Proteger a Juventude LGBTI: Não baixemos os braços!
Rita Paulos é Diretora Executiva da Casa Qui – Associação de Solidariedade Social, e consultora em igualdade de género, incluindo questões ligadas à orientação sexual e identidade ou expressão de género.
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É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Ingleses e Alemães, e mestre em Estudos Culturais e Teoria Crítica (com dissertação em estudos de género). Foi fundadora e ex-dirigente da rede ex aequo, trabalhou no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, na Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género e na Federação Nacional das Associações Juvenis.
Data
24 de Outubro de 2017
A juventude lésbica, gay, bissexual, trans ou intersexo (LGBTI) é tão diversa ou comum como os seus pares. Felizmente, esta verdade é reconhecida cada vez mais como La Palice. Apesar disso, não altera uma situação de potencial maior vulnerabilidade. Não anula um contexto quotidiano de perpetuação de lapsos e de dados adquiridos sobre as pessoas com quem falamos ou que temos ao nosso lado. A possibilidade da invisibilidade tem sido uma faca de dois gumes, porque permite por um lado ser usada pelas pessoas LGBTI como proteção, mas por outro lado gera facilmente um isolamento prejudicial. Esta situação altera-se evidentemente quando uma pessoa decide verbalizar ou demonstrar os seus afetos e/ou atrações (no caso de ser lésbica, gay ou bissexual) ou quando decide exprimir-se em termos de identidade ou expressão de género (no caso de ser trans ou intersexo). Podemos falar de situações diversas neste ‘antes’ e neste ‘depois’. O processo de assumir-se (ou não) dita a vivência de contextos diferentes, mas é a discriminação que permeia e determina sempre, independentemente desta linha, os problemas que cada jovem vai vivendo e que variam também conforme a sua personalidade, o seu contexto, o seu ambiente social e a sua rede de suporte.
O tema da visibilidade é crucial. Se apontarmos as grandes diferenças dos últimos 10 anos verificamos que com as mudanças de legislação, seja numa vertente de igual acesso a direitos ou de proteção por reconhecimento de categoria especial de discriminação, alguma da população LGBTI começou progressivamente a sair do armário. Em particular a juventude. Há 20 anos era impensável um/a adolescente LGBTI assumir-se na escola. Hoje em dia é cada vez mais frequente. Com esta liberdade e vivência ‘normalizante’ surgem, no entanto, as consequências inerentes à mudança. A resistência, o bloqueio e a violência. O backlash.
O processo no momento atual, no entanto, pode não ser o esperado. Enquanto, por exemplo, o foco de intervenção no passado era toda a comunidade escolar, adultos e jovens, mas em particular os mais novos, porque era no convívio entre pares que surgiam números elevados de bullying, hoje em dia verifica-se, a partir do trabalho no terreno, uma tendência para que as fontes mais frequentes (embora não únicas) de sofrimento, maus-tratos ou exclusão, sejam agora as pessoas adultas cuja competência é cuidar e proteger, seja em casa ou na escola. Este novo dado – o de uma juventude mais aceitante dos seus colegas ou pessoas amigas LGBTI – pode ser explicado pelo facto de ser um tema falado abertamente hoje em dia, pelo investimento na educação que ocorreu da parte das organizações, pela aprovação da Lei da Educação Sexual em Meio Escolar (2009), que contempla como obrigatório trabalhar o tema da orientação sexual, e pela dignificação que lhe conferiu a igualdade perante o Estado. Desde a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo (em 2010) verifica-se que são muito elevadas as taxas de concordância de pessoas abaixo dos 30 anos, tanto sobre este direito como sobre os direitos relacionados com a parentalidade. O estudo All About Geração Millennium realizado este ano pela CH Business Consulting e Multidados.com indicou-nos que 82% da juventude portuguesa entre os 18 e os 30 anos defende que as pessoas homossexuais devem ter um tratamento de igualdade em todos os Direitos de Família. Não existe exemplo mais claro desta progressiva mudança social do que o acontecimento deste ano na Escola Secundária de Vagos. Um conjunto de alunas e alunos decidiu protestar por aquilo que considerou ser uma discriminação na expressão de afetos de duas colegas que eram namoradas, em relação ao que era permitido a casais de sexo diferente.
