A Amizade: ‘Naturezas’ relacionais da vida contemporânea
Uma reflexão de…
Verónica Policarpo é socióloga na área da vida íntima e pessoal. Investigadora de pós-doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e no Morgan Centre da Universidade de Manchester, com o projeto Friends will be friends?.
Percursos…
Doutorada em Sociologia pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (2011), com a tese Indivíduo e Sexualidade: a construção social da vida sexual. Autora do capítulo «Sexualidades em construção: entre o público e o privado» e coautora do capítulo «Media e Entretenimento» do 4º Volume da História da Vida Privada em Portugal (2011).
Data
12 de Janeiro de 2018
Na era da comunicação global, em que as redes sociais, em particular o Facebook, vulgarizaram a palavra “amigo”, falar de “amizade” pode parecer banal, irrelevante, com falta de substância ou profundidade. No entanto, a amizade constitui um laço afetivo, não só dos mais antigos e celebrados desde sempre na literatura e na arte, como a que as pessoas atribuem muita importância na contemporaneidade. Não é por acaso que aplicações como o Facebook se alavancaram nesse conceito e, por consequência, nas suas qualidades associadas.
Conhecida por ser um laço mais informal e menos institucionalizado do que, por exemplo, a família, à amizade são associadas ideias muito em consonância com os ecos da modernidade tardia em que vivemos. É suposto que os amigos sejam por nós escolhidos, ao contrário da família – e, portanto, que a relação se baseie na liberdade, e não no constrangimento. Que a relação seja construída com base no prazer, diversão e satisfação, e não na obrigação (como acontece frequentemente com as relações familiares, ou outras que nos são impostas). E por isso, à amizade está sempre associada uma ideia de convivialidade: socializar faz parte de ter amigos. Espera-se que seja baseada na afetividade, e não na imposição de papéis institucionais. E esses afetos podem tomar uma forma mais ou menos íntima, consoante os tipos de amizade. Entre amigos não é suposto haver grandes diferenças de estatuto, ou de poder, ou seja, na amizade espera-se igualdade. E isto repercute-se no que se espera do amigo: que ele, no mínimo, nos devolva o afeto que lhe destinamos, na mesma, ou semelhante, medida (reciprocidade). Acima de tudo, à amizade está associada uma ideia forte de confiança interpessoal: um amigo é aquele com quem se pode contar em quaisquer circunstâncias, que sabe corporificar a compaixão – no sentido em que está presente e sofre connosco, sabe tomar como suas as nossas dores, assim como as nossas alegrias.
Estas ideias expressam assim um ideal, ou normas sociais que acabam por se traduzir em expectativas, e assim orientar o modo como nos comportamos em relação aos nossos amigos. Um estudo[i] sobre o significado que os portugueses dão à expressão “bom amigo” e “amigo íntimo” mostrou que a noção de confiança é central para definir a amizade. Um amigo é sempre alguém em quem se espera poder confiar incondicionalmente. Mas enquanto de um “bom amigo” se espera que esteja presente, para dar apoio, nos bons e maus momentos, a noção de intimidade na amizade surge principalmente associada à possibilidade da confidência, e também à de família. O estudo encontrou quatro tipos de representações dominantes a respeito da noção de “amigo”. Uma delas caracteriza-se por identificar a palavra “amigo” com laços familiares. Isto aponta para o que alguns investigadores chamam de padrões de suffusion [ii] na paisagem das relações pessoais contemporâneas – ou seja, um esbater de fronteiras entre tipos mais e menos formais de relacionamentos (por exemplo, um amigo que é considerado um irmão; ou um primo que é considerado o melhor amigo). Quantos aos restantes tipos, um baseia-se principalmente na confiança; um outro é mais orientado para o desenvolvimento do self (valorizando aspectos como a confidência e o apoio incondicional); e um quarto valoriza essencialmente a presença dos amigos, em maus e bons momentos.
“Deixar cair” uma amizade pode ser um processo muito doloroso, e com consequências para a própria identidade, no sentido em que produz incerteza e insegurança a respeito do modo como nos vemos a nós próprios, e ao mundo
Como se vê, a palavra “amigo”, apesar das noções de informalidade e maior liberdade que a sustentam, traz consigo uma elevada exigência moral, que constitui certamente um desafio para os relacionamentos concretos com que temos de lidar no nosso dia a dia. Por outras palavras, para lá do ideal, há as práticas que, com mais ou menos regularidade, constroem a amizade no confronto entre expectativas e realidade. E estas práticas revelam as tensões existentes na construção e manutenção destes laços, que não são afinal sempre “escolhidos”, “livres” ou baseados apenas no prazer e satisfação. Muitas vezes, os amigos são-nos impostos – ou por outros amigos, ou pelos cônjuges ou outros familiares, ou até pelo nosso próprio passado. Há amigos que se tornam um “peso” do qual não nos conseguimos libertar, por isso gerar em nós sentimentos de culpa e ambivalência. “Deixar cair” uma amizade pode ser um processo muito doloroso, e com consequências para a própria identidade, no sentido em que produz incerteza e insegurança a respeito do modo como nos vemos a nós próprios, e ao mundo[iii]. E as amizades difíceis também se traduzem em conflitos e decepções, o dinheiro surgindo frequentemente como um dos pontos sensíveis em que a sua resistência é testada.
