“A consagração da autodeterminação de género na legislação compete aos estados”
À conversa com…
Sandra Palma Saleiro, socióloga (ISCTE-IUL)
Investigação de Pós Doutoramento (financiada pela FCT)
“Diversidade de Género, Cidadania e Saúde”, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do ISCTE-IUL
Data
4 de Abril de 2017
Isabel Freire
É socióloga e altamente repetente no estudo das realidades trans no nosso país. Depois de um doutoramento sobre o tema, Sandra Palma Saleiro regressa com uma investigação de pós doutoramento acerca da “Diversidade de Género, Cidadania e Saúde”, no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do ISCTE-IUL. Nesta entrevista defende que compete ao Estado garantir a todos/as os/as cidadãos/ãs o direito à autodeterminação de género. E que estamos no princípio de “um processo que levará ao fim do modo como temos vindo a perspetivar o género e a sua relação com as características biológicas”.
Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica – Tem em mãos uma nova pesquisa em torno da transexualidade. Que interrogação a motiva?
Sandra Palma Saleiro – No doutoramento mapeei a diversidade de identidades e expressões de (trans)género que encontramos numa população muitas vezes vista como homogénea. O principal objetivo era contribuir para a “literacia do transgénero” na sociedade portuguesa, evidenciando que há formas de se ser trans, para além da transexual. A interrogação que norteia o novo projeto de investigação é a de perceber como é que essa diversidade está a ser (ou poderá ser) acolhida e traduzida, quer a nível legislativo, quer a nível dos cuidados de saúde. Esta discussão é particularmente importante numa altura em que o direito à identidade de género de todas as pessoas tem vindo a ser proclamado internacionalmente como um direito fundamental da humanidade, e em que estão na agenda nacional alterações à chamada “lei de identidade de género” (lei que regulamenta a alteração de nome e menção ao sexo nos documentos de identificação).
SPSC – Que caminho vai percorrer para lhe dar resposta?
SPS – Passará pela compilação e análise de documentos de referência (nacionais e internacionais) aos níveis jurídico e político, clínico e associativo. E por entrevistas a representantes do associativismo T e a profissionais de saúde implicados nos cuidados a esta população. No centro da análise estarão entrevistas aprofundadas às próprias pessoas trans, “recuperando” parte da população auscultada em momento anterior à entrada da “identidade de género” na legislação [portuguesa] – e que possibilitará aferir o impacto da mudança –, mas “acrescentando” novas pessoas, outras expressões de género que entretanto se tornaram mais visíveis na sociedade portuguesa, bem como pessoas que fizeram o seu coming out de género já após a disponibilização da regulamentação legal. A produção de conhecimento sobre a identidade de género e sobre as vidas das pessoas trans só pode ser alcançado através do discurso das próprias pessoas, do acesso à sua “experiência vivida”.
SPSC – Nos últimos 10 anos, as ciências sociais em geral e a sociologia em particular, passaram a ver a transexualidade com olhos muito diferentes?
SPS – Eu diria que, em primeiro lugar, passaram a “ver” a transexualidade e outras identidades e expressões trans como seu legítimo objeto de estudo. Isto porque, até praticamente essa altura, eram escassos os trabalhos oriundos das ciências sociais sobre transgénero a nível internacional, e eram nulos a nível nacional. Claro que esse desinteresse (ou até negligência) das ciências sociais pela transexualidade e outras formas de transgénero terá que ver com o facto de socialmente serem vistas como patologias e, como tal, ficando confinadas e reservadas ao campo das ciências psico-médicas.
Nos últimos anos (sobretudo já neste século) as ciências sociais, e especificamente a sociologia, contribuíram para uma mudança de paradigma: a transexualidade e outras expressões transgénero foram sendo recolocadas, da patologia à esfera dos direitos humanos. Isto acontece também graças à ação das próprias pessoas trans, na sua vertente académica e associativa.
Para além da mudança de nome e menção ao sexo no registo civil, há ainda que ter em atenção aspetos relacionados com a saúde e a educação.
SPSC – O que é que os ativistas trans portugueses consideram ser as principais inadequações ou omissões da lei portuguesa de 2011?
SPS – É preciso começar por dizer que a lei 7/2011 foi uma lei inovadora e a melhor das chamadas “leis de identidade de género” à época. Foi a primeira a não exigir qualquer transformação corporal para o reconhecimento legal de nome e menção ao sexo nos documentos de identificação. Porém, a lei faz depender estas alterações de um diagnóstico médico que ateste “perturbação de identidade de género”. Este é um aspeto que a torna obsoleta, pois esta designação já não consta do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria. Foi substituída por “disforia de género”. As mais recentes recomendações e resoluções internacionais vão no sentido de fazer vigorar o princípio da autodeterminação [é a própria pessoa a atestar a não conformidade entre o género com que se identifica e o género que lhe foi atribuído]. A autodeterminação já está prevista em legislações aprovadas mais recentemente, em países europeus como Malta, Irlanda, Dinamarca e Noruega. Mas há outras inadequações da lei portuguesa, como por exemplo a idade de acesso ao reconhecimento legal de género, que ainda se fixa nos 18 anos. Além disso, há todo um conjunto de aspetos que preocupam as pessoas e associações trans, nomeadamente o da acessibilidade e qualidade dos cuidados de saúde.
