta distinção?
GS: É compreensível que para um casal jovem que ainda não teve os filhos que desejaria, que está numa fase de vivência pujante da sexualidade, o diagnóstico de cancro seja um golpe brutal em todos os seus projetos de vida e muito particularmente na sexualidade e fertilidade. Isto não significa que a sexualidade da pessoa de meia-idade e dos idosos, deva ser desvalorizada. A abordagem da problemática sexual deve ser proporcionada de igual forma. O mesmo deve acontecer em relação a casais homossexuais ou pessoas que não têm companheiro.
SPSC: Que acompanhamento terapêutico da sexualidade se recomenda no caso de uma mulher que lida com um cancro de mama ou do colo do útero? Psicologicamente, o que é preciso em concreto ‘reabilitar’?
GS: A informação a prestar à mulher e ao companheiro sobre o que é expectável como consequência dos tratamentos, o que é passageiro e o que pode constituir sequelas definitivas, ajudando a lidar com os eventuais problemas, tem-se revelado uma importante medida preventiva. Fomentar no casal uma comunicação eficaz sobre sexualidade, desmistificar crenças erradas, promover a intimidade sexual e a não dessexualização da doente e da relação são algumas das abordagens a realizar no espaço terapêutico. Oferecer possibilidade de reconstrução mamária e promover a melhoria da autoimagem também contribuem para uma sexualidade saudável na sobrevivente de cancro da mama.
A inclusão e colaboração da companheira(o) na renegociação de uma nova intimidade sexual após o cancro mostram-se fundamentais na reabilitação sexual
SPSC: O/a companheiro/a são integrados nesse processo?
GS: A integração do companheiro (a) é fundamental. Não só porque este pode fomentar a confiança da mulher em si própria melhorando a sua autoestima, mas também porque ele próprio está a passar por um período de dificuldades emocionais, eventualmente sexuais, necessitando também de suporte e orientação.
SPSC: E se o paciente for homem, e a doença oncológica for na próstata, que acompanhamento se propõe ao doente e o que é preciso reabilitar?
GS: A percentagem de Disfunção Erétil é elevada nos homens submetidos a prostatectomia radical e terapia hormonal. A sexualidade é encarada com ansiedade e medo. O homem sente-se ameaçado na sua masculinidade, o que muitas vezes resulta no evitamento de toda a situação de intimidade, afastando-se o casal emocionalmente. Para além de medidas médicas de reabilitação peniana, a terapia sexual promove a valorização de outras formas menos genitalizadas de realização sexual que não hipervalorizem o coito. A inclusão e colaboração da companheira(o) na renegociação de uma nova intimidade sexual após o cancro mostram-se fundamentais na reabilitação sexual.
SPSC: Há também pacientes que se recusam a falar destas questões, considerando-as absolutamente secundárias, insignificantes?
GS: Sim, há doentes para quem estes aspetos são menos importantes em determinadas fases da doença, o que não quer dizer que não venham a mostrar-se importantes mais tarde. Algumas pessoas também se mostram desinteressadas da sexualidade porque, previamente à doença, não valorizavam esta dimensão nas suas vidas, ou a sua vivência já era problemática. Tal atitude deve ser respeitada pelos terapeutas, após terem esclarecido que tal não corresponde apenas a embaraço ou vergonha, em falar de assuntos íntimos.
SPSC: O confronto com uma situação limite pode também colocar o doente numa situação de reboot, ou seja, de um renascimento para a vida, para a forma de se ver e de se relacionar com os outros, trazendo amanheceres inesperados, nomeadamente ao nível sexual, ou isto é uma ideia que só vem nos filmes?
GS: Ter cancro não significa o fim da vida sexual. Mas, seguramente, a experiência será diferente, embora não necessariamente menos compensadora. Alguns casais encontram numa maior intimidade afetiva níveis de partilha e proximidade física muito gratificantes. Sentem que apreciam o companheiro mais profundamente e descobrem formas de ter prazer para além do imperativo coital. Ao contrário de lamentarem as perdas, adaptam-se e celebram a experiência presente. Não surpreendentemente, estes são casais que, no passado, tinham níveis altos de satisfação sexual e não tinham barreiras à comunicação sobre sexualidade e intimidade.
SPSC: Que unidades hospitalares dispõem de um serviço de terapêutica sexual para a doença oncológica, no nosso país?
GS: A intervenção a nível da saúde sexual no doente com cancro deve ser realizada multidisciplinarmente pelos profissionais da equipa prestadora de cuidados, organizada numa resposta gradual e crescente. Num primeiro nível de intervenção cabe ao médico que trata o doente, ou a outro elemento da equipa prestadora de cuidados (enfermeiro, psicólogo), avaliar a sexualidade, fornecer informação, orientar o retomar gradual da atividade sexual e fomentar a comunicação sexual no casal. Alguns casais necessitarão de uma intervenção mais estruturada de terapia sexual na abordagem da disfunção sexual. No IPO de Lisboa funciona uma consulta de oncossexologia. Nas outras unidades esta temática pode ser endereçada em consulta de psicooncologia, ou o doente pode ser referenciado para consulta de sexologia. Também as Unidades de Psico-Oncologia da Liga Portuguesa Contra o Cancro fornecem serviços clínicos em Sexologia Clínica.
SPSC: Na clínica privada existem suficientes terapeutas sexuais especializados a trabalhar estas questões?
GS: Não conheço cabalmente a realidade ao nível da clínica privada.
SPSC: Faz-se investigação nesta área da saúde sexual no nosso país?
GS: Não conheço investigação muito robusta nesta área. Em teses de mestrado/doutoramento ou monografias de formação pós-graduada em sexologia clínica, a temática da sexualidade e cancro (sobretudo o cancro da mama) tem sido abordada com frequência. No entanto, daquilo que conheço, alguns destes trabalhos são revisões da literatura, e os trabalhos de investigação baseiam-se em pequenas amostras clínicas.