Depois de legislar a igualdade, promovê-la


Depois de legislar a igualdade, promovê-la

A propósito do Dia Internacional de Luta contra a Homofobia e a Transfobia, a reflexão de…
Miguel Vale de Almeida, antropólogo, Professor associado com agregação, ISCTE-IUL e Investigador integrado, CRIA

 

Data
4 de Maio de 2017

Graças à ação do movimento social LGBT – com o apoio de segmentos académicos, da comunicação social e, ainda que lentamente, da política e do estado – a expressão “homofobia” entrou em força no vocabulário do espaço público português na última década. O mesmo não terá acontecido tanto com “transfobia”, e menos ainda com “lesbofobia” ou “bifobia”, não só como efeito da dupla ou múltipla discriminação que alguns segmentos sofrem, mas também porque se convencionou que “homofobia” se referiria a todos e não apenas aos homens gay – embora “transfobia” venha a ganhar mais destaque, pela óbvia necessidade de distinguir questões de identidade de género de questões de orientação sexual.

A expressão “homofobia” tornou-se correlata de “sexismo” ou “racismo” e, sobretudo, foi interiorizada pelo estado e pela lei. Ela é crescentemente criadora de vergonha social, e isso é um avanço nas mentalidades. Hoje contamos em Portugal com uma das mais avançadas situações legislativas no que diz respeito à população LGBT: inclusão da orientação sexual no artigo 13º da Constituição, casamento igualitário, uniões de facto igualitárias, acesso igualitário na candidatura a adoção, igualdade na coadoção para casais hetero e LG, procriação medicamente assistida também para mulheres solteiras e casais de mulheres, gestação de substituição equilibrando o acesso a ela com os direitos das gestantes, e alteração de nome e sexo no registo civil. Com a alteração para breve desta última questão (lei de identidade de género) no sentido da chamada despatologização (e ainda com a inclusão da problemática intersexo), é bem provável que Portugal se posicione muito em breve como o país mais avançado do mundo em termos legislativos.

De onde nos vem, então, a sensação de que a homofobia e a transfobia permanecem ou são difíceis de combater, e de que a visibilidade da população LGBT não é tão grande como noutros contextos? Em primeiro lugar, de questões estruturais no campo social e cultural. Altos níveis de dependência familiar, quer económica, quer emocional, e um campo do trabalho que é precário e dependente de redes de conhecimento, conduzem à dificuldade em sair do armário e à perpetuação de formas de dupla vida e duplo padrão, justificadas (como forma de autopreservação, claro) pelos próprios como formas corretas de viver (“não magoar os entes queridos”, “é uma questão privada”, etc.). Isto perpetua a heteronormatividade e a cisnormatividade, aceitando as pessoas LGBT que a vida social quotidiana continue a processar-se no silenciamento e invisibilidade das suas vidas, do reconhecimento sequer da possibilidade de serem quem são, apresentando-se a norma como equivalente de normal.

Em segundo lugar, os avanços legislativos não foram vertidos em planos eficazes de formação, educação, vigilância e punição. Áreas fundamentais como a saúde, a justiça, as forças policiais e armadas, a comunicação social e a produção mediática e cultural, e mesmo a prestação de bens e serviços, precisam de ser intervencionadas com planos de formação dos seus agentes e com mecanismos de igualdade de oportunidades e de promoção de inclusão e diversidade. Incluindo, naturalmente, mecanismos de verificação da exclusão, assédio e ataque homofóbico e transfóbico. Uma Lei-Quadro é absolutamente fundamental. Esta permitiria inclusive – e deveria – articular melhor a interseccionalidade das discriminações. Não só porque há LGBTs ricos e pobres, negros e brancos, homens e mulheres, mas porque a questão fulcral que subjaz à homofobia e à transfobia – a construção social do género – também precisa de ser “atacada” com mais energia em Portugal, onde a desigualdade entre homens e mulheres é ainda patente.

Com o respaldo de leis avançadas, e com a vigilância de um movimento social pujante, precisamos desses avanços para mudar as famosas mentalidades – mentalidades que desde cedo são formadas com padrões de género e sexualidade que assentam na diminuição das mulheres e na exclusão LGBT como seus grandes princípios negativos.