SPSC – As possibilidades de viver e exprimir os géneros mudaram muito em Portugal (e no mundo) desde essa altura (2011)?
SPS – A sociologia ensina-nos que as identidades, experiências e vivências das pessoas não podem ser isoladas das possibilidades oferecidas pelos contextos em que se inserem. Nesse sentido, a própria entrada da “identidade de género” na legislação – através da lei de regulamentação da mudança de nome e menção ao sexo nos documentos de identificação, mas também no Código Penal (2013), no Código do Trabalho (2015) ou até no Estatuto do Aluno (2012) – não sendo suficiente para acabar com a discriminação, veio conferir uma maior visibilidade e uma outra legitimidade à vivência e experiência de identidades fora do cisgénero [pessoa que tem uma identidade de género idêntica à que lhe foi atribuída à nascença]. Por exemplo, é agora possível que uma pessoa trans viva legalmente no género com que se identifica sem ter passado por qualquer alteração corporal. Ou que que uma pessoa viva toda a sua vida adulta com documentos em consonância com o género a que sente pertencer. Uma das grandes mudanças a que temos vindo a assistir nos últimos tempos em muitas partes do mundo (e também em Portugal) é a emergência de uma nova categoria: “crianças trans” ou “diversas em termos de género”. Não porque seja uma realidade nova, mas porque só agora estão a ser reconhecidas como tal, nomeadamente numa dimensão familiar, fundamental nesta etapa da vida.
SPSC – Que aspetos lhe parecem essenciais que sejam garantidos na alteração à Lei da Identidade de Género, que aí vem?
SPS – A nova “lei de identidade de género” deverá traduzir o reconhecimento do direito universal à identidade de género. Isto implica assegurar três aspetos, mencionados na Resolução 2048(2015) da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa: que o reconhecimento seja efetuado com base na autodeclaração sem qualquer outra exigência (como nas leis de Malta, Irlanda, Dinamarca e Noruega); que esteja acessível a todas as pessoas independentemente da sua idade, o que implica considerar as pessoas menores de idade (já acontece em Malta e na Noruega); que preveja possibilidade(s) de registo alternativa(s) às duas tradicionais. Os dois primeiros estão patentes nos projetos de lei do BE e do PAN já conhecidos. E pelo menos o primeiro está também assegurado no projeto do Governo, que ainda será apresentado.
Para além da mudança de nome e menção ao sexo no registo civil, há ainda que ter em atenção aspetos relacionados com a saúde e a educação. Espera-se que os cuidados de saúde, que devem ser assegurados pelo SNS, estejam disponíveis descentralizadamente, sejam dotados de recursos, sigam as guidelines internacionais e sejam baseados na autodeterminação de corpo. Outro setor estratégico é o da educação. Para além de medidas que promovam a inclusão de crianças e jovens, deve haver uma política transversal de familiarização com identidades e corpos fora do cisgénero. E deve ser encarada como estratégica a formação aos profissionais da saúde, da educação, da administração pública, etc..
SPSC – A polémica em torno da autodeterminação da identidade de género traduz-se por um antagonismo entre duas visões (patologia versus direitos humanos)? Ou esta é uma redução demasiado simplista?
SPS – Eu diria que é cada vez menor a polémica. E cada vez maior o consenso em torno da autodeterminação de género. O princípio básico de que ninguém melhor do que a própria pessoa saberá aquilo que sente e quer para si, num aspeto tão estruturante da sua vida como é o género, parece agora por demais evidente para ser rebatido. O argumento tradicional para defender a inscrição da transexualidade e outras expressões de transgénero como doenças mentais (o argumento da patologização) nem era o de que as pessoas trans fossem doentes mentais, mas sim que essa inscrição era condição imprescindível para o acesso aos cuidados de saúde no âmbito dos sistemas públicos. No entanto, a primeira lei baseada na autodeterminação (a lei argentina, que entrou em vigor em 2012) veio demonstrar que autodeterminação de género e direito aos cuidados públicos de saúde por questões relacionadas com a identidade de género não são incompatíveis. Depende da vontade dos estados.
SPSC – A autodeterminação da identidade de género é defendida por médicos e psicólogos em países que aprovaram legislação nesse sentido?
