O estigma ligado ao BDSM ainda é grande


O estigma ligado ao BDSM ainda é grande

À conversa com…
Ana Mafalda Mota,
Psicóloga e mestre em Psicologia; Coordenadora do Ponto P

Data
6 de Maio de 2017

 

Entrevista

Isabel Freire

 

 

 

 “Para além da dor: fantasias de prazer, poder e entrega. Um estudo sobre bondage e disciplina, dominação e submissão e sadomasoquismo”. Este é título da dissertação de mestrado em Psicologia (especialização na área de Comportamento Desviante e Sistema de Justiça), realizada por Ana Mafalda Mota, na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (2011).

Atualmente a coordenar o Ponto P (projeto de redução de riscos em contextos e consumos recreativos em Santa Maria da Feira), Ana Mafalda Mota entende que o estigma ligado ao BDSM é ainda grande e os equívocos diversos. Numa entrevista que nos ajuda à sua desconstrução, lembra que muitos praticantes optam ainda por viver o BDSM em segredo. Receiam visões recriminatórias e patologizantes, na família, no trabalho e mesmo no consultório do médico ou psicoterapeuta.

Que ideias equívocas em relação ao BDSM precisamos desconstruir?

O BDSM é complexo e variável, como qualquer outro comportamento social e interpessoal. Não existe uma trajetória-tipo para a forma nem para a idade de entrada no BDSM. Há diversidade de experiências, percursos e motivações.

O comportamento BDSMer é altamente simbólico e constituído por um mundo figurativo, onde todas as relações têm os seus próprios ritos e rituais. Por outras palavras, o contexto do BDSM é relacional e um praticante só se realiza na relação com o outro. Os comportamentos não são homogéneos. As práticas são múltiplas. E as motivações vão da obtenção do prazer erótico/sexual à obtenção de prazer psicológico. Pensar as práticas de BDSM é entender que o comportamento, o prazer e o desejo, podem ser deslocados da genitalidade, criando novas possibilidades de erotização do corpo e de satisfação erótico-sexual. A dor – por si só – não é prazer. Intensifica-o. Pode até nem estar ligada à genitalidade ou à gratificação de um orgasmo.

Como está enquadrada hoje a prática do sadomasoquismo (BDSM) nos manuais de referência da psiquiatria?

No Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM -V), revisto em 2013 – edição em que há uma divisão entre parafilias e desordens parafílicas – o BDSM está listado como parafilia ou “fixação sexual incomum”. Só é considerado uma “desordem parafílica” se provocar mal estar ou prejudicar o próprio praticante ou outra pessoa. Ter uma parafilia é condição necessária, mas não suficiente, para se ter uma desordem parafílica. É diferente ter um comportamento e ter uma desordem. A desordem parafílica é uma perturbação mental. Uma parafilia, por si só, não justifica ou exige, necessariamente, intervenção clínica. Apesar desta diferenciação, a etiquetagem dos comportamentos BDSMer como parafilia, não contribui para a sua expressão saudável. Não reconhece a subjetividade das experiências de cada um. Este rótulo pode resultar na estigmatização social e legal de comportamentos que não são patológicos. E a necessidade de ocultar estes comportamentos pode gerar angústias e insatisfações com as atividades e práticas BDSM.

Das entrevistas que fez a praticantes portugueses de BSDM, que lamentos escutou de estigma e discriminação? Como limitam a procura de uma sexualidade saudável e de uma vivência identitária feliz?

O estigma ligado ao BDSM é grande. Os mitos e a pressão negativa também. Os/as praticantes consideram negativas as representações que os outros têm sobre os seus comportamentos e práticas. Isto faz com que muito não as admitam, receando o rótulo de “maluquinhos/as”. Optam pelo segredo. Ocultam na esfera familiar e profissional os gostos próprios. Isto faz sentir que é preciso viver uma “vida dupla”. Não permite uma vivência identitária plena e feliz, sobretudo em relações de amor/íntimas com parceiros que não são praticantes. Ouvi casos de praticantes que assistiram ao fim das relações amorosas devido aos “gostos diferentes”, inclusive com pedidos por parte dos/as parceiros/as para se “tratarem”. Um dos dominadores que entrevistei revelou que quando descobriram no seu trabalho que “gostava de coisas diferentes”, foi ameaçado de despedimento e pressionado para deixar a comunidade BDSmer. Este exemplo ilustra como os poderes públicos interferem na esfera privada e limitam o exercício pleno de cidadania.

Que objetos/instrumentos lhe parecem mais emblemáticos (simbólicos) do BDSM e o que representam?