As amizades estão também sujeitas à prova do tempo e das fases da vida que os seus protagonistas vão atravessando. Muito presentes na adolescência, com um papel importante na aprendizagem e partilha de experiências emocionais e sexuais, tendem a reconfigurar-se à medida que se atravessam outras fases da vida, como a entrada na vida adulta, no mercado de trabalho, na conjugalidade, o nascimento dos filhos, o divórcio/separação, ou a viuvez. A distância e mobilidade geográfica também colocam desafios específicos, como no caso dos amigos que foram deixando o país nos últimos anos, para trabalhar. Estas amizades vividas à distância beneficiam muito das potencialidades que as novas tecnologias trouxeram à comunicação interpessoal. Aplicações como o Skype, Facebook, Whastapp, entre outras, permitem um contacto que, apesar de mediado tecnologicamente, pôde passar a ser mais frequente e síncrono. Ainda assim, parece haver todo um conjunto de “regras tácitas” em relação ao modo como se usam estas tecnologias: por exemplo, as ocasiões especiais (como o dia de aniversário) ou críticas (como uma doença, ou morte) pedem uma conversa com voz (com ou sem imagem). Por outro lado, a importância do contacto face a face, e da copresença, continua a ser reconhecida: as férias, as visitas ao país de origem, as festas e outros momentos de sociabilidade, são momentos chave da manutenção de um laço que se quer próximo, para continuar a valer o seu nome[iv].
[…] saímos com quem nos diverte e permite passar um “bom bocado”; é o lado “alegre” e “divertido” da vida […]. Os fun friends têm esta importante função de garantir a dimensão lúdica e da alegria, na amizade.
As práticas que constroem a amizade, no quotidiano, sejam mais ou menos regulares, fazem-se de muitas coisas, como a convivialidade e sociabilidade: almoços e jantares, sair para dançar ou ir a espetáculos, festas de aniversário ou comemorações de outro tipo. Aqui, o aspecto prazeroso da amizade está em destaque; saímos com quem nos diverte e permite passar um “bom bocado”; é o lado “alegre” e “divertido” da vida, celebrado nos anúncios de bebidas alcoólicas (que, com o seu efeito desinibidor, têm também um papel na produção destes eventos). Os fun friendsii têm esta importante função de garantir a dimensão lúdica e da alegria, na amizade. Mas as práticas que fazem e consolidam as amizades revelam-se também nas práticas de cuidar – do amigo, quando em necessidade; ou de o apoiar quando é ele que é cuidador de outrem (filhos, pais, companheiros). Alguns autores consideram que os amigos constituem principalmente uma base de apoio emocional, mas não tanto instrumental, principalmente no envelhecimento, quando os próprios amigos já precisam, eles também, de cuidados[v]. Por outro lado, a família continua a ser, em Portugal, a primeira fonte de cuidados informais na doença e na velhice[vi]. No entanto, em redes pessoais em que os papéis de amigos e família estão cada vez mais fundidos, revela-se com maior clareza o apoio e interajuda providenciados pelos amigos[vii]. Isso acontece quer quando se tem de tratar de familiares doentes (caso em que amigos com competências específicas, como ser médico ou enfermeiro, têm um papel preponderante na prestação de cuidados mais práticos); quer quando se trata de ajudar os amigos a cuidarem de si próprios (por exemplo, pessoas que vivem sozinhas, ou que atravessam períodos críticos de separação/divórcio, ou doença aguda). Ser cuidado pelos amigos pode reforçar a intimidade e confiança, mas pode também pôr em causa o princípio de igualdade e reciprocidade, que constituem pedras basilares deste laço. Para alguns homens isto pode constituir uma ameaça, sobretudo quando partilham concepções de masculinidade mais tradicionais. De facto, as práticas do cuidar são muito atravessadas por desigualdades de género, estando principalmente a cargo das mulheres. No caso da amizade, esse efeito de género faz-se sentir principalmente em termos de apoio emocional, na associação da figura da “amiga” a “confidente”, “boa ouvinte”, “conselheira”. Nestes casos, a amizade não contribui para desafiar as desigualdades de género que atravessam as sociedades em que vivemos, incluindo as práticas do cuidar.