SPS – Na Noruega, o mais recente país europeu a aprovar uma lei de identidade de género baseada na autodeterminação, o processo de conceção da lei contou com um grupo de trabalho constituído por elementos da sociedade civil, entre os quais pessoas trans, juristas e médicos. Também a Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgénero (WPATH), responsável pela conceção de protocolos de cuidados para a saúde de pessoas trans (Standards of Care), emitiu em 2015 uma declaração onde se diz que nenhum tratamento ou diagnóstico médico é um marcador adequado para a identidade de género. A consagração da autodeterminação de género na legislação não é uma decisão que compete aos/às profissionais e organizações de saúde, mas aos Estados. Estão obrigados à proteção e reconhecimento do direito de todos os seus cidadãos/ãs, e obviamente também dos/das que se situam fora do cisgénero. Devem atender a recomendações a esse respeito já emitidas por entidades como a ONU ou o Conselho da Europa.
É crucial continuar a investir em estudos que assentem na “experiência vivida” das pessoas (seus sentimentos, necessidades e desejos) e auscultar/criar plataformas de participação das pessoas trans e das associações que as representam, nas discussões e nas decisões que se tomem a seu respeito.
SPSC – Quem é que lhe parece que sofre habitualmente maior discriminação social? Um/uma transexual em processo de reatribuição de sexo ou uma pessoa trans que reclama uma terceira (ou neutra) identidade de género, sem recorrer a nenhuma intervenção médica de reajustamento do corpo?
SPS – A discriminação é transversal. Mas a expressão da feminilidade é duplamente penalizada. As mulheres trans, ou as pessoas fora do cisgénero que expressam a feminilidade, sofrem uma dupla discriminação: por expressarem a feminilidade (socialmente mais vulnerável) e por serem vistas como expressando-a “ilegitimamente”. Por isso é essencial que as políticas anti discriminação e de defesa dos direitos das mulheres tenham em especial consideração a estas pessoas. Alguém com as transformações corporais realizadas, e os documentos de identificação em consonância, estará mais protegida. Se falarmos das proteções do Estado, as pessoas transexuais são as que estão em melhor posição atualmente em Portugal, tanto ao nível da possibilidade do reconhecimento legal, como do acolhimento nos cuidados de saúde relacionados com a identidade de género. Por último, é preciso ter ainda em consideração que a discriminação social das pessoas trans depende ainda de outros fatores (a etnia, a orientação sexual, a classe social, etc.), que podem acentuar ou atenuar a discriminação motivada pela sua expressão de (trans)género.
SPSC – Continuamos a ‘ver’ o género, que tanto tem de construção social, como estando essencialmente ‘agarrado’ ao corpo (ao biológico)?
SPS – Eu diria que sim. Mas por outro lado, nunca antes esta problematização foi tão discutida na agenda mediática e política. Tenho a sensação que nos encontramos num momento crucial de mudança. No princípio de um processo que levará ao fim do modo como temos vindo a perspetivar o género e a sua relação com as características biológicas. Convido à leitura do número especial da National Geographic (de janeiro de 2017) dedicado a esta matéria e intitulado de “Revolução de Género”. O modelo tradicional de sexo/género estabelece uma relação mecânica entre dois sexos e géneros estáveis e concebe o género como o espelho social da biologia. Mas as pessoas trans, bem como as intersexo [pessoas que nascem com uma anatomia reprodutiva ou sexual que não se encaixa na definição típica de sexo feminino ou masculino], são a evidência viva da insuficiência desse modelo. Algumas brechas nesse modo de conceber o género têm vindo a ser abertas e tiveram uma tradução concreta, nomeadamente com as leis de identidade de género, de que já falámos. O próprio Estado português (mesmo no contexto da atual lei) já admite a descolagem entre sexo e género, corpo e identidade. Reconhece perante a lei como mulheres, pessoa com características corporais associadas ao masculino, e vice-versa.
SPSC – Em certos países é possível o registo de uma pessoa num terceiro sexo. Noutros facilita-se o registo num sexo neutro. O terceiro sexo não é neutro, e o sexo neutro não é um quarto sexo… correto? Como pensá-los?
SPS – Como registar as pessoas que não se identificam (ou que não se identificam apenas) como homem ou mulher? Trata-se de uma discussão complexa, que está agora a dar os seus primeiros passos. Em alguns países, como é o caso da Dinamarca, que permite a inscrição X no passaporte, começa a ser possível o registo com algo que podemos pensar como o “terceiro sexo”. Embora esta terceira possibilidade seja ainda muito limitada para dar conta da diversidade de formas de identificação e expressão de género, é um enorme progresso em direção a uma identificação legal das pessoas em maior consonância com a sua autoidentidade. Simbolicamente é um passo de gigante porque implica a rutura com o binarismo de género, que até há bem pouco tempo parecia impensável. Agora é preciso continuar a discussão de como traduzir essa diversidade da maneira o mais inclusiva possível. É crucial continuar a investir em estudos que assentem na “experiência vivida” das pessoas (seus sentimentos, necessidades e desejos) e auscultar/criar plataformas de participação das pessoas trans e das associações que as representam, nas discussões e nas decisões que se tomem a seu respeito.