As sessões de BDSM são uma fração da realidade, delineadas no tempo e no espaço, onde as práticas vivem da teatralidade e das fantasias dos que as praticam. O código de vestimenta, impregnado de erotismo e sensualidade, é uma componente estética que funciona como estímulo de transição para a execução dos seus papéis. Os instrumentos auxiliam na execução das práticas. Mas a sua importância relaciona-se com a diversidade de sensações proporcionadas: para que o BDSM “não se torne redutor, nem que as sensações e ritualizações se tornem monótonas”.

A coleira é uma das imagéticas mais associadas ao BDSM. Talvez um dos mais valorizados símbolos numa relação BDSM. O símbolo formal da submissão e da “entrega”. É “sinal de compromisso”. Alguns praticantes veem a coleira como uma “aliança no dedo” – revela que se transpõem os símbolos das relações normativas para o relacionamento BDSM.

Consentimento, limites e safeword são conceitos essenciais no BDSM. Eu consinto (até certo ponto) e quando atinjo os meus limites, dou sinal para parar. Há entre a comunidade preocupações com a questão dos acidentes (não conseguir dar a safeword a tempo)? Fazem-se campanhas ou ações de sensibilização e formação para dominadores/as, por exemplo?

Os limites são estabelecidos antes do início das sessões ou relações BDSM, bem como a safeword, embora os/as praticantes que entrevistei aleguem que nunca necessitaram de a usar. Os/as dominadores/as que são vistos como não seguros/as (não dominando as técnicas e não respeitando as regras) têm dificuldade em obter parceiros/as para as suas práticas. Ainda assim, alguns dos/as dominadores/as que entrevistei referiram que frequentaram workshops sobre técnicas e segurança noutros países, como nos Estados Unidos da América, Alemanha e Inglaterra.

Os/as praticantes salientam a enorme responsabilidade inerente ao papel de Dominador/a. São estes que têm a segurança, o bem-estar, a vida da outra pessoa nas mãos e a necessidade de respeitar os procedimentos e os limites do/a submisso/a. Praticantes que desempenham o papel de dominadores, focam ainda a importância de serem pessoas com valores, capacidade ouvir e de compreender o/a submisso/a.

São, seguro e consensual são princípios inalienáveis do BDSM. Que questões éticas se continuam a discutir dentro da ‘comunidade’ ou dos contextos BDSM, no mundo?

A livre determinação das pessoas e o consentimento são pilares basilares, porque são eles que fazem a distinção entre BDSM e violência. Determinar onde termina o consensual e onde começa o abuso é uma tarefa delicada que implica experiência de ambas as partes envolvidas no “jogo”. É unânime para todos que estão completamente excluídas as práticas que ponham em causa a segurança de outrem, que envolvam crianças ou pessoas sem livre arbítrio, atos feitos contra a vontade de outrem ou práticas que provoquem danos permanentes.

Os/as praticantes chamam ainda a atenção para “condutas éticas da dominação”: ninguém ter o direito de usar ou abusar emocionalmente ou psicologicamente de outrem. Ninguém pode interferir na vida saudável da pessoa que está na base da hierarquia e o BDSM deve ser uma forma de progressão positiva. Assim, de um/a dominador/a são esperadas competências técnicas, informações básicas de segurança, compreensão da comunicação em jogo e capacidade de lidar com possíveis reações emocionais e psicológicas do/a submisso/a. Deste último/a a expectativa é que mantenha e preserve o equilíbrio do poder, aprenda a conhecer-se e a reconhecer os limites, e contribua para o processo de construção de significados.

No nosso país, os/as praticantes de BDSM são ainda aconselhados pelo/a psiquiatra ou psicoterapeuta a tratarem-se?

Uma das pessoas que entrevistei conta que embora seja acompanhada por um psiquiatra, nunca lhe falou das práticas BDSM. Os exemplos de estigmatização que conhece levam-na a pensar que na comunidade médica “o BDSM é uma doença a ser atacada”. Outra entrevistada refere-nos que procurou um psicólogo por se sentir ansiosa/deprimida, e quando lhe expôs o seu interesse pelo BDSM, foi aconselhada a fazer psicoterapia.

Que livro recomendaria a quem deseja compreender o fenómeno do BDSM, para lá das sombras?

Sugiro dois livros que embora sejam datados, fornecem uma boa primeira incursão pelo mundo do BDSM: SM 101 – A Realistic introduction, de Jay Wiseman, e Different Loving: a complete exploration of the world of sexual dominance and submission, de William Brame, Gloria Brame e Jon Jacobs).