Os amigos têm também um papel importante na construção da vida e da identidade sexuais. Para aqueles cuja vida pessoal desafia a heteronorma, os amigos constituem importantes fontes de suporte emocional e instrumental, de validação da experiência e identidade, principalmente em contextos de discriminação e segregação acentuadas. À medida que cresce a aceitação das relações não-heteronormativas, na sociedade e nas famílias, as chamadas “famílias de escolha”[viii] vão sendo também constituídas por um mix de familiares e amigos vii [ix] (um retorno à noção de suffusion que vimos atrás). A relação entre sexualidade e amizade tem ainda outras declinações, como as relações que evoluem de amizade para relações amorosas e sexuais, as assunções associadas às amizades entre pessoas de sexo diferente, os amigos que têm um papel de “consolo sexual”, ou a importância da relação com amigos na infância e adolescência para a aprendizagem da sexualidade.
Os amigos têm também um papel importante na construção da vida e da identidade sexuais. Para aqueles cuja vida pessoal desafia a heteronorma, os amigos constituem importantes fontes de suporte emocional e instrumental, de validação da experiência e identidade, principalmente em contextos de discriminação e segregação acentuadas
As práticas que unem os amigos são também, e talvez principalmente, afetivas. Elas constroem-se pela repetição continuada de gestos portadores de significado, em que o corpo tem uma importância fundamental (tocar, abraçar, beijar…). Mas também pela expressão inesperada e até explosiva das “paixões”, o lado incontrolado das emoções. Através destas práticas, os amigos podem constituir uma comunidade afetiva que os ajuda a navegar ambientes sociais caracterizados pela incerteza, como é o caso dos indivíduos em processos de mobilidade social acentuada.
E finalmente como falar de amizade sem mencionar os laços que construímos com outras espécies não humanas? Os animais de companhia, em especial o cão, são cada vez mais populares nos lares dos portugueses, e estão a contribuir ativamente para redefinir as próprias fronteiras do que significa uma “família”, e a distribuição dos afetos no seu seio. No mapa de relações pessoais, o lugar que os humanos ocupam é, também ele, definido pelo lugar que os animais ocupam, o que salienta a natureza profundamente relacional da vida contemporânea. Por outro lado, mais do que a popularizada expressão que nos diz que “o cão é o melhor amigo do homem”, importa-nos sobretudo questionar até que ponto o homem tem sido um bom amigo dos outros animais – cão ou não. Aqui a paleta de situações é variada, mas estrutura-se sempre num paradoxo fundamental: enquanto alguns animais são considerados “amigos”, têm grande visibilidade nas nossas vidas, e são por nós protegidos e amados – os animais de companhia (cães e gatos principalmente, mas não só); outros são completamente tornados invisíveis, e objetos explorados para consumo humano – para comer, vestir ou entretenimento. Até que ponto ter um animal de companhia, e construir com ele laços afetivos como a amizade, pode facilitar a formação de empatia com os outros animais (que não são domésticos ou de companhia), e assim favorecer uma mudança ética e de atitude em relação às outras espécies? Esta é uma questão que certamente merecerá ser explorada, num planeta ameaçado pelo uso abusivo que os humanos têm feito dos seus recursos naturais.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
[i] POLICARPO, Verónica (2015) “What is a friend? An Exploratory Typology of the Meanings of Friendship”, Soc. Sci. 2015, 4, 171–191; doi:10.3390/socsci4010171.
[ii] SPENCER, L. & Pahl, R (2006) Rethinking friendship. Hidden solidarities today. Princeton University Press.
[iii] SMART, Carol; Davies, Katherine; Heaphy, Brian, and Mason, Jennifer. “Difficult Friendships and Ontological Insecurity.” The Sociological Review 60 (2012): 91–109.
[iv] POLICARPO, Verónica (2016) “‘The Real Deal’: Managing Intimacy Within Friendship at a Distance.” Qualitative Sociology Review 12(2):22-42. Retrieved January 2018 (http://www.qualitativesociologyreview.org/ENG/archive_eng.php).
[v] ALLAN, G. A. (1986). Friendship and care for elderly people. Ageing and Society, 6(1), 1–12. doi:10.1017/S0144686X00005468
[vi] ABOIM, S., Vasconcelos, P., & Wall, K. (2013). Support, social networks and the family in Portugal: Two decades of research. International Review of Sociology, 23(1), 47–67. doi:10.1080/03906701.2013.771050
[vii] POLICARPO, Verónica (2017) Friendship and care: gendered practices within personal communities in Portugal, Journal of Gender Studies, DOI: 10.1080/09589236.2017.1394820.
[viii] WEEKS, J, Heaphy, B and Donovan, C (2001) Same Sex Intimacies: Families of Choice and Other Life Experiments. London: Routledge.
[ix] SMART, C (2007) “Same sex couples and marriage: negotiating relational landscapes with families and friends”, The Sociological Review, 55(4), p. 671-686.