Encontramos assim aparentemente uma mudança para uma situação tendencialmente geracional (com as suas exceções, evidentemente). Não é que a violência entre pares tenha deixado de existir, porém a procura que temos recebido no Gabinete de Apoio à Vítima para Juventude LGBTI da Casa Qui, e a tipologia de situações que geram essa procura, reforçam a nossa tese que temos de colocar atualmente um foco prioritário na formação e sensibilização das pessoas adultas que trabalham e lidam com jovens. Se para a juventude o apoio dos pares é de elevada importância – sem esquecer que não é um apoio garantido – não podemos remeter para segundo plano a relevância de uma posição clara da escola, enquanto instituição, e das pessoas responsáveis perante o bem-estar psicológico e físico dos seus jovens, seja em medidas preventivas ou resolutivas. Mais desolador é o cenário quando verificamos que são, na comunidade escolar, estas pessoas quem provoca situações de dificuldade. Não só porque validam (direta ou indiretamente) comportamentos de discriminação de pessoas mais jovens, mas porque quando são eles e elas promotores de agressão tornam a situação especialmente difícil de ultrapassar pelo poder e autoridade que detêm.
Este enquadramento não é de somenos importância. Os dados que conhecemos sobre a juventude LGBTI pedem para que os avanços nas leis e esta aparente maior aceitação social da parte da juventude, em geral, não nos façam baixar os braços e que se releve a importância da discriminação social, em particular a dos pares, dos educadores e da família. As crianças e jovens LGBTI são, sem margem para dúvidas, um grupo especialmente vulnerável, com estatísticas elevadas de isolamento, de depressão, de suicídio, de insucesso e abandono escolar, de sofrimento de bullying na escola e de violência familiar bem conhecidas. Este são factos que têm sido reconhecidos por instituições de peso nos últimos anos. O Gabinete dos Direitos Humanos do Alto Comissariado das Nações Unidas emitiu em 2015 uma declaração intitulada “Discriminados/as e Feitos/as Vulneráveis: Jovens LGBT e Intersexo necessitam de Reconhecimento e Proteção dos seus Direitos – Dia Internacional contra a Homofobia, Bifobia e Transfobia” onde se declara: “Os Estados devem atuar de forma a proteger todas as crianças e jovens adultos da violência e assegurar a existência de sistemas de proteção das crianças e jovens e de sistemas de apoio eficazes, incluindo abrigos e outros mecanismos de segurança para aqueles/as que necessitem de proteção. […] A saúde e o bem-estar de todas as crianças e jovens adultos devem ser protegidos, incluindo acesso garantido a serviços de saúde não discriminatórios e a uma educação sexual completa e por via da proteção dos direitos de todas as crianças e jovens adultos à sua identidade, autonomia e integridade física e psicológica. […]. Nós também apelamos a que as instituições de Direitos Humanos e dos Direitos das Crianças cumpram os seus mandatos e façam a sua parte de protegê-las da violência e da discriminação”. Adicionalmente, o Conselho da Europa incluiu recentemente a não discriminação e a igualdade de oportunidades das crianças e jovens LGBTI como uma área prioritária para a Estratégia pelos Direitos da Criança (2016-2021).
É de salientar que estes espaços onde pessoas adultas convivem com jovens, seja a escola ou a família, são realmente espaços vitais de proteção, minimizadores de todos os dados estatísticos mais negativos que conhecemos. Na escola, está comprovado, por vários estudos internacionais nos últimos anos, que uma política clara de inclusão, de apoio e de prevenção da violência por motivos homofóbicos ou transfóbicos é suficiente por si para criar impacto positivo na juventude LGBTI, inclusive naquela não assumida. Na área da família é sabido – e encontra-se confirmado no contexto português[1] – que uma situação não apoiante da parte da mesma está associada a uma pior saúde mental da juventude lésbica, gay ou bissexual, mesmo quando esta não é, em geral, vítima de discriminação ou quando tem relações positivas com os seus pares.
Em suma, soubemos cuidar de intervir com a juventude enquanto potencial agressora – e temos de o continuar a fazer, porque a discriminação persiste em grau suficiente e em particular em meios mais pequenos ou em comunidades com culturas mais fechadas ou tradicionais – mas encontramo-nos aparentemente em falta com as gerações acima dos 34 anos que lidam com jovens, sejam estas pessoas profissionais na área da educação, da saúde, da ação social, da justiça ou as suas próprias figuras parentais.
[1] Daniela F. Freitas, Anthony R. D’Augelli, Susana Coimbra & Anne Marie
Fontaine (2016) Discrimination and Mental Health Among Gay, Lesbian, and Bisexual Youths in
Portugal: The Moderating Role of Family Relationships and Optimism, Journal of GLBT Family
Studies, 12:1, 68-90, DOI: 10.1080/1550428X.2015.1070704